segunda-feira, 20 de outubro de 2008

1.ª Tarefa - Comentário de frase

Tomando o nome do blog como mote, eis a primeira sugestão de trabalho:
Em vez de se reconhecer que "julgar a Administração é ainda julgar", preferia-se considerar que "julgar a Administração é ainda administrar". [...] O resultado desta situação é paradoxal: em nome da separação de poderes entre a Administração e a Justiça, o que verdadeiramente se realiza é a indiferenciação entre as funções de administrar e de julgar...

Vasco Pereira da Silva

22 comentários:

Unknown disse...

A frase objecto de comentário expressa a remota figura do administrador juiz de inspiração francesa, mais concretamente fruto da revolução francesa de 1789 e de uma concepção rígida do princípio Separação de Poderes.
O Professor Vasco Pereira da Silva caracteriza esta fase, em que julgar a administração é ainda administrar, como a fase do Pecado original caracterizada pelo autocontrolo por parte da administração conducente a uma situação de autêntica promiscuidade
entre a função administrativa e função jurisdicional. (período liberal- séculos XVIII-XIX ). Tal interpretação distorcida deste principio basilar do Estado de Direito surge não só como reacção e solução do pensamento liberal ao absolutismo régio vivido até então (concentração de poderes na mão do governante e no total desrespeito pelas liberdades e direitos individuais,cidadão como mero administrado sendo lhe apenas reconhecido um único meio de defesa face aos excessos do poder, o direito de reclamação, embora desprovido de eficácia plena
visto ser dirigido ao mesmo orgão "abusador") como deve-se também à propria noção de Estado inerente a cada Sistema. Assim temos um modelo anglosaxónico que assenta numa tripartição de poderes não tão rígida que pressupõe uma compatibilização, conjugação e consequentemente controlo recíproco entre os três poderes Estatais, inexistindo qualquer relação de subordinação ou hierarquia entre os mesmos conduzindo a uma Administração
subordinada, tal como os restantes orgãos do poder, aos tribunais comuns. Em contraposição temos o modelo françês inspirado numa concepção de Maquiavel que apelava à concentração de poderes na figura autoritária do monarca,criando um paradigma de Estado todo poderoso e autoritário
que serviria para dotar a Administração de verdadeiros privilégios exorbitantes como por exemplo a susceptibilidade de execução coactiva de actos administrativos, estes entendidos como figura jurídica aglutinadora da actividade administrativa com efeitos similares aos das próprias sentenças.
Seguindo o entendimento do Professor Vasco Pereira da Silva, podemos dividir o Sistema do Administrador Juiz em três subfases:
Uma primeira fase (desde a revolução francesa de 1789 até à criação do Conselho de Estado Françês em 1799)marcada por uma total confusão e preocupante promiscuidade de funções em que se entendia, nas palavras de Portalis, que a "jurisdição era o complemento da acção adminstrativa".
Posteriormente segue-se a fase da Justiça Reservada em 1799, em que temos um sistema que ainda "enfermo" mas que já caminha para o reconhecimento de uma certa autonomia da função administrativa com o nascimento do COnselho De EStado. Este enquanto orgão administrativo essencialmente consultivo era também competente na resolução de litígios decorrentes da actividade administrativa
mediante a emissão de pareceres embora sujeitos a homolgação do Chefe de Estado, logo em caso de conflito a ultima palavra continuaria a caber à propria Administração.Apesar dos esforços no sentido de uma jurisdicionalização dos tribunais administrativos nesta fase, em bom rigor a criação deste orgão como instância intermédia e especializada não acaba com
o legado do período do administrador juiz continuando a existir um autocontrolo por parte da administração.
Somente numa terceira e última fase,1872, conhecida enquanto época da "Justiça Delegada" as decisões do Conselho de Estado deixam de estar sujeitas a homolgação tornando-se definitivas. Regista-se nesta altura um grande passo no combate ao privilégio de foro da administração todavia, nas palavras do Professor Vasco Pereira da Silva,apesarde estarmos perante uma importante e decisiva alteração do sistema não se verifica ainda um corte do cordão umbilical existente entre a Administração e a justiça administrativa, contrariando aqueles autores que aqui veem o nascimento do direito do contencioso administrativo. A favor desta lógica de continuidade e não de ruptura histórica temos ainda um Conselho de Estado dotado de um estatuto jurídico de orgão da Administração bem como a proclamção do sistema do "ministro juiz", ou por outras palavras, apenas era admissível recurso de uma decisão administrativa para o Conselho de Estado após prévia impugnação perante o Ministro competente. Tinhamos por conseguinte um Ministro a "vestir-se" de tribunal de primeira instância enquanto que o Conselho de EStado assumia o papel de tribunal de recurso.
Por ultimo há que salientar equanto importante característica deste período os reduzidos poderes dos juízes limitados a meros poderes de anulação.
Podemos então finalmente conhecer a génese do nosso Contencioso Administrativo marcada por uma Administração autocontroladora, autoritária, defensora de um contencioso "acto- cêntrico" que patenteava uma relação desigual entre os orgãos administrativos e os particulares desprovidos de meios de reacção contra os abusos de poder.
O princípio da Separação de Poderes, enquanto postulado do EStado de Direito Democrático, não deve ser alvo de uma tão rigída interpretação que como testemunha a nossa história acaba por conduzir à própria situação que visa evitar, uma confusão da esfera administrativa e jurisdicional. O equilíbrio propiciado por uma separação de poderes inspirada na concepção anglosaxónica de freios e contrapesos em que não se defende uma individualidade absoluta mas antes uma "individualidade harmónica" é essencial para a salvaguarda dos particulares face aos abusos tirânicos e absolutistas dos governantes.
Assim evoluiu-se nos finais do século XX, com o Estado Social e com a necessidade uma Administração Prestadora mais próxima dos cidadãos,para um sistema de contencioso administrativo plenamente jurisdicionalizado.É neste período que assistimos ao "milagre" da transformação dos tribunais administrativos em verdadeiros tribunais pondo termo à defendida teoria da subtracção do controlo da actividade administrativa ao poder judicial (fenómeno de autêntica "tribunalização"). O Professor Vasco Pereira da Silva fala mesmo num duplo milagre, por um lado passamos a ter um tribunal a criar um corpo de normas que limita o exercício do poder Administrativo, e por outro a efectiva transformação de um orgão administrativo em orgão jurisdicional - divisão do Conselho de EStado em duas secções: uma administrativa e uma nova apenas preocupada com o próprio contencioso.
A Administração outrora escondida atrás da figura do acto administrativo, enquanto manifestação clara dos seus poderes de autoridade cria novas formas de actuação menos agressivas para os particulares. É esta a fase denominada pelo Professor como "fase do baptismo" em que apesar do grande passo registado continuamos até 2004, "fase do crisma", a verificar uma limitação de poderes de controlo da administração (por exemplo quanto âmbito de jurisdição administrativa).`
É então graças à forte influência comunitária e ao fenómeno da "europeização" que o contencioso administrativo constitucionaliza-se e passa a consagrar uma tutela jurisidicional plena e efectiva dos particulares perante a Administração, nomeadamente através do alargamento do leque dos meios processuais ( acção de impugnação de actos administrativos, acção de condenação à prática de acto administrativo contra acto expresso ou recusa, acção de reconhecimento, acção de impugnação de normas...)
Concluímos desta breve exposição, que hoje em dia torna-se insustentável uma tão heterodoxa concepção do princípio da Separação de Poderes sustentado pela máxima em análise( "julgar a administração é ainda administrar"), mas que ainda hoje apesar da submissão da Administração à lei e aos tribunais vem o n.º 1 do art. 3.º do CPTA delimitar o âmbito de jurisdição administrativa revelando a existência de uma reserva de Administração, uma zona da actividade administrativa não regulada por normas ou princípios jurídicos, que está fora dos poderes de sindicabilidade dos tribunais administrativos. O controle judicial da actuação administrativa nesta margem de reserva de Administração, terá de limitar-se à verificação da ofensa ou não dos princípios jurídicos que a condicionam e será um controle pela negativa, não podendo o tribunal substituir-se à Administração na ponderação das valorações que se integram nessa margem. (ver acordão STA 06/03/2007)

Maria Sacadura nº15086 subt 11

rita disse...

“Il y a dans chaque État trois sortes de pouvoirs: la puissance législative, la puissance exécutrice des choses qui dépendent du droit des gens, et la puissance exécutrice de celles qui dépendent du droit civil. (…) Lorsque la même personne ou dans le même corps de magistrature, la puissance législative est réunie à la puissance exécutrice, il n’y a point de liberté. (…) Il n’y a point encore de liberté si la puissance de juger n’est pas séparée de la puissance législative et de l’exécutrice. Si elle doit être jointe à la puissance législative, le pouvoir sur la vie et la liberté des citoyens seroit arbitraire : car le juge seroit législateur. Si elle étoit jointe à la puissance exécutrice, le juge pourroit avoir la force d’un oppresseur. »

(Montesquieu, « L’Esprit des Lois », livro XI, capítulo VI, 1748)



Talvez o senhor de la Brède devesse ter nascido meio século mais tarde, para poder explicar aos Revolucionários Franceses o verdadeiro sentido das suas palavras a propósito do princípio da separação de poderes; ou talvez isso viesse piorar ainda mais as coisas, levando-o (quem sabe?) a juntar-se a Rousseau e Voltaire nos jantares parisienses de discussão de ideias iluministas, abrindo-se na História do Pensamento Jurídico uma grave lacuna. Seja como for, Montesquieu viveu o apogeu do Ancien Régime e o ambiente que o rodeava conduziu-o a formular princípios que ainda hoje são válidos – se as pessoas o entenderam bem ou não, é já uma outra questão… que não é de todo despicienda.

Em vez de partir logo para considerações sobre o contencioso administrativo pós-revolucionário (aquele que verdadeiramente importa para enquadrar teoricamente o sistema actual), parece relevante olhar um pouco para o que se passava no Antigo Regime, uma vez que, como aponta o Prof. Vasco Pereira da Silva, «há também que atentar numa série de acontecimentos “anteriores ao parto”, que vão pré-determinar a evolução futura do sistema de controlo da Administração, já que tudo aquilo que se passa ainda dentro da “barriga da mãe” pode vir, mais tarde, a influenciar o comportamento futuro do “bebé”.»

As quatro condicionantes históricas do “pecado original” do contencioso administrativo apontadas pelo Prof. são de extrema importância e cabe desenvolver alguns pontos a elas relativos.

Senão vejamos: o Estado encarado como entidade todo-poderosa, herdeira do pensamento de Maquiavel e empunhando o largo escudo de uma Administração Pública pesada e autoritária, acaba por se democratizar por acção do pensamento liberal, assente na defesa das liberdades individuais através da limitação dos poderes estaduais, na esteira de Locke, Rousseau e Montesquieu. Não será esta a confluência de ideologias que vamos encontrar na génese do contencioso administrativo pós-Revolução? A separação de poderes, tal como tinha sido teorizada pelo nosso estimado barão, foi entendida como a justificação ideal para colocar nas mãos da Administração o seu próprio controlo (tanto que os juízes que tivessem o atrevimento de se imiscuir no controlo da Administração seriam mesmo condenados por alta traição!).

Por outro lado, os revolucionários pretendiam contrariar a grande força que os tribunais (“parlements”) tinham demonstrado na luta contra a concentração do poder nas mãos do Rei; aparentemente, essa luta coadunar-se-ia com o ideário revolucionário, mas… se se pretendia, por um lado, desconstruir o Antigo Regime, apostava-se, por outro lado, na defesa de uma Administração forte, “una e concentrada, liberta de ingerências alheias”, como refere o Prof. Sérvulo Correia – e essa Administração não poderia ser posta em causa pelos tribunais, tradicionalistas e avessos à mudança.

Curioso seria (utilizando a metáfora do Prof. Vasco Pereira da Silva) sentar os “parlements” no divã da psicanálise – certamente, teriam bastante a dizer. Apesar de estes se terem considerado, durante o Antigo Regime, como as entidades mais aptas à resolução dos litígios entre a Administração e os particulares, curtos foram os períodos em que viram essa tarefa ser-lhes prioritariamente atribuída. De facto, já no século XIV, ao abrigo do instituto das “évocations”, o Rei retirava aos tribunais os litígios em matéria administrativa, atribuindo-os ao seu próprio Conselho. Perante a resistência dos tribunais, optou-se pela criação de “jurisdições de excepção”, que, muito embora seguindo de perto a estrutura das jurisdições tradicionais, eram um factor de irritação destas últimas, que, sempre que possível, tomavam decisões em favor do particular, ignorando os interesses públicos. Em 1641, Richelieu proíbe categoricamente os “parlements” de julgarem a Administração, sendo esta proibição reiterada nos anos subsequentes. Como refere François Burdeau, a figura do “Rei justiceiro” transforma-se numa personagem de dupla face: mesmo conservando o seu aspecto tradicional, aparecerá como um monarca centralizador, inclinado para intervir a todos os níveis. “À une gestion judiciaire de l’État allait se substituer une gestion administrative”. A aparência de justiça consubstanciada pela independência dos “parlements” e pela criação de “jurisdições de excepção” escondia, na verdade, uma “promiscuidade”, já então patológica, entre o poder administrativo e o poder judicial. É fácil imaginar estes tribunais sentados no divã do consultório de Freud, confundidos com tanta rejeição! Pois se eles tivessem conhecimento da actual preocupação com a tutela dos direitos dos particulares, qual não seria a perplexidade com que encarariam as palavras de um dos “intendants” do Rei, em meados do século XVIII, que afirmava “je ne puis assez vous représenter combien il serait préjudiciable aux intérêts de l’administration d’abandonner ses entrepreneurs au jugement dês tribunaux ordinaires, dont les príncipes ne peuvent jamais se concilier avec les siens”, considerando que as decisões das jurisdições ordinárias eram demasiado favoráveis aos particulares!

Fácil é concluir também pela transposição do modelo do Conselho do Rei para o Conselho de Estado, verificando-se a adopção da mesma estrutura, a manutenção na nova instituição de alguns dos membros da antiga, e ainda a similitude dos objectivos de protecção da Administração.

Na mesma linha, deve observar-se a “continuidade de técnicas e instrumentos jurídicos de controlo da Administração, antes e depois da Revolução”, desde a teoria dos vícios do acto administrativo até ao célebre princípio segundo o qual “julgar a Administração é ainda administrar”.

Parece importante sublinhar as críticas tecidas pela “Cour des aides” à quantidade de litígios retirados pelo Conselho do Rei às jurisdições ordinárias; ainda durante o Antigo Regime, já havia vozes que se levantavam contra a confusão de poderes. Denunciava-se a arbitrariedade a que conduzia tal situação, alicerçada na exorbitância dos poderes da Administração, defendendo-se que esta nunca deveria ultrapassar o seu papel: “Il ne peut jamais appartenir à l’Administration d’interpréter la loi déjà faite, ni de juger le particulier qui prétend s’y être conforme”, correndo-se, de outro modo, o risco de esvaziamento das leis.

Ora… vistas as raízes do sistema francês, cabe tentar perceber o porquê da perversão do princípio enunciado por Montesquieu, apontada na afirmação em análise, e os seus efeitos práticos.

Deixemos de lado a caracterização dos períodos de evolução do contencioso administrativo, já amplamente descritos no primeiro comentário, sendo certo já estar bem assente na mente de todos a progressão do período de total confusão até à justiça delegada, passando pela fase da justiça reservada. Retenhamo-nos no efeito fundamental desse percurso histórico: a consagração de um sistema em que “o particular não era visto como um sujeito jurídico, titular de direitos e submetido a deveres, mas antes era considerado como um mero “objecto” do poder público.”

Seria essa a ideia de Montesquieu? Mais importante ainda, será que os revolucionários tinham noção do que estavam a criar? Afigura-se razoável imaginá-los, quais crianças a quem um adulto ralha, esconderem as mãos atrás das costas e afirmarem “foi sem querer!”. Porquê? Porque a sua intenção era simplesmente separar as águas entre tribunais e administração. Como ressalva o Prof. Sérvulo Correia, referindo-se à obra de Georges Vedel, “para os homens da Constituinte de 1970, o princípio da separação de poderes não implicava necessariamente a subtracção do contencioso administrativo aos tribunais judiciais e não terá sido isso que se pretendeu com a Lei de 16-24 de Agosto de 1790, mas tão só interditar ao juiz que se substituísse aos órgãos administrativos no desempenho de quaisquer actividades e na execução de quaisquer operações que não respeitassem directamente à solução de um litígio. (…) O princípio fundamental reconhecido pelas leis da República apenas estabelece como limite ao legislador ordinário o não entregar ao juiz judiciário o contencioso de anulação mas não os outros meios processuais do contencioso materialmente administrativo”.

Embora este também não seja um entendimento válido para o quadro principiológico e normativo que se verifica no moderno contencioso administrativo (veja-se, a título de exemplo, o art. 3º, n.º 3 do CPTA), já parece mais compreensível a escolha dos revolucionários se atentarmos neste pormenor. Não se lhes pode negar “a boa intenção”, apesar de esta ter redundado num sistema “acto-cêntrico”, de pendor objectivista (com a consequente deterioração da protecção dos direitos subjectivos dos particulares), em que a máquina administrativa era demasiado pesada (de centralizada em torno do governo e baseada no recurso hierárquico), autoritária e agressiva, sendo a relação entre esta e o particular caracterizada pela sua fugacidade e instantaneidade.

O sistema do administrador-juiz veio a ser progressivamente ultrapassado. Da maior importância foi a criação do Conseil d’État, em 1799, apesar da já referida similitude com o Conselho do Rei; a intervenção dos conselhos de prefeitura constituiu também um passo no processo de descentralização e jurisdicionalização; a individualização da secção de contencioso dentro do Conseil d’État, em 1806, representou a afirmação expressa da especificidade dos litígios em matéria administrativa; em 1849, o Conseil d’État ganha poder jurisdicional próprio (suprimido durante o Segundo Império); finalmente, em 1889, aquando do “arrêt Cadot”, ultrapassa-se a teoria do “ministro-juiz” e os tribunais administrativos passam a julgar em primeira instância os litígios nascidos na área da sua competência territorial.

Apesar desta evolução histórica, ainda hoje o contencioso administrativo francês se mantém “ancorado no princípio da proibição aos tribunais judiciais de decidir sobre a legalidade das decisões administrativas”, como sublinha o Prof. Sérvulo Correia; os tribunais permanecem “organicamente ligados ao executivo e não ao poder judiciário”, o que revela a incapacidade de ultrapassar concepções antigas. Percebe-se que ainda há muita psicanálise a fazer neste âmbito…

Resta referir, em jeito de conclusão, mas também lançando a deixa para futuras investigações, que é bastante óbvio que o quadro descrito constitui uma perversão do princípio da separação de poderes, não sendo porém assim tão evidente que constitua uma subversão do pensamento de Montesquieu…



[Nota: na intenção de abordar o tema de forma complementar ao comentário já publicado, facilitar a leitura e enriquecer a discussão, tentei analisar aspectos diversos dos observados pela colega, pelo que preferencialmente me abstive de repetir considerações já tecidas.]


Ana Rita Mota, sub-turma 10, n.º 14469

Hauriou disse...

De facto,a função admnistrativa é tal como a função jurisdicional,apresentam-se como estando subordinadas ao Estado. A grande divergencia entre ambas reside nos fins pretendidos pelas mesmas, é certo que, ambas baseiam-se na constituição e nas leis,mas estas colidem na medida em que, para a administração as leis assumem-se como um meio, isto é, apresentam-se como uma forma, de alcançar a satisfação das necessidades colectivas, tornado assim, as leis num elemento estritamente necessário para prosseguir o seu objectivo primordial,que é a manutenção da Sociedade, nas suas diversas vertentes, em contraposição, a função jurisdicional tem um duplo sentido, aplicação da lei apresenta-se simultaneamente como um meio e um fim. Desta forma, a indole da função jurisdicional é estritamente a produção da restauração da paz juridica, não existe de facto nenhum objectivo subentendido, será apenas este. a função jurisdicional actua como um "dever ser" e não como um um ser para dar origem a um resultado. A função jurisdcional evidencia-se como um fim em si mesma, como o conhecido filosofo Kant proferia. A sua funçao esgota-se em si mesma.
Ora, tudo isto para afirmar que, desde os primordios do direito contencioso administrativo que estas duas realidades colocaram-se na mesma vertente, conduzindo, a uma verdadeira preversão do principio da separação de poderes,aliás tao proclamado pelos liberalistas,verificando-se que, a administração julgava-se a si mesma, através de um orgão que continuava a pertencer á administração, o denomindado conselho de estado, comprometendo os direitos dos particulares e o principio preponderante da separaçao de poderes.
Esta realidade, consolida-se ao longo dos anos, chegando-se até a concluir que "julgar a administração ainda é administrar" como proferia LaFerriére, conduzindo assim ao verdadeiro "pecado original", sendo que, a admnistração subtraia-se do controlo dos tribunais. Embora tenha havido posteriormente uma Evoluçao do sistema de justiça reservado para o sistema de justiça delegada.
Em suma, concluimos que embora a genese do direito contencioso administrativo tenha sido bastante paradoxal a até mesmo promiscua será neste realidade que nos iremos debruçar para então entrar nas grandes linhas de reforma do direito contencioso administrativo.

Cátia Ferreira sub 11, n 15236

Unknown disse...

A Revolução Francesa é um marco fundamental para a evolução complexa do Contencioso Administrativo. Se é verdade que se lançaram todos os dogmas fundamentais para chegarmos ao que se exige num Estado de Direito, certo é que muitos foram os obstáculos que impediram. Senão vejamos.
No estado pré-constitucional ou Absoluto, encontrávamos toda a negação dos pilares fundamentais para a construção do modo como se espera que seja encarado, teorizado e construído o Contencioso Administrativo. O que se destaca, em oposição, é a concentração de poderes, ausência de direitos fundamentais e a prerrogativa régia que permitia ao monarca derrogar o direito no caso concreto. No fundo, qualificava-se como prerrogativa régia a possibilidade do monarca decidir que o “geral e abstracto não se aplicaria a um caso particular”. Os direitos existentes na altura não tinham a característica que hoje lhe conferimos e que os particulariza como verdadeiros direitos fundamentais, ou seja, não eram direitos por decorrência da dignidade da pessoa humana.
Posto isto, não mais necessitamos de tentar encontrar uma justificação para afirmar o que resulta já do exposto. O monarca era simultaneamente o supremo legislador, o supremo juiz e o supremo administrador. Bem colocadas as questões, e utilizando o que a doutrina vulgarmente apelida, tínhamos o sistema administrador-juiz, ou seja, um órgão simultaneamente órgão administrativo e órgão judicial. Ou se quisermos, ainda mais claramente, não existia qualquer separação orgânica entre a função administrativa e judiciária.
Chegamos ao Estado Liberal nascido das revoluções do final do século XVIII e início do século XIX. Três grandes dogmas do Estado Liberal: separação de poderes, afirmação de direitos fundamentais e do princípio da legalidade. Em suma, um poder público que se queria limitado. No entanto, três grandes dogmas que, na prática, foram por completo distorcidos. De resto, a fase que vai desde 1789 a 1799 é uma rigorosa continuidade do Estado Absoluto. O que tínhamos não era mais do que o já existente sistema de administrador-juiz, ou seja, o único controlo da actividade administrativa era asseguradao pelos próprios órgãos da administração activa. Nesta altura, ninguém controla jurisdiconalmente a Administração. Ela controlava-se a si própria. Muitas são as razões que podem explicar. Avanço uma à qual atribuo especial importância: os tribunais eram vistos como uma autêntica força de bloqueio, de reacção contra o antigo regime. Eram encarados como uma força capaz de impedir “a nobre missão” que cabia agora à administração pública, de “apagar as distinções de classes, de costumes, e quase de nacionalidades, que o poder real não tinha podido fazer desaparecer” (Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”). Em suma, tudo isto conduziu a uma medida imediata: sob o dogma do princípio da separação de poderes, entenderam-no de forma estanque e rígida, significando isto que cada função do Estado deveria ser exercida por órgãos diferentes do aparelho estadual e que cada um deles deveria exercer uma e, somente, uma daquelas funções. Não podemos esquecer que mesmo no sistema de justiça delegada, os órgãos de controlo administrativo continuavam a ser órgãos administrativos, embora numa fase mais avançada, independentes. O sistema de administrador-juiz permanecia intacto. Sob inspiração de Montesquieu, o que instituíram não foi a separação e interdependência de poderes (o seu verdadeiro, acrescento, único sentido possível), ou seja, uma dimensão positiva e negativa em conformidade com a faculté de statuer e a faculté d`empêcher, também de Monstesquieu. “Julgar a Administração ainda é administrar” é a expressão máxima do entendimento paradoxal da separação de poderes daquele tempo. Seguindo o pensamento de então, não poderia ser de outra forma. Face aos receios, face ao entendimento próprio que atribuíram, considerar que “julgar a Administração ainda é julgar” constituiria neste largo período uma verdadeira violação da separação de poderes, pois implicaria uma intervenção ou, se preferirmos, uma “invasão” na esfera de actuação correspondente à função administrativa que deveria caber tão-somente aos órgãos administrativos. Mais se diga para confirmar que o que realmente se criou e manteve foi uma confusão, uma promiscuidade entre a tarefa de administrar e de julgar: o único contencioso praticado era o contencioso de mera anulação, pois os chamados tribunais administrativos, que mais não eram do que órgãos da Administração, nada mais poderiam fazer do que anular as condutas da Administração. Em suma, não causa estranheza que a actividade dos “tribunais administrativos” fosse durante bastante tempo pró-administração, donde se retira que o Direito Administrativo nasce do desiderato de colocar a Administração Pública numa posição de supremacia relativamente aos particulares. Não surpreende que o particular fosse considerado objecto da Administração Pública.
Em geral, somente com o surgimento do Estado Social, constatamos verdadeiras transformações: alterou-se o paradigma, o princípio da separação de poderes foi alvo de uma reformulação no seu entendimento base e, sobretudo, destaco a criação de verdadeiros tribunais administrativos. É a fase da “confirmação” do Contenciosa Administrativo.

Sónia Dantas, Nº 15198 - Sub 11

Catix disse...

(Proponho-me a fazer um comentário sucinto, pois creio ser essa a filosofia dos comentários nos blogs).

A situação descrita tem origem nos primórdios dos Direito Administrativo, mais concretamente em França no século XIX. Referimo-nos então, ao sistema administrador-juiz, à fase que o Professor Vasco Pereira da Silva designa por "pecado original", ou seja, ao nascimento deste ramo do Direito.
A indiferenciação entre administrar e julgar estava patente desde logo, no Acórdão Blanco em que, após se tentar aferir qual o tribunal competente para julgar o caso, se declara que a competência seria do Conselho de Estado o qual, era um órgão administrativo! Apesar de o tribunal de conflitos ter atribuído competência ao Conselho de Estado, não existiam normas para se condenar a Administração.
Actualmente, alguns séculos depois, já podemos afirmar com segurança que a Administração administra e os Tribunais julgam. Uma verdadeira noção de separação de poderes não pode confundir estas funções caso contrário, estaremos a por em causa princípios como o respeito dos interesses dos cidadãos, a igualdade, a justiça e a imparcialidade. São estes princípios que nos permitem viver num Estado de Direito e são, por isso, essenciais ao funcionamento das instituições democráticas nas quais, os cidadãos devem confiar.
Em suma, julgar a Administração é, pura e simplesmente, julgar.

Cátia Rodrigues
Aluno nº 15072
Subturma 11

samuel henriques disse...

Do Administrador-juiz aos nossos dias


Feita a Revolução, o Estado Liberal sucedeu ao Estado Absoluto. A França estava agora livre do poder despótico do monarca e a liberdade dos seus cidadãos assegurada, diziam os revolucionários, pois as três funções do Estado distribuir-se-iam pelos seus respectivos poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário. Desta forma estaria controlado o poder, por outro poder, num esquema de divisão orgânico-funcional que, por encarregar apenas uma função a cada poder, garante o seu mútuo controlo. E se assim era, por respeito à separação de poderes, não poderia jamais o poder Judiciário interferir com o poder Executivo, continuavam os revolucionários, pois julgar a Administração é ainda administrar! Será assim, Monsieur Montesquieu?


Em 1748, Montesquieu publicou a sua obra De L’Esprit des Lois. Nela, a partir das percepções extraídas do sistema político britânico, o autor retoma a ideia da separação de poderes, inventada por John Locke, e identifica agora três poderes comuns a qualquer Estado: o poder legislativo, o poder executivo e o poder judiciário.
O poder legislativo assumiu-se com supremacia sobre os demais, influência do pensamento democrático da lei, porque, sendo entregue ao parlamento, órgão dotado de legitimidade representativa, era fruto da soberania popular, da vontade geral, que nunca poderia estar errada. Por seu lado, poder executivo tinha por missão pôr em acção os comandos da lei. Por último, o poder executivo era entendido como um poder nulo, era a boca que pronuncia a palavra da lei, pois o seu fim era apenas o de aplicar as disposição legais nos exactos termos em que foram produzidas pelo parlamento, subsumindo os factos à norma. Mais: por força da interpretação que os revolucionários franceses fizeram do principio da separação de poderes, a função judiciária vai-se cingir à resolução de conflitos entre particulares, excluindo à jurisdição dos tribunais ordinários a resolução de querelas entre administração e administrados: julgar a administração é ainda administrar.
É desta forma que chegamos ao paradoxo de, em nome da separação de poderes, o julgamento de litígios administrativos ser entregue aos órgãos da Administração, numa confusão entre as funções de administrar e de julgar, que resulta na sua total indiferenciação.

Mas então, o que correu mal? Não é a ideia da separação de poderes que não é válida. Aliás, este princípio é, ainda hoje (apesar de evoluído e já pensado em diferentes moldes), um princípio basilar dos Estados que se dizem de Direito, por isso presente no quadro constitucional da generalidade dos Estados ocidentais. A instituição do sistema que mais tarde viria a ficar conhecido como do Administrador-juiz antes é explicável se tivermos em atenção o pensamento que fundou a separação de poderes arquitectada por Montesquieu e todos os circunstancialismos que rodearam a Revolução Liberal francesa.
Como se referiu acima, Montesquieu toma o cenário político britânico do seu tempo como modelo para construção da teoria da separação dos poderes do Estado. Mas Estado é conceito que não existe no Direito inglês. Quer dizer, a peculiar evolução do Direito britânico dispensou a figura de uma entidade unificadora do poder político, ao contrário do que aconteceu no continente europeu. Por cá, tal figura havia sido teorizada por Hobbes e Rousseau, que fundaram o Estado na vontade das pessoas que o constituíam, através de um pacto social. E, a partir desta figura de Estado democrático, Locke e Montesquieu pensaram o Estado Liberal, baseando-o na ideia da sua auto-limitação, por forma a assegurar a liberdade individual dos pactuantes. Assim se chega à ideia continental do Estado como figura unificadora das funções realizadas pelos poderes políticos, com legitimidade para actuar por força da vontade geral. Ideia esta que não existe no direito britânico, pois a administração e o administrado estão em pé de igualdade e a legitimidade da actuação administrativa decorre da lei, não de nenhuma entidade abstracta super poderosa que se manifesta através da vontade geral.
Isto para demonstrar que a interpretação que Montesquieu faz da realidade inglesa é turvada pela situação política do continente, que leva à aglutinação das ideias de Estado entidade unificadora e separação de poderes, com as consequências referidas.
E se essa deturpação resultava já da obra de Montesquieu, mais se agrava aquando da sua aplicação prática em França, distanciando-se ainda mais do modelo inspirador. É que o autor nunca previu uma separação tão rígida de poderes, levada ao extremo de encarregar cada órgão de uma única actividade em que especializava, como aconteceu no novo sistema liberal. Na sua obra, exigia-se a separação funcional dos poderes, por forma ase limitarem e controlarem, mas admitia-se uma relação mútua e a colaboração entre os poderes, que não foram concretizadas no caso francês. Escreve Montesquieu: “Se o monarca participasse da legislação com poder de decidir, não haveria mais liberdade. Mas, como é necessário, no entanto, que participe da legislação para se defender, é preciso que tome parte nela com a faculdade de impedir.(...) Sendo o corpo legislativo composto de duas partes, uma prende a outra com sua mútua faculdade de impedir. Ambas estarão presas ao poder executivo, que estará ele mesmo preso ao legislativo. Estes três poderes deveriam formar um repouso ou uma inacção. Mas, como, pelo movimento necessário das coisas, eles são obrigados a avançar, serão obrigados a avançar concertadamente.”
Por outro lado, várias vicissitudes, ainda dos tempos do Antigo Regime, vão influenciar a justiça administrativa do Estado pós-revolucionário francês. Em primeiro lugar, a reconhecida resistência ao regime absolutista desempenhada pelos parlamentos (tribunais judiciais), dominados pela aristocracia, leva a que os revolucionários acautelem o mesmo se suceda em relação à sua governação, retirando-lhes a competência para conhecerem dos litígios administrativos. Então, nesta lógica, é criado o Conselho de Estado como jurisdição exclusiva da Administração, tal como no Antigo Regime se havia criado o Conselho do Rei, para evitar que os tribunais pós-revolucionários fizessem o que os parlamentos pré-revolucionários fizeram. Também em continuidade com o que vinha do regime anterior, e apesar de toda a actividade criadora do Conselho de Estado, os meios técnico-jurídicos são inspirados ou mantém-se idênticos (com maiores ou menores variações semânticas) aos do regime derrubado, até porque os juizes de então tinha sido formados no seio do Antigo Regime. Em suma, o enquadramento teórico de fundo da posição da Administração relativamente ao poder judicial é o mesmo: ambos são poderes do Estado enquanto figura unificadora, ambos concretizam diversas formas de actuação do mesmo Estado. Ou seja, entre o Estado Absolutista e o Estado Liberal franceses há uma continuidade e não uma ruptura que legitima a criação de poderes de auto-tutela executiva, de juizes privativos da Administração e de poderes especiais de autoridade, pois os poderes de administrar e de julgar têm a mesma origem, o Estado enquanto entidade unificadora, e mais não são do que diferentes formas da sua actuação.


É desta forma que assim coexistirão o sistema de administração judiciária (inglês) e o sistema de administração executiva (francês). Aquele, porque desconhece o tal conceito unificador de Estado, trata a Administração como qualquer outro sujeito de direito e, por isso, submetido à jurisdição comum (e se os particulares devem cumprir um acto administrativo é porque, fundando-se esse na lei, o seu incumprimento mais não é do que o incumprimento da lei). Este outro, concebe a Administração como uma função do Estado, executora da vontade geral, e, por isso, concede-lhe prerrogativas sem equivalente nas relações privadas, assim como os já referidos poderes de auto-tutela e uma jurisdição exclusiva.
No entanto, neste período, dá-se um avanço no sentido da jurisdicionalização da justiça administrativa francesa. O Conselho de Estado, fruto do grande prestígio que foi adquirindo ao longo da sua actuação, deixou de ver as suas decisões sujeitadas à homologação dos órgãos da Administração activa e passou a ter a última palavra na dirimição dos litígios que lhe eram submetidos. Ou seja, passou-se de um sistema de justiça reservada para um sistema de justiça delegada, com benefício para os particulares, pois se antes o acto administrativo protegia apenas a actuação da Administração, agora passa a servir também de garantia aos particulares, na medida em que vai ser analisado por um órgão independente (ainda que com poderes limitados, decorrentes da posição especial da Administração enquanto poder do Estado), mas que procura, numa lógica liberal, a necessária protecção dos valores individuais face à actuação da Administração autoritária.
Então podemos arriscar dizer que agora julgar a Administração é já julgar (mas pouco).

A grande revolução no paradigma do contencioso administrativo continental viria a dar-se com o advento do Estado Social, nos fins do século XIX e inícios do século XX. A ideia liberal de que quanto menor fosse a intervenção do Estado, mais assegurada estaria a esfera de direitos e liberdades dos particulares não mais satisfaz as necessidades dos cidadãos. O Estado é agora chamado a combater a miséria operária, estabelecendo condições mínimas de sobrevivência a todos os cidadãos, assim como é também chamado a intervir na economia, corrigindo disfunções do mercado de livre concorrência.
Posto isto, a Administração passar a ser não só agressiva dos direitos dos administrados, mas também prestadora de bens e serviços, capaz de satisfazer novas necessidades cuja satisfação é agora atribuída ao Estado.
Se a esta ideia de Administração Prestadora aliarmos as ideias de democratização da actuação administrativa que então se desenvolve (sob as formas de descentralização, desconcentração e privatização, que resultam na pulverização da função administrativa), conseguimos compreender como a actuação administrativa se vai diferenciar daquela que tinha sido prosseguida até agora e como revestirá às mais diversas formas, dos antigos regulamentos às normas de planeamento e directivas ou contratos, para exemplificar como agora o acto administrativo à agora apenas uma de muitas formas de actuação.
Desta forma é fácil perceber a enorme mudança que se exige ao sistema contencioso administrativo, estruturado até aqui como uma fiscalização meramente defensiva dos cidadãos. A jurisdição administrativa torna-se então não só o principal meio de defesa dos particular face à Administração, como um meio de defesa capaz de assegurar a plena satisfação das suas pretensões. Neste sentido foi consagrada a plena jurisdicionalização das instituições de fiscalização administrativa: exige-se agora que os cada vez mais frequentes litígios entre Administração e particulares (como resultado da multiplicidade de pretensões que são agora atribuídas à Administração) sejam julgados por verdadeiros tribunais – o que leva a que a legislação dos Estados modernos evolua no sentido de desligar o contencioso administrativo da função de administrar, dando lugar à plena jurisdicionalização da fiscalização da actividade administrativa. Nesta nova lógica, foi também aperfeiçoado o contencioso de anulação, tendo em vista um controlo do exercício do poder administrativo mais eficaz e uma mais completa satisfação das posições de vantagem dos particulares. E, sobretudo, novas funções a cumprir levaram ao aparecimento de novos meios jurisdicionais que já não só complementam os típicos meios contenciosos de anulação do acto administrativo, mas que tendem a aproximar a relação processual entre a administração e administrado da relação processual civil, resultando assim também numa aproximação entre os sistemas britânico e continental. Desta forma hoje, tomando o caso nacional como referência, é já possível o uso de acções de simples apreciação ou de condenação da administração, ao lado das clássicas acções de anulação dos actos administrativos.
Quer isto dizer que, hoje, julgar a Administração é verdadeiramente julgar.

Mas se assim é, há que perguntar qual o estado actual do princípio da separação de poderes, como preconizado por Montesquieu. Isto é, se já não restam dúvidas que julgar a administração cabe ao poder Judiciário, concretizando a interdependência necessária ao sistema de separação de poderes, resta saber se essa interpenetração de funções está ou não sujeita a uma reserva de administração ou se, pelo contrário, resulta na absoluta e indiscriminada sindicabilidade de todos os actos administrativos perante os tribunais.
Parece que assim não será, isto é, embora seja possível defender a total sindicabilidade de todos os actos administrativos, assim como, em abstracto, a tese contrária não será de negar a priori, decorrerá do actual pensamento sobre o princípio da separação e interdependência de poderes, que há um núcleo inatacável que mais não é do que a reserva de administração – como, aliás, defende a generalidade da doutrina.
Nesse núcleo cabem as atribuições que, em função da sua natureza e da aptidão estrutural da Administração para certas tarefas, serão mais bem conseguidas pelo poder Executivo do que qualquer outro. São resultado da dimensão positiva do princípio da separação de poderes, que lhe atribui um uma esfera de actuação em que não poderá ser substituído por outro órgão e em que a Administração está apenas limitada pelo bloco de legalidade. Falamos, é claro, da discricionariedade e da margem de livre apreciação administrativas.

Posto isto, concluímos que hoje, de acordo com o princípio da separação e interdependência de poderes, julgar a administração é efectivamente julgar, dentro dos limites que esse mesmo princípio impõe.


Samuel Henriques
n.º 15 341, sub-turma 10

Unknown disse...

Esta frase caracteriza o modelo administrativista, do “administrador-juiz”, de “autotutela” ou de “jurisdição reservada”, ou ainda como o Prof. Vasco Pereira da Silva defende corresponde à Fase do “Pecado Original” da evolução do Contencioso Administrativo, originário da Revolução Francesa de 1789, que assentava numa concepção rígida da separação de poderes segundo a qual os orgãos administrativos estavam autorizados a exercer uma actividade materialmente jurisdicional, isto é, estavam incumbidos da tarefa de se julgarem a si próprios. Surge como reacção a uma certa desconfiança existente em relação ao poder judicial ( de composição nobiliárquica e conservadora) pretendendo-se evitar que o juiz se fizesse de administrador, substituindo- se aos orgãos administrativos no desempenho das suas actividades e na execução de operações que não visassem a resolução de um lítigio. Assim, o Contencioso, nesta fase, surgia como instrumento de que a Administração Pública se servia para a realização do interesse público em detrimento da protecção de interesses individuais. Foi marcadamente influenciado pelo Antigo Regime, nomeadamente pela Concepção de Estado, sendo este aquele que se esconde por detrás da Administração e vai obrigar à criação de um contencioso especial, já que era inconcebível o seu julgamento por qualquer juiz; pela Concepção da Separação de poderes apresentada por Montesquieu em “De L´Esprit des Lois” que considerou que existiam em cada Estado três espécies de poderes: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito público e o poder executivo daquelas que dependem do direito civil; pelo Conselho do Rei, que influenciou o aparecimento do Conseil d´Etat em 15 de Setembro de 1799, que para além da missão de aconselhamento ficava também incumbido da resolução dos litígios administrativos; e, pelo facto de o Contencioso francês dar continuidade às técnicas e instrumentos jurídicos de controlo da Administração, antes e depois da Revolução.
No culminar do Sistema do “Administrador-Juiz”, a partir de 1872, passou-se de um Sistema de “Justiça Reservada” para um Sistema de “Justiça Delegada”, no qual o Conselho de Estado passa a ter poderes decisórios em matéria de controlo da Administração através da delegação de competências, ou seja, deixa de apenas emitir meros pareceres sujeitos à homologação do Chefe de Estado.
Contudo, esta passagem para um Sistema de “Justiça Delegada” não originou a mudança do Sistema do "administrador-juiz” para o dos Tribunais Administrativos, uma vez que a plena jurisdicionalização dos Tribunais Administrativos só acontece na Fase da “Confirmação” no Estado pós-Social.
Actualmente prevalece o entendimento de que “Julgar a Administração é verdadeiramente julgar” oriundo do Modelo judicialista, que parte do pressuposto de que toda a actividade da administração, mesmo que dotada de alguma discricionariedade, está subordinada ao Direito e que os tribunais têm competência para conhecer de todos os litígios decorrentes das relações jurídicas administrativas interpessoais.


Rita Silva nº14597 Subturma 11

Anabela Ribau Ramos disse...

Desejando ser o mais breve possível e não repetir os presentes comentários, a frase enquadra-se nos aspectos da evolução do Direito Administrativo, na época do Estado Liberal (século XVIII a XIX). Com efeito, o Contencioso Administrativo tem a sua origem na Revolução Francesa (1789) orientado para a protecção não dos interesses particulares mas sim dos interesses públicos. Como se sabe, Locke e Montesquieu (contra Rousseau) foram os principais defensores do princípio da separação de poderes: os 3 poderes deveriam caber a diferentes órgãos, para não sobrecarregar demasiado cada um deles e porque a cada órgão deveriam corresponder aquelas funções para as quais ele estava devidamente mais habilitado). Como consequência tem-se a criação de um "mero juíz ocasional" (o "juíz doméstico") dentro da própria Administração, uma vez que esta entidade passou a querer julgar os seus próprios litígios. Daí que, o Doutor Vasco Pereira da Silva se refira a esta primeira fase como a da Promiscuidade entre os poderes administrativo e judicial, com o consequente modelo do administrador-juíz.
Perante o caso Agnès Blanco (onde surge uma situação de competência negativa), o Tribunal de Conflitos defende que, estando em causa uma empresa pública, a competência para a resolução daquele litígio cabia à Ordem Administrativa. Era preciso criar um direito especial que protegesse a Administração (nomeadamente em casos destes) - uma das prioridades era assegurar a posição da Administração, em detrimento dos direitos dos particulares, porque era (e ainda é?) uma entidade com competências exorbitantes. Esta seria também uma forma de afirmar a autonomia do Direito Administrativo. Era vedado aos tribunais judiciais invadirem ou controlarem a actividade administrativa, o que levou alguns autores a defender uma concepção rígida da separação de poderes - o que justificou a criação do Conselho de Estado em 1789, órgão especial "meio administrativo, meio jurisdicional". Segundo o Doutor Vasco Pereira da Silva "os tribunais comuns podiam controlar a Administração sem com isso por em causa o poder executivo, se eles apenas exercessem as funções para as quais estavam vocacionados, que era julgar e não administrar". Na verdade, o que se verifica no seio da Administração é o facto de esta tanto administrar como julgar. Tanto se quis seguir à risca a separação de poderes que afinal o que se verificou foi o oposto - concentração dos poderes judiciais e executivos na própria Administração. Se se tivesse admitido que julgar a Administração é, efectivamente, julgar e, portanto, da esfera de competência dos órgãos judiciais, não se assistiria à confusão de tarefas. Contudo, preferiu-se admitir que solucionar conflitos da Administração compete à esfera deste órgão (por exemplo, por estarem em causa entidades públicas) - controlo interno. Daí, o surgimento do tal "juíz de se trazer por casa" / "juíz para as ocasiões", que actuasse na e para a Administração, e o respectivo impedimento dos tribunais.
Pessoalmente entendo que a concepção rígida da separação de poderes foi longe demais; os tribunais comuns julgavam, a Administração administrava - tal, concerteza, não poria em causa a autonomia de cada um, desde que não extravasassem para além das suas competências, sem receio de cada um perturbar o normal funcionamento do outro.

Anabela Ramos, nº15369, subturma 11

Лев Давидович disse...

Fazendo vénia sobre a frase, antes de tirar qualquer conclusão, perceber alguma consequência prática do que ela diz, ou demonstrar concordância ou discordância, cumpre fazer algumas perguntas, perceber o que nos é dito e, acima de tudo, porque é que nos é dito. Finalmente, as respostas aparecerão.

Nesta senda, a primeira pergunta é a seguinte: o que é que a afirmação, cujos méritos da concepção se dividem entre o Prof.Dr.Vasco Pereira da Silva e Portalis, nos diz? Numa palavra: o entendimento do princípio da separação de poderes, desenvolvido por Montesquieu, além de pessimamente interpretado, estaria a ser derrogado. Efectivamente o foi. Em vez de se utilizar os tribunais para controlar e julgar a administração, o caminho a seguir foi distinto, pelo menos numa fase inicial: erroneamente, os revolucionários viam o controlo da administração como uma forma de a influenciar, pelo que as tarefas outrora cometidas à administração seriam agora incumbência do tribunal.

Há que perceber porque é que funcionava este entedimento. No seguimento da psicanálise levada a cabo, até agora, no estudo desta cadeira, sobre as origens do contecioso administrativo, será necessário visitar um "antes" para entender um estranho "depois". O momento chave é a revolução Francesa. O "antes desse momento é o Estadi Absoluto, pré-constitucional. Qualquer leigo definiria este modelo de estado só pelo nome. De facto, neste "Ancien Regime", não se podia falar em administração, em aparelho administrativo. Na verdade, o principal obstáculo à sua existência eram os "parlements", tribunais comuns que não eram mais que um garante da continuidade de um monarca juiz, legislador e administrador. Pensariam, e bem, os revolucionários que era poder a mais para um homem só. O "depois" da revolução teve multiplas "bandeiras", entre as quais separar os poderes e as funções. Lembre-se o artº13 da lei 16-24 Agosto de 1790, que proibia os juízes de perturbar a administração. Perante este cenário, a questão que emerge é: o que é que falhou? Terá falhado o corte efectivo com o passado, neste primeiro momento. Terá havido uma tomada de poder pelas forças revolucionárias que levou a que nada os detivesse de fazer mundanças de fundo. Como em todas as revoluções conhecidas, o excesso impera, de início, sendo que depois se esbate. Posteriormente, evoluiu-se.

Durante esta fase, a que a regência, em várias obras, apelida de "Pecado Original", o poder judicial está a cargo de um "administrador que era juiz e um juiz que era administrador".

Como se disse supra, há consequências e conclusões a tirar. A primeira consequência é o facto de ter levado tanto tempo a desenvolver-se, sobretudo em Portugal, um contencioso de plena jurisdição. Em França, por exemplo, os tribunais ainda não podem decidir sobre a legalidade das decisões administrativas, os tribunais comuns, entenda-se. Nas palavras de Sérvulo Correia, "A separação de poderes trasnformou-se numa separação de funções no seio de um mesmo poder, o princípio da separação de poderes converteu-se em princípio da separação entre juiz administrativo e administração activa". Voltando a Portugal, pode dizer-se que a consequência de um nascimento assim atribulado teve reflexos na construção do modelo de contencioso de que hoje dispomos. De multiplas fases (1832 a 1933; de 1933 a 1974; de 1974 a 2004; 2004 adiante) surgiu um código essencialmente subjectivista, indiciador de vários anos de erosão de outros modelos tendencialmente dferentes.

A conclusão a tirar terá por base um ditado popular: O que nasce torto, tarde ou nunca se endireita". Digamos que, nesta matéria, nos ficámos pelo "tarde"

Duarte Cadete, subturma 11, nº15199

(Peço desculpa se me repeti ou pouco inovei, mas não tive a oportunidade de ler os comentários dos colegas)

Gustavo disse...

O Estado absoluto é considerado, pela generalidade da doutrina, como o anti-modelo contra o qual se erguem a teoria e a construção prática do estado de direito.

No absolutismo a vontade arbitrária do Príncipe, que se identificava com o Estado e a administração, impõe-se à medida do gradual desaparecimento das possibilidades de defesa judicial dos particulares relativamente às ofensas do Poder, não obstante a crescente importância que a regra de direito assumiu no domínio da disciplina jurídica das relações entre os indivíduos.

Salienta-se que os parlamentos e tribunais imperiais, na Alemanha e na França, que tratavam igualmente de interesses públicos e privados ou especificamente das relações entre o Príncipe e os súbitos, perderam progressivamente as faculdades de tutelar os direitos dos particulares contra o soberano que, por sua vez, invocando cada vez mais frequentemente um direito de autodefesa contra os súbitos se dispensava de propor acções judiciais para valer os seus privilégios. O direito de intervenção do Príncipe, que era outrora excepcional, com o despotismo iluminado transformou-se em regra, e sempre que este o considere necessário, intervém sem limites em todos os domínios, dos mais aos menos importantes.

Os particulares em matérias de administração podiam ser lesados pela actividade administrativa sem qualquer protecção. À excepção da responsabilidade pessoal por actos ilícitos, os particulares não dispunham de quaisquer mecanismos de defesa perante o Estado.

É contra este poder régio e despótico que se dão as varias revoluções liberais, nomeadamente a revolução Francesa de 1789, que varreram a Europa no final do século XVII, no século XVIII e no inicio do século XIX e se estenderam ao lado de lá do Atlântico. Estas apoiam-se em autores como Rousseau, Locke e Montesquieu.

Montesquieu propõe uma divisão entre o poder legislativo (exercido pelo Parlamento), um poder Judicial (exercido pelos tribunais) e um poder executivo (exercido pelos monarcas). Esta distinção é justificada com o facto de a liberdade individual ficar em perigo com a politização do poder judicial. Esta concepção tem por principio os chamados “checks and balances”. De acordo com este princípio, cada uma das tarefas tem uma dupla face: uma positiva, que a faz agir, e outra negativa, que trava o andamento das outras. Legislar, executar e julgar são deste modo tarefas interligadas, expressão mesma da unidade da realidade que cumprem – o direito- bem como da realidade que exercem –o poder. Podemos concluir, que em Montesquieu há um desejo de recriar equilíbrios que garantissem a liberdade individual, tendo como na base uma unidade de poder cuja legitimidade encontrasse uma justificação na realização do direito.

Os revolucionários liberais, sedentos de soluções práticas e não de modelos teóricos de compreensão da realidade, transformaram estes modelos em concretas construções orgânico-funcionais do Estado. A maior consequência deste facto foi a edificação do Estado pós-revoluvionário numa dupla base: uma Constituição mista em que os princípios monárquicos e democrático, aliados ou não ao aristocrático, se conjugam com a separação de poderes enquanto principio orgânico e funcional. Dá-se ainda o reconhecimento da subjectividade jurídica do Estado (com a consequente titularidade de direitos e deveres perante os cidadãos) e da tutela jurisdicional destas situações subjectivas; as relações entre os particulares e o Estado constituíam-se em relações essencialmente jurídicas, submetidas ao império do direito.

Em França no período liberal estavam consagradas as isenções: judicial do legislativo e do executivo, das quais não estavam ausentes a memória das lutas entre o monarca e os parlamentos judiciais no antigo regime e o aparelho burocrático então gerado para lhes pôr termo, resultando na atribuição ao legislativo (em particular ao Parlamento) e ao executivo (em particular, aos seus órgãos máximos, o monarca e o seu governo, junto de quem colocam a funcionar um órgão consultivo, o Conseil d`Etat), da competência para julgar as reclamações dos particulares contra as respectivas actuações.

É neste quadro em que se insere a frase objecto deste comentário, "julgar a Administração é ainda administrar". Assim através desta ideia de administrador-juiz conseguiu-se a não violação da separação de poderes pois esta só seria violada ao entender-se que “julgar a administração é ainda julgar”. Ainda assim nas reclamações contra a administração e o governo não havia uma confusão entre a actividade primária e a actividade julgadora, dado que existia o Conseil d`Etat (pelo contrário no julgamento das reclamações contra o poder legislativo pelos particulares havia confusão entre a actividade primaria e a actividade secundaria). Nasce assim o sistema orgânico dos tribunais administrativos integrados na administração para garantia do direito administrativo.

Nos finais do século XIX e fins do século XX, e com maior ênfase após as Grandes Guerras (Estado Providência) com a transição do Estado Liberal para o Estado Social, os diferentes estados europeus viram-se confrontados com uma realidade que os obrigava a intervir socialmente em defesa da liberdade e da igualdade, algo que o Estado Liberal do século XIX vedava em razão da defesa das mesmas liberdade e igualdade. Nasce o Estado Social e, com ele, um emaranhado de novas questões até ai desconhecidas, em grande parte repercutidas no âmbito da acção social.

Com o Estado Social e esta nova racionalização que nele se divisa, ligada à eficácia da actuação administrativa sempre com as preocupações de realizar as suas tarefas com imparcialidade, torna-se necessário desfazer o equívoco sobre o qual assentou a evolução da acção administrativa ao longo do sec. XIX. De um lado passa a exigir-se um reforço do plano valorativo da acção administrativa; de outro, a sua completa juridicização e independentização em relação à lei, consequentemente passa a exigir-se que a acção administrativa deixe de ser execução da lei e se assuma como meio autónomo de realização do direito.

Em França que desde os tempos do Antigo Regime conservava a sua relutância em aceitar que tribunais independentes controlassem a acção do Estado, mesmo restrito à salvaguarda da dimensão garantística do direito, alterou este quadro com a transformação do Conseil d`Etat, que se dividiu em duas secções separadas, apenas unidas pelo mesmo edifício (o “Palais Royal”) por razoes históricas. Assim uma das secções, a Secção Contenciosa, autonomizou-se em relação à Secção administrativa, transformando a primeira num verdadeiro tribunal administrativo. Assim uma instituição que nasceu com o objectivo de proteger a Administração do controlo dos tribunais, transformou-se num verdadeiro tribunal através da sua actuação.

Tenha-se em consideração que a administração não é uma realidade superior ao direito. Por ser sujeita de situações jurídicas, a administração é uma entidade submetida aos imperativos das normas que contemplam tais situações, tal como as restantes pessoas que com ele entram em relação. Para que exista um verdadeiro estado de direito tem de existir vias de impugnação dos actos administrativos, vias estas que deverão ser exercidas em tribunais totalmente independentes da própria administração que emite tais actos, pois o direito não pode correr o risco de ser instrumentalizado ao serviço de um poder, que terá como limites aqueles que, em cada momento, se dignar auto-fixar-se.

Note-se ainda que o princípio da legalidade, fulcral num estado de direito, constitui a garantia de que a vontade colectiva legitimamente formulada será aquela que efectivamente será aplicada. Mas este princípio não passará de letra morta se não existir um controlo por parte de tribunais independentes. Assim como refere Sérvulo Correia: “a ligação entre o estado de direito e o Contencioso Administrativo deve ser entendido como controlo da legalidade dos actos da administração através de tribunais especializados nas questões de direito administrativo, mediante o emprego de meios processuais específicos.”

Constata-se que existem variadas modalidades para operar esta separação, entre as quais destacamos ainda duas: uma delas em que a especialização se faz no seio de uma única ordem jurídica jurisdicional, como acontece em Espanha, esta modalidade tem a vantagem como refere ainda Sérvulo Correia de “conferir maior peso ao juiz das questões administrativas, na medida em que um conflito com este é ao mesmo tempo um conflito com toda a magistratura judicial”, mas tem o inconveniente de um menor asseguramento da especialização nas matérias administrativas, pois não há uma carreira ao longo da qual se dedique ao mesmo tipo de questões. Outra das modalidades será a separação de ordens jurisdicionais no âmbito do poder judicial, “este método assegura em maior plenitude a especialização do juiz administrativo e a qualidade técnica das decisões proferidas em última instância.

Em suma, passada a fase do “pecado original” do sistema do administrador –juiz, onde havia uma ligação entre a entidade que administrava e a entidade que a julgava, pois “julgar a Administração é ainda administrar”. Passou-se para uma total diferenciação entre a entidade que julga e aquela que administra, pois passou-se a entender que “julgar a Administração é ainda julgar.


Gustavo Ramos, sub-turma 10, n.º15164

Íris disse...

Génese do Contencioso Administrativo e sua consideração actual

Como instituição característica dos Direitos da Europa Ocidental, o Contencioso Administrativo teve o seu berço em França e, mais particularmente, é um fruto histórico da Revolução Francesa de 1789.
Proclamadora do princípio da separação de poderes, na sequência das ideias de Locke e Montesquieu, com a Revolução também se enunciaram solenemente os direitos subjectivos públicos invocáveis pelo indivíduo contra o Estado: é de 1789 a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, cujo artigo 16 exige um sistema de “garantia dos direitos”, expressão máxima do Estado de Direito.

O Antigo Regime conhecera já alguns órgãos que exerciam a jurisdição sobre matérias administrativas (águas e florestas, por exemplo). Mas tal circunstância não impedia os tribunais comuns (parlements) de decidir muitos litígios da actividade administrativa. O que, por seu turno, suscitava complexos problemas, dado que, graças à sua composição e às suas competências, os tribunais judiciais eram em boa medida órgãos de defesa de privilégios caducos e de oposição à criação de um aparelho administrativo estadual. A isto acrescia que, em muitos casos, o mesmo órgão dispunha simultaneamente de competências jurisdicionais e de competências administrativas.

Neste domínio, como noutros, a Revolução trouxe consigo a racionalização há muito desejada. A reconstrução da sociedade à luz das novas ideias triunfantes requeria a subordinação ao Governo de uma Administração una e concentrada, liberta de ingerências alheias. Nesse sentido, o artigo 13 da Lei de 16-24 de Agosto de 1790 dispunha: “ as funções judiciais são distintas e permanecerão sempre separadas das funções administrativas. Os juízes não poderão, sob pena de alta traição (forfaiture) perturbar de qualquer maneira as operações dos corpos administrativos, nem convocar perante si os agentes da Administração por motivo atinente às funções destes.”
Embora a análise histórica mostre hoje que não tinha sido essa a intenção subjacente ao preceito, na prática subsequente ele serviu para eximir a Administração da jurisdição dos tribunais nas lides emergentes do exercício do poder público.
Mas esta nova fórmula de organização do Estado suscitava uma contradição significativa em face da consagração do princípio da legalidade. Subtraído o órgão da Administração ao controlo do juiz, quem poderia velar pelo respeito da lei nas relações daquele com o administrado? A resposta foi encontrada na ideia do “administrador-juiz”: a fiscalização da legalidade da conduta administrativa teria de caber aos topos das hierarquias administrativas, isto é, ao Rei (num primeiro momento), aos directórios de distrito e aos directórios de departamento. A ideia de separação de poderes não era atraiçoada por tal solução porque, segundo o entendimento da época, “ julgar a Administração é ainda administrar”. Tratava-se pois de organizar a separação de poderes estabelecendo uma derrogação à regra da separação de funções e autorizando os órgãos administrativos a exercer uma actividade materialmente jurisdicional.
Note-se porém que, como demonstra Gerges Vedel, para os homens da Constituinte de 1790, o princípio da separação de poderes não implicava necessariamente a subtracção do contencioso administrativo aos tribunais judiciais e não terá sido isso que se pretendeu com a lei de 16-24 de Agosto de 1790, mas tão só interditar a juiz que se substituísse aos órgãos administrativos no desempenho de quaisquer actividades e na execução de quaisquer operações que não respeitassem directamente à solução de um litígio. Nessa altura, o que estava em causa era que o juiz não fizesse de administrador; não se pretendia que ele abdicasse da sua missão jurisdicional só porque a Administração fosse parte de um litígio.

De acrescentar também que, antes e depois da Revolução, se verifica no contencioso administrativo (francês) uma continuidade de técnicas e instrumentos jurídicos de controlo da Administração. Com efeito, não se pode ignorar a circunstância de se verificar a identidade de muitas das pessoas que desempenhavam funções jurisdicionais num e noutro dos regimes, já que foram os juízes formados sob o Antigo Regime (Thouret, Barnave, Ricard de Nimes) que, por volta de 1789/1790, elaboraram o princípio: “julgar a Administração é ainda administrar”.
De tudo isto resulta que no Contencioso Administrativo “se mesclam velhas receitas monárquicas com novos princípios e ideias liberais, não existindo nesse domínio ruptura, mas continuidade entre as instituições do Estado Absoluto e do Estado Liberal” (Vasco Pereira da Silva, “O Contencioso Administrativo no divã da psicanálise”).
Pode afirmar-se assim, na esteira do Prof. Vasco Pereira da Silva, que o Contencioso Administrativo do Estado Liberal enferma de “um pecado original” de ligação da Administração à Justiça, de uma promiscuidade entre as tarefas de administrar e de julgar, uma vez que a Justiça Administrativa, como sistema de mecanismos e de formas ou processos destinados à resolução das controvérsias nascidas de relações jurídicas administrativas, nasceu no seio da própria Administração.

Este modelo de “autotutela”, de “justiça reservada”, típico dos primórdios do sistema de administração executiva, fortemente centralizado no governo, conduziu a um contencioso que era visto como instrumento de realização do interesse público, na época concebido como interesse do Estado (isto é, do todo da sociedade), estranho aos interesses individuais que compunham as relações sociais. O modelo baseava-se em concepções de separação dos poderes que postulavam o carácter livre da actividade administrativa estadual, sujeita apenas a fiscalização política, e revelando uma certa desconfiança perante o poder judicial (de composição nobiliárquica e de tendência conservadora). Para utilizar expressões da época “ A Administração Pública é também uma justiça” (Bonnin).

Em função desta interpretação peculiar do princípio da separação de poderes, (designadamente, se o poder executivo não podia imiscuir-se nos assuntos da competência dos tribunais, o poder judicial também não poderia intervir no funcionamento da Administração Pública), entre 1790 e 1795 a lei proíbe aos juízes de conhecerem os litígios contra as autoridades administrativas, e, em 1799 são criados os tribunais administrativos – que não eram verdadeiros tribunais, mas órgãos da Administração independentes e imparciais – incumbidos de fiscalizar a legalidade dos actos da Administração e de julgar o contencioso dos seus contratos e da sua responsabilidade.
A autonomia reconhecida ao poder executivo relativamente aos tribunais, característico do sistema administrativo de tipo francês ou de administração executiva, opõe-se ao sistema administrativo de tipo britânico ou de administração judiciária, dado o papel preponderante nele exercido pelos tribunais. Com efeito, no sistema jurídico anglo-saxónico a Administração Pública acha-se submetida ao controlo jurisdicional dos tribunais comuns. Logo no Estado Liberal se entendia que não fazia sentido isentar desse controlo os poderes públicos: nenhuma autoridade podia invocar privilégios ou imunidades, visto haver uma só medida de direitos para todos, uma só lei para funcionários e não funcionários, um só sistema para o Estado e para os particulares.

A progressiva autonomização da jurisdição administrativa relativamente à Administração, a superação dos “traumas de infância” do Contencioso Administrativo, na expressão do Prof. Vasco Pereira da Silva, através da instauração de uma Justiça Administrativa plenamente jurisdicionalizada, vai tendo progressivamente lugar, desde os finais do século XIX e ao longo do século XX até chegar aos nossos dias. É, portanto, o resultado de um processo lento e prolongado no tempo, quotidianamente construído por acção da jurisprudência (em função da actuação dos tribunais administrativos) e da intervenção do legislador, acompanhada por sucessivas reformas administrativas.

Como resultado desta evolução, actualmente, a generalidade dos países adoptou o modelo judicialista, em que a decisão das questões jurídicas administrativas cabe a tribunais integrados numa ordem judicial – de acordo com o princípio de que “julgar a administração é verdadeiramente julgar” –, quer se trate de tribunais comuns ou de tribunais especializados em razão da matéria. É o modelo actual, que parte do princípio de que toda a actividade administrativa, mesmo nos momentos discricionários, está subordinada ao Direito e que atribui aos tribunais a competência para conhecer todos os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas interpessoais.

No último período da evolução do contencioso administrativo – a fase da “confirmação”, da categórica afirmação da tutela jurisdicional plena e efectiva dos particulares perante a Administração, que acompanha o Estado Pós-social dos nossos dias – a justiça administrativa adquire natureza constitucional, através da consagração de um contencioso administrativo realizado por verdadeiros tribunais e destinado a garantir uma protecção integral e efectiva dos direitos dos particulares. A par da constitucionalização, a mudança de paradigma do Contencioso Administrativo é também o resultado da sua “europeização”, a qual tem vindo a intensificar-se, quer pelo surgimento de fontes europeias relevantes nesta matéria (v.g. nos domínios da contratação pública, dos serviços públicos, das providências cautelares), quer pala convergência crescente das legislações nacionais, que é potenciada pela integração jurídica e pelo comparatismo entre os sistemas.
A acrescer a estas realidades, não podemos ser indiferentes às profundas alterações da própria noção de Administração Pública. Com efeito, de uma Administração autoritária, própria do Estado Liberal, de uma Administração prestadora, inerente ao Estado Social, estamos hoje perante uma Administração Pública Infra-estrutural, Prospectiva ou Prefigurativa. Esta nova Administração, que surge com a crise do Estado Providência e a sua consequente passagem para o estado Pós-social, caracteriza-se pelas seguintes notas essenciais: multilateralidade, alargamento da protecção jurídica subjectiva, durabilidade das relações jurídicas e esbatimento da diferenciação entre formas de actuação genéricas e individuais.
É pois curioso e fascinante constatar que, nos dias de hoje, e graças
à influência fundamental do Direito Constitucional e do Direito Europeu, o Direito Administrativo, que nasceu como o “direito dos privilégios exorbitantes” da Administração, se tenha transformado, agora, no Direito das relações jurídicas administrativas de natureza multilateral; da mesma forma como o Contencioso Administrativo, que surgiu como um instrumento de auto-controlo, dependente, limitado e objectivo, se tenha tornado, agora, num processo administrativo destinado à protecção plena e efectiva dos direitos dos particulares, por um tribunal independente e imparcial

Concluo o meu comentário, reiterando que, em face de toda a evolução do Contencioso Administrativo, no Estado de Direito Pós-social, tornou-se inquestionável a jurisdicionalização plena da Justiça Administrativa. É hoje inegável a ligação entre o Estado de Direito e o Contencioso Administrativo, entendido como controlo da legalidade dos actos da Administração, através de tribunais especializados nas questões de Direito Administrativo, mediante o emprego de meios processuais predominantemente específicos.

Íris disse...

Génese do Contencioso Administrativo e sua consideração actual

Como instituição característica dos Direitos da Europa Ocidental, o Contencioso Administrativo teve o seu berço em França e, mais particularmente, é um fruto histórico da Revolução Francesa de 1789.
Proclamadora do princípio da separação de poderes, na sequência das ideias de Locke e Montesquieu, com a Revolução também se enunciaram solenemente os direitos subjectivos públicos invocáveis pelo indivíduo contra o Estado: é de 1789 a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, cujo artigo 16 exige um sistema de “garantia dos direitos”, expressão máxima do Estado de Direito.

O Antigo Regime conhecera já alguns órgãos que exerciam a jurisdição sobre matérias administrativas (águas e florestas, por exemplo). Mas tal circunstância não impedia os tribunais comuns (parlements) de decidir muitos litígios da actividade administrativa. O que, por seu turno, suscitava complexos problemas, dado que, graças à sua composição e às suas competências, os tribunais judiciais eram em boa medida órgãos de defesa de privilégios caducos e de oposição à criação de um aparelho administrativo estadual. A isto acrescia que, em muitos casos, o mesmo órgão dispunha simultaneamente de competências jurisdicionais e de competências administrativas.

Neste domínio, como noutros, a Revolução trouxe consigo a racionalização há muito desejada. A reconstrução da sociedade à luz das novas ideias triunfantes requeria a subordinação ao Governo de uma Administração una e concentrada, liberta de ingerências alheias. Nesse sentido, o artigo 13 da Lei de 16-24 de Agosto de 1790 dispunha: “ as funções judiciais são distintas e permanecerão sempre separadas das funções administrativas. Os juízes não poderão, sob pena de alta traição (forfaiture) perturbar de qualquer maneira as operações dos corpos administrativos, nem convocar perante si os agentes da Administração por motivo atinente às funções destes.”
Embora a análise histórica mostre hoje que não tinha sido essa a intenção subjacente ao preceito, na prática subsequente ele serviu para eximir a Administração da jurisdição dos tribunais nas lides emergentes do exercício do poder público.
Mas esta nova fórmula de organização do Estado suscitava uma contradição significativa em face da consagração do princípio da legalidade. Subtraído o órgão da Administração ao controlo do juiz, quem poderia velar pelo respeito da lei nas relações daquele com o administrado? A resposta foi encontrada na ideia do “administrador-juiz”: a fiscalização da legalidade da conduta administrativa teria de caber aos topos das hierarquias administrativas, isto é, ao Rei (num primeiro momento), aos directórios de distrito e aos directórios de departamento. A ideia de separação de poderes não era atraiçoada por tal solução porque, segundo o entendimento da época, “ julgar a Administração é ainda administrar”. Tratava-se pois de organizar a separação de poderes estabelecendo uma derrogação à regra da separação de funções e autorizando os órgãos administrativos a exercer uma actividade materialmente jurisdicional.
Note-se porém que, como demonstra Gerges Vedel, para os homens da Constituinte de 1790, o princípio da separação de poderes não implicava necessariamente a subtracção do contencioso administrativo aos tribunais judiciais e não terá sido isso que se pretendeu com a lei de 16-24 de Agosto de 1790, mas tão só interditar a juiz que se substituísse aos órgãos administrativos no desempenho de quaisquer actividades e na execução de quaisquer operações que não respeitassem directamente à solução de um litígio. Nessa altura, o que estava em causa era que o juiz não fizesse de administrador; não se pretendia que ele abdicasse da sua missão jurisdicional só porque a Administração fosse parte de um litígio.

De acrescentar também que, antes e depois da Revolução, se verifica no contencioso administrativo (francês) uma continuidade de técnicas e instrumentos jurídicos de controlo da Administração. Com efeito, não se pode ignorar a circunstância de se verificar a identidade de muitas das pessoas que desempenhavam funções jurisdicionais num e noutro dos regimes, já que foram os juízes formados sob o Antigo Regime (Thouret, Barnave, Ricard de Nimes) que, por volta de 1789/1790, elaboraram o princípio: “julgar a Administração é ainda administrar”.
De tudo isto resulta que no Contencioso Administrativo “se mesclam velhas receitas monárquicas com novos princípios e ideias liberais, não existindo nesse domínio ruptura, mas continuidade entre as instituições do Estado Absoluto e do Estado Liberal” (Vasco Pereira da Silva, “O Contencioso Administrativo no divã da psicanálise”).
Pode afirmar-se assim, na esteira do Prof. Vasco Pereira da Silva, que o Contencioso Administrativo do Estado Liberal enferma de “um pecado original” de ligação da Administração à Justiça, de uma promiscuidade entre as tarefas de administrar e de julgar, uma vez que a Justiça Administrativa, como sistema de mecanismos e de formas ou processos destinados à resolução das controvérsias nascidas de relações jurídicas administrativas, nasceu no seio da própria Administração.
Este modelo de “autotutela”, de “justiça reservada”, típico dos primórdios do sistema de administração executiva, fortemente centralizado no governo, conduziu a um contencioso que era visto como instrumento de realização do interesse público, na época concebido como interesse do Estado (isto é, do todo da sociedade), estranho aos interesses individuais que compunham as relações sociais. O modelo baseava-se em concepções de separação dos poderes que postulavam o carácter livre da actividade administrativa estadual, sujeita apenas a fiscalização política, e revelando uma certa desconfiança perante o poder judicial (de composição nobiliárquica e de tendência conservadora). Para utilizar expressões da época “ A Administração Pública é também uma justiça” (Bonnin).

Em função desta interpretação peculiar do princípio da separação de poderes, (designadamente, se o poder executivo não podia imiscuir-se nos assuntos da competência dos tribunais, o poder judicial também não poderia intervir no funcionamento da Administração Pública), entre 1790 e 1795 a lei proíbe aos juízes de conhecerem os litígios contra as autoridades administrativas, e, em 1799 são criados os tribunais administrativos – que não eram verdadeiros tribunais, mas órgãos da Administração independentes e imparciais – incumbidos de fiscalizar a legalidade dos actos da Administração e de julgar o contencioso dos seus contratos e da sua responsabilidade.
A autonomia reconhecida ao poder executivo relativamente aos tribunais, característico do sistema administrativo de tipo francês ou de administração executiva, opõe-se ao sistema administrativo de tipo britânico ou de administração judiciária, dado o papel preponderante nele exercido pelos tribunais. Com efeito, no sistema jurídico anglo-saxónico a Administração Pública acha-se submetida ao controlo jurisdicional dos tribunais comuns. Logo no Estado Liberal se entendia que não fazia sentido isentar desse controlo os poderes públicos: nenhuma autoridade podia invocar privilégios ou imunidades, visto haver uma só medida de direitos para todos, uma só lei para funcionários e não funcionários, um só sistema para o Estado e para os particulares.

A progressiva autonomização da jurisdição administrativa relativamente à Administração, a superação dos “traumas de infância” do Contencioso Administrativo, na expressão do Prof. Vasco Pereira da Silva, através da instauração de uma Justiça Administrativa plenamente jurisdicionalizada, vai tendo progressivamente lugar, desde os finais do século XIX e ao longo do século XX até chegar aos nossos dias. É, portanto, o resultado de um processo lento e prolongado no tempo, quotidianamente construído por acção da jurisprudência (em função da actuação dos tribunais administrativos) e da intervenção do legislador, acompanhada por sucessivas reformas administrativas.
Como resultado desta evolução, actualmente, a generalidade dos países adoptou o modelo judicialista, em que a decisão das questões jurídicas administrativas cabe a tribunais integrados numa ordem judicial – de acordo com o princípio de que “julgar a administração é verdadeiramente julgar” –, quer se trate de tribunais comuns ou de tribunais especializados em razão da matéria. É o modelo actual, que parte do princípio de que toda a actividade administrativa, mesmo nos momentos discricionários, está subordinada ao Direito e que atribui aos tribunais a competência para conhecer todos os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas interpessoais.

No último período da evolução do contencioso administrativo – a fase da “confirmação”, da categórica afirmação da tutela jurisdicional plena e efectiva dos particulares perante a Administração, que acompanha o Estado Pós-social dos nossos dias – a justiça administrativa adquire natureza constitucional, através da consagração de um contencioso administrativo realizado por verdadeiros tribunais e destinado a garantir uma protecção integral e efectiva dos direitos dos particulares. A par da constitucionalização, a mudança de paradigma do Contencioso Administrativo é também o resultado da sua “europeização”, a qual tem vindo a intensificar-se, quer pelo surgimento de fontes europeias relevantes nesta matéria (v.g. nos domínios da contratação pública, dos serviços públicos, das providências cautelares), quer pala convergência crescente das legislações nacionais, que é potenciada pela integração jurídica e pelo comparatismo entre os sistemas.
A acrescer a estas realidades, não podemos ser indiferentes às profundas alterações da própria noção de Administração Pública. Com efeito, de uma Administração autoritária, própria do Estado Liberal, de uma Administração prestadora, inerente ao Estado Social, estamos hoje perante uma Administração Pública Infra-estrutural, Prospectiva ou Prefigurativa. Esta nova Administração, que surge com a crise do Estado Providência e a sua consequente passagem para o estado Pós-social, caracteriza-se pelas seguintes notas essenciais: multilateralidade, alargamento da protecção jurídica subjectiva, durabilidade das relações jurídicas e esbatimento da diferenciação entre formas de actuação genéricas e individuais.
É pois curioso e fascinante constatar que, nos dias de hoje, e graças
à influência fundamental do Direito Constitucional e do Direito Europeu, o Direito Administrativo, que nasceu como o “direito dos privilégios exorbitantes” da Administração, se tenha transformado, agora, no Direito das relações jurídicas administrativas de natureza multilateral; da mesma forma como o Contencioso Administrativo, que surgiu como um instrumento de auto-controlo, dependente, limitado e objectivo, se tenha tornado, agora, num processo administrativo destinado à protecção plena e efectiva dos direitos dos particulares, por um tribunal independente e imparcial

Concluo o meu comentário, reiterando que, em face de toda a evolução do Contencioso Administrativo, no Estado de Direito Pós-social, tornou-se inquestionável a jurisdicionalização plena da Justiça Administrativa. É hoje inegável a ligação entre o Estado de Direito e o Contencioso Administrativo, entendido como controlo da legalidade dos actos da Administração, através de tribunais especializados nas questões de Direito Administrativo, mediante o emprego de meios processuais predominantemente específicos.

Íris costa e Castro, subt 10, número 15442

Rafaela disse...

A frase sujeita a comentário prende-se com a problemática inerente ao que o professor Vasco Pereira da Silva denomina de "pecado original" do contencioso administrativo, caracterizado pela "promiscuidade entre as tarefas de administrar e de julgar".
Na origem dessa "confusão" entre o poder administrativo e o judicial, há que ter em conta a eclosão das revoluções liberais, de entre as quais se destaca a Revolução Francesa de 1789. As duas ideias porventura mais importantes das revoluções liberais passam pela afirmação de dois princípios essenciais: o princípio da separação de poderes, nos termos do qual o poder do Estado tinha de estar separado por diversos centros organizatórios, mas que evoluiu rapidamente para a afirmação da preponderância do Parlamento sobre os outros poderes estaduais, convertendo-se este órgão no centro do Estado; e o princípio da legalidade da administarção que traduz a ideia-chave da subordinação da administração à Lei e com o objectivo prioritário de defender e proteger os direitos dos cidadâos (antes de mais a sua liberdade, segurança e propriedade), perante as autoridades administrativas.
Ora,face ao exposto torna-se compreensível que o princípio da separação de poderes seja absolutamente fundamental, constituindo a sua afirmação na já referida Revolução Francesa de 1789 um dos factores decisivos para o nascimento do direito administrativo. Na verdade, é em nome deste princípio que os revolucionários franceses consideraram que "julgar a administração é ainda administrar", tendo como efeito a subtracção da administração ao controlo dos tribunais. Este princípio, plasmado no artigo 16º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, teve como principal objectivo da sua afirmação a de o erigir como uma das formas de reacção ao absolutismo real vigente na época do Estado de polícia, que antecedeu a revolução.
Não obstante este princípio ser mais antigo do que a revolução francesa de 1789, estando já presente no pensamento e na obra de Aristóteles e tendo como seus grandes teorizadores John Locke e Montesquieu, ainda assim pode-se afirmar que é um rasgo característico da forma de estado "democracia", nomeadamente pela filosofia anti-absolutista que contém: a ideia de delimitar o poder como forma de evitar a tentação para um exercício de forma hegemónica.
Na sequência da revolução francesa assinalaram-se como tarefas fundamentais do Estado as de legislar, administrar e julgar. Tinhamos, assim, no esquema original, as três funções do Estado: a legislativa, administrativa ou executiva (na medida em que se considerava que a administração deveria ter uma tarefa de mera execução da lei) e a jurisdicional. Este modelo teórico original era um modelo simplificado em que se fazia corresponder aos três poderes (legislativo, administrativo e jurisdicional) três funções distintas.
A função administrativa era vista como uma actividade meramente executiva destinada a concretizar as exigências da lei na actuação concreta dos fins do estado. Correspondia, no entanto, a uma função residual, no sentido de que as suas tarefas eram nebulosamente concebidas como tudo aquilo que não fosse legislar ou julgar.
Com a evolução dos tempos, e particularmente com a afirmação do Estado de Direito Social, conclui-se que as três formas típicas de tarefas do Estado já não são suficientes para compreender o Estado do século XX, vindo a afirmar-se uma quarta função do Estado, ao lado das três tradicionais: a função política.
Ora, actualmente o contencioso administrativo é ainda em larguíssima medida, tributário do quadro evolutivo acabado de traçar. Apesar de nas últimas décadas se ter assistido a um certo recuo da dimensão social do estado, que em muitos casos já não é de forma tão marcada um "Estado Providência", a verdade é que a configuração do estado como estado de direito social continua a ser, de uma maneira geral, perfeitamente actual.
É hoje em dia claro que o contencioso administrativo (plenamente jurisdicionalizado) tem como suas ideias centrais a prossecução do interesse público e a protecção dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos. Nesta linha de raciocínio, é pacífica a ideia de que se reclama juridicidade, tranparência e participação.
Assim, o contencioso administrativo movimenta-se hoje, claramente, no âmbito de uma relação tripolar (lei-administração-juíz), em que à primeira incumbe a definição dos fins ou interesses públicos a prosseguir e das competências dos órgãos administrativos, à segunda a prossecução do interesse público e ao terceiro o controlo da juridicidade da actuação administrativa.

Rafaela Marques nº14847
subturma 11

Marlene Fonseca disse...

De acordo com a concepção institucional do professor Sérvulo Correia, o Contencioso Administrativo é uma instituição e só sob essa perspectiva podemos conjugar sem excessivas preocupações hierarquizadoras a sua faceta orgânica, funcional, material e instrumental.
O Contencioso teve o seu berço em França e é fruto histórico da revolução francesa. Com ela, e de acordo com o Professor Vasco Pereira da Silva, foi instituída a sua fase do pecado original que se caracteriza pela promiscuidade entre as tarefas de administrar e de julgar uma vez que «a justiça administrativa nasceu dentro da administração» (Debbatsch/Ricci).
Nos termos do art. 13 da lei de 16/64 de Agosto de 1970, «as funções judiciais são distintas e permanecerão sempre separadas das funções administrativas. Os juizes não poderão, sob pena de alta traição (forfaiture), perturbar de qualquer maneira as operações dos corpos administrativos, nem convocar perante si os agentes da administração por motivo atinente às funções destes». Os revolucionários franceses para justificarem esta proibição vão invocar o princípio da separação de poderes.
De acordo com este princípio apresentado por Montesquieu «existem em qualquer Estado três espécies de poderes: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito público (du droit des gens) e o poder executivo daquelas que dependem do direito civil». Montesquieu considera ainda que o poder judicial deve ser limitado à função de dirimir os litígios nas relações inter-privadas, nas suas palavras, «pelo terceiro (poder), ele (Estado) pune os crimes ou julga os diferendos dos particulares». Assim, em nome de uma interpretação «heterodoxa» do princípio da separação de poderes, para além da separação entre a função administrativa e a função jurisdicional, que proíbe os tribunais de exercerem tarefas administrativas ou as entidades administrativas de exercerem tarefas jurisidicionais, a legislação revolucionária vai impossibilitar os tribunais de conhecerem litígios entre a administração e os particulares.
Essa interpretação «teve como primeira consequência subtrair o contencioso administrativo a qualquer juiz». Levanta-se então o problema de quem poderia velar pelo respeito da lei nas relações entre o orgão da administração e o administrado. A solução foi o sistema de administrador-juíz que veio atribuir a fiscalização da legalidade da conduta administrativa aos topos das hierarquias administrativas, ou seja, ao Rei (num primeiro momento), aos directórios de distrito e aos directórios de departamento.
A ideia da separação de poderes não era atraiçoada porque «em vez de se reconhecer que “julgar a administração é ainda julgar”, preferia-se considerar que “julgar a administração é ainda administrar”. O que se realiza realmente é a indiferenciação entre as funções de julgar e de administrar. Fazendo uma derrogação à regra da separação de funções autorizaram-se os orgãos administrativos a exercer uma actividade materialmente jurisdicional.
Na verdade, os tribunais não eram verdadeiros orgãos judiciais e sim orgãos da própria administração ainda que com uma função de controlo. O princípio da separação entre as autoridades administrativas e judicial entendido como possuindo valor constitucional, na verdade não o tinha.

Em França, os tribunais administrativos surgiram através de um processo gradual de jurisidicionalização do administrador juiz. Assim, durante muito tempo, vigorou a ideia segundo a qual o procedimento administrativo e o processo jurisdicional (processo administrativo gracioso) se desenrolavam ambos perante os tribunais administrativos, pois teriam a mesma natureza, o segundo não era mais do que a continuação do primeiro.


Marlene Fonseca
n.º 15238
Subturma 10

Diligentia disse...

À luz do conhecimento dito administrativo, julgar a Administração terá sido em tempos, simplesmente, administrar. Nos primórdios do Estado Liberal, e do próprio Direito Administrativo como ramo de direito autónomo, julgar neste propósitos seria sempre administrar. Numa fase característica de proliferação liberal, e dos princípios da mesma génese, o Estado como elemento todo poderoso, acompanhado por uma Administração musculada, e também pelos poderes exorbitantes do mesmo Estado, permitindo à Administração uma actuação em si mesma forte e rigorosa, o cidadão seria visto como mero administrado, objecto de deveres e protecção em certos âmbitos, mas sempre com a ideia muito vincada de alguma subjugação em relação ao Estado, à própria Administração. Esta Administração, como que herdeira da ideia principal de Maquiavel, demonstrando em toda sua actuação os poderes exorbitantes que lhe eram conferidos, mostrava como a existência da confusão entre a função administrativa e jurisdicional influenciava profundamente todo o sistema, mais que comprovado pela figura do administrador-juiz. A ideia da separação de poderes, coroa de glória do Estado Liberal, filha de Montesquieu, será no fundo a justificação última para colocar nas mãos da Administração os poderes necessários para uma regulação exorbitante, na tentativa de garantir o principio da separação de poderes, espírito que se manteve ao longo dos períodos subsequentes, mesmo com as alterações que foram feitas, mantendo, no entanto, a sua génese liberal, de alguma forma.
Tal concepção seria impossível no Estado de Direito, sendo que esta ideia original de separação de poderes foi sofrendo transformações no seu âmago, por exemplo com a criação de verdadeiros tribunais administrativos, pela criação de normas permissivas de condenação da Administração, antes impensável à luz do sistema original de contencioso administrativo. A Administração passa assim como que para o mesmo nível do particular que impugna os seus actos, podendo e devendo ser parte num litígio, parte em sentido de igualdade, e não superioridade ou sobreposição da Administração em relação ao particular, como no início seria, desaparecendo definitivamente a famigerada promiscuidade entre administração e justiça, perecendo a Administração como órgão acima de qualquer julgamento.
Se no Estado Liberal existia apenas em teoria a separação da administração da justiça, não havendo na prática indícios dela, litigando a Administração como guardiã dessa separação, como garantia de que um estado poderoso não seria posto em causa, no Estado de Direito essa ideia perece. Aqui, a lógica de fundo seria um estado que serve o cidadão e o protege em todas as vertentes, sendo que a função da Administração passa pela garantia, também, de direitos, liberdades e garantias, a par da defesa da legalidade.
A salvaguarda da separação de poderes muda a perspectiva advinda do Estado Liberal ; era assegurada, de alguma forma, pela actuação da administração, muito pela lógica do sistema liberal que a isso obrigava. O Estado de Direito nasce com a segurança de que a separação de poderes tem um novo rosto, um rosto em que a Administração e a justiça têm o seu lugar, separado, mas interdependente, em que o julgamento da Administração é possível, sendo possível também a igualdade entre partes em litígio quando uma das partes é a própria Administração, sem sobreposição de espécie alguma, em que a promiscuidade não mais existe, em que julgar a administração passa a ser julgar.

Andreia Serrão
nº 15067
subturma 11

DANIEL_TORRADO disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
DANIEL_TORRADO disse...

De facto o principio da separação de poderes, pedra angular de todas as constituições modernas, foi bem formulado por Monstesquieu:pretendia-se que as principais funções do estado fossem repartidas por diversos órgãos, e que eles se deveriam controlar mutuamente de forma a que não houvesse abuso e concentração de poder. Contudo se esse principio foi tão distorcido ao ponto de causar tantos traumas,não menos importante foi o redutor entendimento que se deu a outro grande principio: o principio da legalidade.mas, ñ se pense que isso foi de todo mau, pois apesar de ter colocado tanta pedra no caminho da actividade administrativa e jurisdicional a verdade é que hoje temos um direito administrativo forte capaz de prosseguir o interesse publico, e temos um poder jurisdicional capaz tutelar, com elevado grau de efectividade os direitos subjectivose interesses legitimos:sempre em sentido amplo:rejeitanto-se diferenciação de direitos) dos particulares.
É claro que na época liberal, aqueles princípios, só poderiam ser entendidos assim, pois em causa estavam os cargos dos nobres,que temiam a controlo da sua actividade por verdadeiros tribunais. Por outro lado nas monarquias o rei, detinha quase todo o poder e como tal, temia também a sindicabilidade dos seus actos. Para além disso a administração era até ao final período liberal,agressiva,actuava em todos os campos onde surgissem necessidades para satisfazer,exepto,naqueles campos que tocassem a liberdadee propriedade.dos cidadãos.ou seja,através do paradigmático acto administrativo,autoritário,e ausente da qualquer tipo de impugnação a administração levava a cabo a sua tarefa sem qualquer controlo,sem qualquer respeito direitos dos particular.que diga-se eram amplamente escassos naquele período,ou pelo menos ñ eram reconhecidos aos perticulares.á medida que se via cada vez mais necessária a intervenção de um poder de controlo,imparcial e se iam desenvolvendo a ideia de estado de direito,democracia,direitos fundamentais,para tentar colocar um véu nos olhos dos quem estava atento,a amdministação criou os artifícios necessários para criar o impasse: um orgao consultivo com carácter obrigatório,mas ñ vinculativo,(´Conselho de Estado,numa primeira fase,que depois passa a órgão jurisdicional.parecia tudo bem.se não fosse este órgão criado e mantido na Administração.(ainda que independente)durante todo esse último perido.Ora,é natural que o poder de administrar e controlar a aministração estivesse ainda concentrado num único órgão.
A principio da legaliddade tb ñ o era realmente tal como hoje o entendemos.só a lei parlamentar relevava como preferancia de lei.e a constituição nada ou pouco limitaria a actuaçaõ da administração.quanto á reserva de lei, ela só impedia a actuação nalguns domínios,ficando com amplos poderes discricionários de actuação.
Com o estado social de direito parece que o surto da doença que contaminou o direito administrativo da maior parte do continente europeu.conhecia então um remédio.a abertura das fronteira.trouxeram, de facto, o que havia de melhor: ar fresco novas ideias: a administração ficou sem saída e deixou-se levar pelo que lhe fazia melhor(europeização do direito administtrativo e administratização do direito europeu)Foi a consagração da maior ordem de direitos fundamenais, foi a criação de tribunais administrativos, foi a mudança de atitude da administração….foi a reformulação daqueles princípios e a adopção de tantos outros…
Os poderes públicos conhecem aqui um enquadramento constitucional e legal que antes ñ tinham: repartição racional e competências. Cada um exerce o que está mais bem preparado par fazer.logo: o legislador aprova e edita a lei que o povo legitimamente quer, a administração executa aqueles comandos ainda que com margens de manobra,ainda que com poder regulamentar.Os tribunais julgam, controlam quer uma actividade que a outra. Ora, uma vez que ñ existiam tribunais específicos para apreciar as condutas e da administração criaram-se e integraram-se constitucionalmente os tribunais administrativos. O que ñ significa que os tribunais civis ñ possam controlar também aquele poder.O princípio da legalidade, passa a bloco de legalidade, muito amplo…incluindo o direito de outros ordenamentos. Os direitos dos cidadãos (antigos administrados) conhecem o maior alargamento até então registado e parecem ñ parar de aumentar.
Tudo isto, limita hoje actuação administrativa, que muito embora, ainda utilize meios que mostram a agressividade herdada da infância: também se esforça por prosseguir no bom caminho. Falo das formas bilaterais de actuação. Que em vez de se sobrepor aos particulares colabora com eles. No fundo ela existe para eles, e através deles e é assim que se deve comportar.quando surjam conflitos de interesses sempre ou quase sempre eles se podem harmonizar.
E quando se porta mal, lá estarão os meios de tutela consagrados em sucessivas revisões (impugnação de actos, condenação á pratica de actos devidos, providencias cautelares) para defesa dos direitos do cidadão. Já para ñ falar na responsabilidade civil da administração(a maisrelevante que é a dos actos de gestão publica)que tão querida, mas tão sofrida foi a sua aprovação.
De facto. Vemos hoje,que ñ fazia qualquer sentido que os próprios órgãos da administração julgassem as suas condutas, pois seria sempre parcial.Mais:o interesse publico,apesar de pautar a conduta da administração,ñ lhe deve dar os privilegios que tinha e as prerrigativas exarcebadas;o interesse do particular é preponderante é o ponto onde tem de forcosamente parar.a melhor administração é aquela em que ñ se exerce qualquer autoridade e onde os particulares são chamados a intervir em qualquer processo que ponha em causa os seus direitos ou intereses legitmimos. Numa lógica de separação e interdependência de poderes e para serem asseguradas todas as garantias dos particulares é necessário que hajam tribunais capazes de reprimir a violação da legalidade. Ainda que haja reserva de administração (discricionaridade e livre margem de apreciação) subtraída ao controle dos tribunais. Note-se,contudo, que essa separação ñ é estanque e que há zonas em que a administração ainda parece chamar a si funções materialmente jurisdicionais (julgamento em 1ª instancia de processo contra-ordenacionais, aplicação de penas disciplinares, etc.).
Devemos é realçar que hoje,a tutela efectiva da posição dos particulares raramente deve ficar comprometida por julgamentos e decisões da administração. (administração em sentido amplo: incluindo os sujeitos que auxiliam ou colaboram com a administração em sentido restrito) cabendo sempre,aos tribunais, decidir em ultimo instancia qual o interesse que deve prevalecer,na situação concreta.de mais a mais:tanto a administração como o particular,são iguais perante a lei e perante o processo contencioso.A época dos privilegios,da execução previa,da liberdade de actuação já lá vai.

daniel torrado nº14086 sub:10

Ines Melo Sampaio disse...

É tradicional dizer-se na doutrina que a confusão entre as funções administrativa e jurisdicional saída da Revolução Francesa com o sistema do administrador-juiz, em que a Administração Pública se julgava a si própria, resulta de uma leitura errada do princípio da separação de poderes, tal como concebido por Montesquieu na obra «De l’Esprit des Lois».

A essa visão do princípio da separação de poderes, que redunda na verdade na sua negação, tem-se chamado eufemisticamente «visão francesa do princípio da separação de poderes». Ora, o que muito brevemente se pretende averiguar é se, de facto, essa era a visão montesquevina da separação de poderes, isto é, se esse entendimento cabia na letra e, mais significativamente, no espírito da obra de Montesquieu.

Com efeito, parece evidente que tal concepção cabe perfeitamente na letra da obra do barão de la Brède, visto dizer-se logo na abertura do Capítulo VI do Livro XI: «Il y a dans chaque État trois sortes de pouvoirs: la puissance législative, la puissance éxécutrice des choses qui dépendent du droit des gens, et la puissance exécutrice de celles qui dépendent du droit civil». Um pouco mais adiante, Charles de Secondat explicita: «Par la troisième, il punit les crimes, ou juge les différends des particuliers. On appellera cette dernière la puissance de juger […]».

Daqui se retira que a resolução de litígios administrativos não pertencia, em termos literais, à esfera do poder jurisdicional mas antes à do poder executivo, isto é, à função administrativa.

Por conseguinte, os revolucionários de 1789 podiam subtrair alegremente a actividade administrativa ao controlo dos tribunais, escudando-se na letra de «De l'Esprit des Lois». Quase podemos imaginá-los a defender-se da acusação de arbítrio, dizendo «Vejam, está aqui!», quais fanáticos religiosos… De facto, este fenómeno em tudo se assemelha ao fanatismo religioso, em que se toma um trecho breve do livro sagrado, descontextualizando-o, e se eleva essa interpretação parcelar e falaciosa do mesmo a dogma de fé.

Se efectivamente o sistema do administrador-juiz parece encaixar na perfeição na letra de «De l’Esprit des Lois», já não parece poder dizer-se o mesmo em relação ao seu espírito. Para tanto, basta realizar um simples exercício de interpretação sistemática, atentando noutros trechos da obra que parecem vir desmentir o que acima, simplisticamente, se concluiu.

Veja-se, por exemplo, a passagem igualmente constante do Capítulo VI do Livro XI: «Il n’y a point encore de liberté si la puissance de juger n’est pás séparée de la puissance […] exécutrice. […] Si ele était jointe à la puissance exécutrice, le juge pourroit avoir la force d’un oppresseur».

Conclusiva a este respeito parece ser, por fim, a passagem do Capítulo IV do Livro XI, que resume numa frase lapidar (citada 'ad nauseam'...) o princípio da separação de poderes: «Pour qu’on ne puisse abuser du pouvoir, il faut que, par la disposition des choses, le pouvoir arrête le pouvoir.»

Não se vislumbra como se possa coadunar estas afirmações de princípio com a subtracção dos litígios administrativos aos tribunais, pelo que se deve concluir que a enumeração de barão de la Brède do que deve caber em cada poder carece de interpretação extensiva, na medida em que o autor disse claramente menos do que pretendia dizer.

Inês Melo Sampaio, subturma 11, nº 15052

Pedro Fontes disse...

A frase faz, naturalmente, todo o sentido. Mas apenas fora de contexto. A meu ver, mais do que uma subversão maquiavélica da separação de poderes, a subtracção da justiça administrativa da função jurisdicional era uma consequência lógica do ideário liberal e da primitiva organização do Estado.


Houve, de facto, alguma consideração do Juíz como "persona non grata" na construção do admirável mundo novo pós-revolucionário, dado que os praticantes do ofício eram representantes de uma nobreza que se temia tão hostil às novas ideias como o fora às antigas. Mas não creio que tenha sido esse o factor determinante.

Num Mundo em que se faz uma separação radical entre a Sociedade e o Estado, ao ponto de estabelecer paralelos de legitimidade - a popular jubilosamente sentada ao Parlamento, a dinástica inamovívelmente se sucedendo na cadeira do Rei - e onde a reserva de lei, limitadora da função administrativa, apenas operava nas imediações da administração agressiva, é natural que alguma coisa corra mal.


É certo que se criou uma esfera de protecção dos particulares, no tocante à sua liberdade e propriedade, mas com a "particularidade" de abrir todo o restante universo à livre discricionariedade da Administração , reduzindo ao máximo a oponibilidade dos particulares face ao Estado.

Em termos abstractos, a haver litígio, seria entre a Sociedade e o Estado; o Parlamento e a Administração. O contencioso de anulação é disso resultado: a reposição da legalidade é tudo o que interessa,já que consagra a prevalência do princpio democrático sobre o monárquico.Sem ilegalidade,estaríamos perante um particular contra a Lei,a Sociedade, ou perante um particular contra o Rei, a Admnistração. Partes desiguais. E aos juízes liberais compete-lhes julgar iguais. Julgar o Rei é enfrentar a Dinastia, julgar a Lei é enfrentar a infalível vontade popular.Eles não podiam ser julgados, já que eram os mais elevados poderes da Terra : os paradigmas da jurisdição.

As Constituições,sofrendo os duros golpes da adoração quase religiosa da lei parlamentar e da outorga real necessária à sua estabilidade, depressa passaram a ponto de honra, mais do que a verdadeiro limite funcional e material de actuação dos poderes públicos.


Mantendo o tom metafórico utilizado nas aulas teóricas, diria que a infância do Contencioso Administrativo sofreu de um vício comum à vastíssima maioria das experiências pueris: a ingenuidade.

Só com ingenuidade é possível acreditar que não há qualquer desvio volitivo em todas as fases do procedimento administrativo (em sentido lato) - do "Povo" para o Parlamento, da Lei para a actuação administrativa. Só com muita ingenuidade se acredita numa Administração totalmente heterodeterminada, brilhante executora do claríssimo comando legal, ou, na sua ausência, submissa súbdita da vontade do Rei, livre de intromissões na esfera do seu Povo.

Podemos entender que houve uma clara intenção de afastamento dos juízes da esfera do poder público.Eu, contudo, prefiro pensar que não terá havido essa consideração nem lhes terá sido concedida essa honra. A lei, perfeita como era, simplesmente não pedia a sua intervenção, tal como os dias de sol não pedem guarda-chuva.

O trauma do Contencioso Administrativo não terá tido lugar nessa primária ingenuidade. Creio que o trauma terá ocorrido com a radical descoberta da verdade, como sempre trazida pela madre de todas as coisas : a verdade de que uma Administração desregulada e inoponível é profundamente lesiva dos particulares,e não serve nem à Sociedade, nem a si mesma.Verdade que dolorosamente se agudiza quando se conclui que tem origem na premissa de que a Administração e a Socieade (divisão recheada de vício, mas irresistivelmente simplificadora)podem ter interesses profundamente opostos. Se isto desencadeia um choque em Professores de Direito, já adultos, imagina-se o que pode fazer a uma criança...

Pedro Fontes, nº15211, Subturma 11

Hauriou disse...

O Estado prossegue diversos fins, sendo estes fins prosseguidos as funções do Estado. Encontram-se entre estas funções estaduais, função jurisdicional e a função administrativa
Em que consistem estas duas funções?
Diz-se no artigo 202/2 da constituição que a função jurisdicional consiste em administrar a justiça, compreendendo a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.
Já a função administrativa é definida pelo Prof. Marcelo Rebelo de Sousa como a actividade pública continua tendente á satisfação das necessidades colectivas em cada momento seleccionadas, como desígnios da colectividade politica, ou seja, os interesses públicos.

É para nos hoje claro a distinção entre estas duas funções estaduais, os tribunais julgam, buscam a paz jurídica, sendo que esta tarefa inclui julgar também a administração, já que esta não se encontra numa posição superior em relação aos particulares.
A administração não é “dona” do direito, é apenas um sujeito de relações jurídicas como qualquer particular e por isso ambos devem ter o mesmo tratamento.
A administração administra, dentro da legalidade, usando da sua margem de livre decisão sem que nesta se possam imiscuir os tribunais.
É este o entendimento actual sobre o princípio da separação de poderes, este princípio impõe uma separação e interdependência entre os orgãos de soberania.
Não uma separação estanque entre poderes, que não permite o seu controlo mútuo, mas uma separação complementada pela interdependência.

Mas tempos houve em que não era este o entendimento vigente sobre a conjugação entre estes dois poderes. Tempos em que se entendia que julgar a administração era ainda tarefa da própria administração.
Esta concepção era fruto de uma leitura errada daquilo que é a separação de poderes.
A separação de poderes, trazida com a revolução francesa, tem por objectivo prevenir a concentração de poderes, numa reacção contra o anterior regime. Assim, pensava-se que a melhor maneira de prevenir essa concentrar era uma separação estanque entre os poderes estaduais, estes deviam ser absolutamente separados, sem qualquer intervenção mútua.
Vem daqui aquele entendimento de que julgar a administração seria ainda administrar. Queria prevenir-se qualquer tipo de intervenção dos tribunais na esfera administrativa, devido também á desconfiança revolucionária face aos tribunais judiciais, que representavam ainda a continuação do antigo regime.
Agora que a administração “estava em boas mãos” dispensava-se a intervenção dos tribunais.
Resulta daqui não só a proibição dos tribunais exercerem tarefas administrativas e vice-versa, mas mais que isso, a impossibilidade dos tribunais conhecerem os litígios entre a administração e os particulares.
O próprio Montesquieu afirmava que o poder judicial deveria dirimir os conflitos entre particulares, ficando fora da alçada dos tribunais a resolução de litígios em matéria administrativa.
Nasce assim um contencioso administrativo pensado para defender os poderes públicos, não os direitos dos particulares, ficando a administração colocada numa situação de privilégio em relação aos particulares.
A administração julgava os seus próprios conflitos com os particulares.
Resulta daqui o tal paradoxo: em nome do princípio da separação de poderes, pensado para prevenir concentrações abusivas de poder, acabava por se deixar os particulares absolutamente desprotegidos face á administração.

Este sistema do administrador-juíz foi depois evoluindo, muito por força do Conselho de Estado francês, passando por varias fases que acabaram por levar ao entendimento actual da separação de poderes e á jurisdicionalização plena da actividade administrativa.

Maria Pinto Coelho de Almeida e Silva n15273 turma 11

JS/Azambuja disse...

Apesar de ter consciência que esta foi a frase mais comentada no blog e que talvez ja tudo tenha sido dito, não queria deixar passar a oportunidade de deixa somente algumas considerações sobre qual afinal a verdadeira função da Adminstração.
Assim, julgo ser unânime a opinião de que a Administração Pública é actualmente um poder público mas não iria tão longe ao ponto de julgar a Administração Pública como um poder executivo, uma vez que actualmente, no nosso Estado Social de Direito temos uma repartição de poderes, pelo que só poderiamos entender que a Administração tinha um verdadeiro poder executivo se toda a Administração fosse Administração do Estado. o que não acontece porque existem outras Administrações além da Estadual, como é o caso das autarquias Locais e das Regiões Autónomas.
Em suma, podemos considerar a acitidade da Administração como uma das actividades do Estado, mas temos de o entender num sentido amplo, tendo em conta tudo aquilo que o conceito de Estado contempla.

Rita Domingos
nr. 13983 subturma 11

Rogério Santos de Azevedo disse...

Desde a Antiguidade Clássica, sobretudo a partir das obras de Platão e do seu discípulo não menos genial, Aristóteles, é reconhecido que o Estado, independentemente do seu regime, exerce três funções essenciais: a legislativa, a judiciária e a executiva. Nos dias actuais a Ciência do Direito e a Ciência Política confirmam que um dos pressupostos do Estado Democrático de Direito é a existência de três poderes independentes e harmónicos.
A Teoria da Tripartição dos Poderes do Estado não é criação de Montesquieu. John Locke, filósofo liberal inglês, cerca de um século antes de Montesquieu já tinha formulado, ainda que implicitamente, a teoria em questão. Entretanto, cabe a Montesquieu o mérito de aprofundá-la e colocá-la num quadro mais amplo.
Montesquieu simpatizava com a monarquia constitucional (liberal) à moda inglesa, e foi a partir de uma viagem à Inglaterra que ele elaborou a sua teoria da separação dos poderes. Para o autor, a forma republicana de governo só seria viável em regiões pequenas, como as cidades-estado gregas da Antiguidade (Atenas, Creta, Esparta…) e as cidades-estado italianas da Idade Média (Veneza, Génova, Milão…). Para os grandes Estados, só seria possível o despotismo e as monarquias. O Absolutismo Político encontrava-se vinculado à implantação de um estado centralizado politicamente com a consequente implantação de uma "racionalização" burocrática do aparelho administrativo dos Estados Nacionais europeus surgidos a partir do século XIV d. C. Tais Estados Nacionais possuem como forma política de governo a Monarquia, usualmente conhecida como Monarquia Absolutista. Até mesmo Maquiavel louvava a concepção do magistrado porque “dava segurança ao príncipe”. Agindo em nome próprio o judiciário poderia proteger os mais fracos, vítimas de ambições das insolências dos poderosos, poupando o rei da necessidade de interferir nas disputas e de, em consequência, enfrentar o desagrado dos que não tivessem suas razões acolhidas
Montesquieu não foi um liberal na acepção moderna do termo, ainda que sua Teoria de Separação dos Poderes tenha servido como um dos alicerces para a construção do Estado Democrático Liberal. Realmente, "Montesquieu crê na utilidade social e moral dos corpos intermédios (da Sociedade), designadamente os parlamentos e a nobreza. E opta claramente pelos interesses da nobreza, quando põe a aristocracia a salvo tanto do rei quanto da burguesia. Do rei, quando a teoria da separação dos poderes impede o Executivo de penetrar nas funções judiciárias; dos burgueses, quando estabelece que os nobres não podem ser julgados por magistrados populares. Por outro lado, como autêntico aristocrata, desagrada-lhe a ideia de o povo todo possuir poder. Por isso estabeleceu a necessidade de uma Câmara Alta no Legislativo, composta por nobres. A nobreza, além de contrabalançar o poder da burguesia (estamento social em rápida ascensão social e económica na França dos séculos XVII e XVIII), era vista por ele como capacitada, por sua superioridade natural, a ensinar ao povo que as grandezas são respeitáveis e que monarquia moderada é o melhor regime político.
A doutrina da separação dos poderes não tem em Montesquieu o alcance que os seus sucessores lhe atribuíram. Na verdade, não há em Montesquieu uma teoria jurídica da separação dos poderes, mas antes uma concepção político-social do equilíbrio das potências – equilíbrio este que tende a aclamar umas potências entre as outras: a da aristocracia particularmente. Por outras palavras, ainda que aceitasse e preconizasse a separação dos poderes estatais, Montesquieu insistia mais na colaboração estreita dos Poderes do Estado e menos no equilíbrio funcional entre os poderes em tela. No fundo, a sua teoria consiste na divisão dos poderes, e não na separação dos poderes como é intitulada. O que fora sempre considerado a lacuna da teoria de Montesquieu, era a indicação das atribuições dos poderes. Kelsen, na sua obra “Teoria Geral do Direito e do Estado”, não aceitava a separação dos poderes prontamente. Um aspecto que não era bem visto desta teoria era a criação do direito por um só órgão e a execução por outro, este defendia que... é impossível atribuir a criação de Direito a um órgão e a sua aplicação (execução) a outro, de modo tão exclusivo que nenhum órgão vem cumprir simultaneamente ambas funções.
Sobre o tema o Prof. Dallari afirma: “Com efeito, ao lado do poder legislativo coloca um poder executivo ‘das coisas que dependem do direito das gentes’ e outro poder executivo ‘ das coisas que dependem do direito civil’. Entretanto, ao explicar com mais minúcias as atribuições deste último, diz que o Estado ‘pune os crimes ou julga as querelas dos indivíduos’. E acrescenta: ‘chamaremos a este último o poder de julgar e, o outro, simplesmente, o poder executivo do Estado’”.
A Teoria foi importada pelos “pais fundadores” da República Norte-americana em meados do século XVIII d. C. e foi nos E.U.A. que ela adquiriu a sua feição constitucional contemporânea, a qual, certamente, causaria inúmeras perplexidades no magistrado de Bordéus. E foram esses que agregaram à Teoria da Tripartição dos Poderes do Estado o conceito de pesos e contrapesos políticos mútuos a fim de garantir a auto-limitação do próprio Poder Político.
Cientificamente a ideia de Montesquieu era perfeita na sua génese. Era tentado derrubar o absolutismo, a concentração de poderes, o que no papel apresentava-se perfeitamente como uma máquina, ou seja, estampada a Concepção Mecanicista que nunca falharia. Não obstante criou-se uma situação de “Deus no céu e Administração na Terra”. E é esse um dos recalcamentos freudianos de que o Prof. Pereira da Silva: a Administração brota da tripartição de poderes debaixo de uma “justiça” facciosa e sua concubina.
Com isto, a ciência jurídica cedo discerniu em não retalhar uma teoria perfeita, mas antes conceber instrumentos e métodos eficazes no campo prático para colmatar desigualdades ainda criadas aos direitos liberdades e garantias dos particulares frente a uma Administração hipertrofiada, que se julga a si mesma. Os sistemas jurídicos de inspiração francesa, como o nosso, tiveram de criar mecanismos legais para arvorar um processo “contencioso” nu de tendenciosidades seduzidas pelo facto do “gracioso” estar entregue à jurisdição dos Tribunais Administrativos e não aos Judiciais como no sistema inglês.
Com o abandono do estado de policia puro e simples, surge a urgência de um Direito Administrativo que protegesse os particulares e não os poderes públicos. Esse entendimento vem adquirir ponderação ainda mais forte com o fenómeno do estado social (prestador) no séc. XX. Como a história nos indica, as “reparações” no Conselho de Estado francês não desataram totalmente o exame jurisdicional do príncipe, já que lhe pertencia um poder de homologação determinante. Posteriormente, após certo avanço, as impugnações dos actos ministeriais continuam sob a alçada da fiscalização do Conselho de Estado em sede de recurso, apenas havendo, no fundo ainda, um processo gracioso (“perguntar a Roma o que é de Roma…”), em vez dum processo contencioso como o entendemos nos dias de hoje. É por isso que concordo com o Prof. Pereira da Silva quando nos diz que a plena jurisdicionalização da Administração dá-se com no fim do séc. XX com o Estado Social de Direito que transforma através de lei os Tribunais Administrativos em verdadeiros Tribunais (assim “perguntando-se ao Iudex e não a Roma”).
Concluindo, penso que hoje não se pode reconhecer que julgar a administração é ainda julgar. A Tribunalização da Administração e as reformas contenciosas sucessivas vieram facultar aos administrados direitos muito próximos, ou mesmo iguais, aos do Direito Processual Civil (que é paritário na sua génese). Porém, resta sempre uma margem de manobra… A Administração goza sempre duma discricionariedade intocável nas recta prossecução das suas atribuições, que lhe é conferida por lei. O mérito está fora do alcance dos Tribunais Administrativos, mas esse é, a meu ver, um justo preço a pagar pela aproximação da Administração (cada vez mais personalizada e especializada) ao caso concreto e às necessidades subjectivas e dissemelhantes dos particulares.

Rogério de Azevedo
Subturma 12, nº 15193