quinta-feira, 13 de novembro de 2008

A dimensão do conceito de Acto Administrativo Impugnável

A afirmação objecto de comentário da autoria do Professor José Carlos Vieira de Andrade incide sobre a problemática relativa à impugnabilidade de actos administrativos no âmbito de um pedido de impugnação (artigos 50º a 65º do CPTA), meio processual integrado na Acção Administrativa Especial.
A Acção Administrativa Especial, no domínio do Contencioso Administrativo, constitui uma das principais e mais valiosas formas de acesso à justiça administrativa, através da qual são tuteláveis alguns dos mais importantes direitos subjectivos das relações jurídicas administrativas. De um ponto de vista processual, consiste numa acção com um vasto campo de aplicação, que proporciona a formulação de uma grande variedade de pedidos e que, por sua vez, dá origem a uma correspondente diversidade de efeitos das sentenças.
Um dos pedidos principais da Acção Administrativa Especial constitui, precisamente, segundo o disposto no artigo 46º nº2 al. a), a anulação de um acto administrativo ou a declaração da sua inexistência.
Na sequência dos preceitos constantes no CPTA, constituem pressupostos processuais específicos da Acção Administrativa Especial, na sua vertente de impugnação de actos administrativos, o acto administrativo impugnável (artigos 51º a 54º), a legitimidade (artigos 55º a 57º) e a oportunidade (artigo 58º).
Cingindo-me agora ao primeiro pressuposto processual, deter-me-ei na análise do conceito de acto administrativo impugnável, em questão na afirmação objecto de comentário.
O conceito de acto administrativo constitui um conceito substantivo central de Direito Administrativo, o qual sofreu muitas mutações desde a sua origem. Com efeito, de um entendimento clássico de acto administrativo (típico do Estado Liberal e correspondente a uma lógica de Administração Agressiva, cuja forma de actuação característica era o acto de autoridade ou de “polícia”), vão verificar-se sucessivas transformações, resultantes das alterações das formas de actuação administrativa, inerentes à passagem, primeiro, de uma Administração meramente Agressiva a Prestadora (com a generalização dos actos administrativos favoráveis), e, depois, a Infra-Estrutural (com o aparecimento dos actos administrativos de eficácia múltipla ou de eficácia em relação a terceiros), os quais são a consequência da evolução para os modelos do Estado Social e Pós- Social.
O Acto Administrativo Impugnável, como conceito processual, não pode deixar de estar naturalmente ligado ao conceito substantivo ou material de acto administrativo, constante do artigo 120º CPA. Como resulta desta disposição legal, verifica-se a adopção, pelo CPA, de uma noção ampla e aberta de acto administrativo, que compreende toda e qualquer decisão destinada à produção «de efeitos jurídicos numa situação individual e concreta». Como refere o Professor Vasco Pereira da Silva, os actos administrativos impugnáveis tornaram-se, «hoje em dia, uma realidade de contornos muito amplos, que compreende não apenas as decisões administrativas finais e “perfeitas”, criadoras de efeitos jurídicos novos, como também aqueloutras actuações administrativas imediatamente lesivas de direitos dos particulares, que tanto podem ser actos intermédios, como decisões preliminares, ou simples actos de execução» (Vasco Pereira Da Silva, Em Busca do Acto Administrativo Perdido). Para este Professor, em função desta tendência para o alargamento dos actos administrativos susceptíveis de ser apreciados em juízo, são de afastar noções restritivas de acto administrativo, seja ao nível substantivo, seja ao nível processual.
Pelo contrario, tradicional, na escola de Coimbra (mas com defensores também em Lisboa) é a adopção de um conceito mais restrito de acto administrativo, tanto para efeitos substantivos como processuais, caracterizado pala ideia de regulação ou de determinação de efeitos jurídicos novos, e afastando dessa qualificação outras actuações jurídicas unilaterais denominadas como “actos instrumentais” (Prof. Rogério Soares) ou “actos auxiliares” (Prof. Sérvulo Correia). Também para o Prof. Vieira de Andrade ficam de fora do conceito de acto administrativo, os puros actos instrumentais (como a generalidade das propostas, pareceres, comunicações, etc.) ou as operações materiais, visto que, não constituindo decisões, não são sequer actos administrativos.
«Actos administrativos são todos os que produzam efeitos jurídicos mas, de entre estes, aqueles cujos efeitos forem susceptíveis de afectar, ou de causar uma lesão a outrem, são contenciosamente impugnáveis»: com esta afirmação o Professor Vasco Pereira da Silva expõe o essencial do regime actual da impugnabilidade dos actos administrativos. De facto, dando cumprimento ao disposto no artigo 268º nº 4 da CRP, que estabelece um verdadeiro direito fundamental de impugnação dos actos administrativos lesivos dos particulares, no âmbito de um Contencioso Administrativo plenamente jurisdicionalizado e de natureza eminentemente subjectiva, porque destinada a garantir a tutela integral e efectiva dos particulares, o alargamento da impugnabilidade dos actos administrativos passa a ser determinada em razão da eficácia externa e da lesão dos direitos dos particulares (artigo 51º nº1 CPTA).
Além deste princípio geral de impugnabilidade dos actos administrativos (eficácia externa e susceptibilidade de lesão de direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares), considerado neste âmbito, contrariamente ao Professor Vasco Pereira da Silva, pelo Professor Vieira de Andrade, como mais restrito face ao conceito de acto administrativo, a extensão da impugnabilidade decorre também da possibilidade de apreciação dos actos procedimentais («… ainda que inseridos num procedimento administrativo, são impugnáveis os actos administrativos…», art. 51ºnº1 do CPTA). Daqui resulta a relevância jurídica autónoma do procedimento e o abandono da ideia de “definitividade horizontal” como critério da impugnabilidade dos actos administrativos, dando cumprimento por via legislativa ao imperativo da Lei Fundamental que, desde a revisão constitucional de 1989, tornara inconstitucional aquela exigência.
Outra das consequências do direito fundamental de impugnação contenciosa de actos administrativos, desde que lesivos dos particulares (art. 268ºnº4 da CRP), constituiu, por um lado, a possibilidade de controlo judicial imediato dos actos dos subalternos, afastando-se assim expressamente toda e qualquer exigência de recurso hierárquico necessário.
Por outro lado, em face da actual concepção de Administração Pública, a delimitação do âmbito da impugnabilidade dos actos administrativos verifica-se em função da sua eficácia e já não da sua executoriedade. Esta superação da concepção “autoritária” de acto administrativo (de acordo com o modelo garantístico estabelecido na Constituição, desde 1989) resultou precisamente de a maior parte dos actos administrativos não ser, por natureza, susceptíveis de execução coactiva (v.g. actos favoráveis, permissivos, declarativos). Por essa razão, a susceptibilidade de execução coactiva corresponde hoje a um poder de autotutela da Administração, o qual só pode existir de acordo com o princípio da legalidade, nos casos expressamente previstos na lei.
Por último, não se pode deixar de referir a este propósito a possibilidade de impugnação de actos ineficazes (art. 54º CPTA), ainda que em termos limitados (quando o acto tenha começado a ser executado, ou quando a eficácia decorra de condição suspensiva dependente da vontade do beneficiário).
Importa acrescentar ainda, como refere o Professor Vieira de Andrade, que a impugnação de actos administrativos não depende da qualidade administrativa do seu autor, uma vez que inclui, não só as decisões tomadas por entidades privadas que exerçam poderes públicos, como ainda os actos emitidos por autoridades não integradas na Administração Pública (artigo 51ºnº2 do CPTA).
Concluindo o meu comentário, não posso deixar de manifestar a minha maior sensibilidade para a posição do Professor Vasco Pereira da Silva. Com efeito, num Contencioso Administrativo de natureza e matriz subjectivista, como é o nosso, o direito de acesso à Justiça Administrativa pelos particulares deve ser garantida de um modo pleno e eficaz.

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