segunda-feira, 10 de novembro de 2008

O "triplo conceito" de acto administrativo


A delimitação do conceito de acto administrativo impugnável afigura-se como importante porque constitui o primeiro pressuposto processual específico da acção administrativa especial, na modalidade de pedido de anulação/declaração de nulidade do acto administrativo. Porém, as conclusões a que se chegue neste campo não são decisivas, caso não se preencham os restantes pressupostos, a saber, legitimidade e oportunidade. O acto administrativo pode portanto ser impugnável em abstracto, mas não em concreto, por não se encontrarem reunidos os restantes pressupostos. Mas tendo que começar por algum lado, o conceito de acto administrativo para efeitos processuais parece ser o melhor ponto de partida, pelas alterações trazidas pelo CPTA a este campo (e daí talvez não, como se verá…).
Salienta Vieira de Andrade que o conceito de acto administrativo impugnável, o qual advém de uma leitura conjugada dos primeiros três números do artigo 51.º com os artigos 52.º, 53.º, 54.º, e n.º 4 e 5 do artigo 59.º do CPTA, se afigura por um lado mais “vasto”, por outro mais “restrito” do que o conceito de acto administrativo, tal como resulta do artigo 120.º do CPA. Importa antes de mais fazer uma precisão: como o próprio artigo 120.º indica, e apesar da sua epígrafe “(conceito de acto administrativo)”, no corpo do mesmo ressalva-se que este conceito, dissecado pela doutrina enquanto ponto de partida para a caracterização do acto administrativo substantivo, apenas o é “para os efeitos da presente lei”. Assim, mesmo que o CPTA não tomasse a opção de construir um conceito autónomo de acto administrativo impugnável, o conceito de acto administrativo plasmado no CPA não poderia sem mais ser invocado para efeitos processuais. Importa pois fazer uma distinção: na verdade, não há um, nem dois, mas três conceitos de acto administrativo: o procedimental, o processual e ainda o substantivo, como se verá.
“Consideram-se actos administrativos as decisões dos órgãos da Administração que ao abrigo de normas de direito público visem produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta”. O conceito de acto administrativo vindo do CPA, o “conceito material de acto administrativo” na expressão de Vieira de Andrade, implicaria um acto jurídico, unilateral, praticado por um órgão administrativo, constituindo uma decisão, materialmente administrativa, de autoridade, cujos efeitos visariam produzir-se sobre uma situação individual e concreta (mas convém aqui lembrar toda a zona de fronteira entre acto e regulamento, nomeadamente os actos colectivos, plurais e gerais - veja-se quanto a estes últimos o artigo 52.º, n.º 3 do CPTA, levando à questão de o conceito de norma se bastar ou não apenas com a generalidade), independentemente da sua forma. Este conceito excluiria assim os denominados “actos instrumentais”, as meras operações materiais e os comportamentos da Administração Pública, devido à ausência por parte destes de conteúdo decisório, característica inultrapassável do acto administrativo. Por influência da doutrina germânica, parte da doutrina, como Sérvulo Correia ou Vieira de Andrade, veio defender um conceito de acto administrativo “restrito”: apenas seria acto administrativo aquele acto que, comungando das características atrás enunciadas, fosse ainda inovador e regulador, ou seja, “uma decisão reguladora de autoridade própria do poder administrativo”, na expressão de Vieira de Andrade (Justiça Administrativa, p. 205, n. 411). Esta posição, levada às últimas consequências, acarreta que mesmo a nível processual se entenda o conceito de acto administrativo restritamente, já que os cidadãos podem, nesta visão, ver o seu direito fundamental à tutela jurisdicional efectiva respeitado também através do recurso à acção administrativa comum, nomeadamente através da tutela preventiva, ou à condenação à abstenção da prática do acto administrativo - não se justificando assim uma extensão do conceito de acto administrativo impugnável face ao conceito substantivo de acto administrativo.
Se atendermos agora ao artigo 51.º do CPTA, verificamos, em primeiro plano, que já não há (e já não havia, desde 1989…) uma exigência de tripla definitividade do acto administrativo. Mas mais: o acto administrativo impugnável não só não é mais definitivo como também não é executório. E esta afirmação, que já deveria ser clara desde 1989, resulta da própria evolução da actividade administrativa, no contexto de uma Administração que já não é apenas agressiva, mas prestadora e infra-estrutural, que pratica actos favoráveis, desejados pelos particulares, não sendo pois susceptíveis de execução coactiva.
Apenas se exige hoje, para efeitos do pressuposto processual em análise, a susceptibilidade de lesão de direitos ou interesses legalmente protegidos (51.º, n.º 1 CPTA), em cumprimento do artigo 268.º, n.º 4 da CRP. Logo, seguindo aqui (mas não em todos os pontos, como especificarei adiante) a opinião de Vasco Pereira da Silva, não será exigível a “eficácia externa” presente no artigo 51.º, n.º 1 do CPTA para os casos de tutela subjectiva e plena de direitos e interesses do particular, sendo este requisito aplicável apenas à acção pública e à acção popular, enquanto manifestações de defesa da legalidade objectiva.
Logo, acto administrativo impugnável é hoje (leia-se hoje como “desde 1989”) tanto o acto inserido num procedimento administrativo, como a decisão que põe termo ao procedimento (51.º, n.º 1 e 3); tanto o acto praticado pelo subalterno como pelo superior hierárquico, eliminando-se portanto a exigência de recurso hierárquico necessário para acesso aos tribunais (veja-se artigo 59.º, n.º 4.º e 5.º, conjugado com o artigo 51.º). O acto administrativo impugnável pode (artigo 52.º) constar de um diploma legislativo ou regulamentar e (artigo 54.º) em certos casos pode um acto administrativo ineficaz, que não produz efeitos, ser todavia impugnado. Para mais, e contrariando a ideia de definitividade material, de identificação do acto administrativo com uma sentença, como faria Otto Mayer, um acto meramente confirmativo pode em certos casos ser impugnável (53.º), sendo igualmente impugnáveis actos de execução/aplicação (artigo 52.º, n.º 2 e 3)
Decorre portanto claramente hoje (hoje, neste caso, é desde a entrada em vigor do CPTA), como já antes deveria ser claro face ao conceito constitucional de acto administrativo impugnável, que o único requisito processualmente incontornável será a susceptibilidade de lesão de direitos e interesses legalmente protegidos. Já Vasco Pereira da Silva, na sua busca por um acto administrativo perdido, tinha demonstrado esta – agora - evidência, desmontando as posições doutrinárias que defendiam o conceito restrito de acto administrativo, a sua tripla definitividade e a sua executoriedade, mesmo no quadro de uma Administração prestadora e de infra-estruturas. Veja-se como na doutrina alemã se teve de encontrar um conceito de acto administrativo processual mais amplo que o substantivo, dado o seu carácter restritivo, surgindo igualmente figuras como a de actividade informal da Administração.
Impõe-se o retomar do sentido da frase em análise. Na expressão de Vieira de Andrade, o conceito processual de acto administrativo seria mais “vasto” do que aquele contido no CPA, na sua vertente orgânica, na medida em que no artigo 51.º, n.º 2 do CPTA se prevê a impugnação de decisões materialmente administrativas praticadas seja por autoridades não integradas organicamente na Administração Pública, seja por entidades privadas que actuam ao abrigo de normas de direito administrativo. Porém, não será esta uma realidade também aplicável ao conceito material de acto administrativo, pese embora a redacção do artigo 120.º CPA? E o que é hoje a Administração Pública? Os exemplos retirados da evolução legislativa nacional – veja-se nomeadamente a extensão do campo da jurisdição administrativas operado pelo artigo 4.º, n.º 1, f) e 4.º, n.º 2, d) do ETAF, não comprovam que mesmo “materialmente” há actos administrativos praticados por pessoas colectivas privadas não inseridas na Administração Pública? Por exemplo, o caso dos actos administrativos contratuais no recente CCP?
Terá pois que se chegar a uma primeira conclusão: fazendo uma concessão a Vieira de Andrade, face ao conceito vertido no artigo 120.º CPA, o acto administrativo impugnável é efectivamente mais vasto no campo orgânico. Resta saber até que ponto o conceito do artigo 120.º corresponde ainda à realidade. Ou seja, se sendo o conceito aí vertido meramente para efeitos procedimentais, não estará hoje desactualizado, e se não será o conceito para efeitos processuais que se afigura mais consentâneo com o verdadeiro conceito substantivo de acto administrativo …
Quanto à defesa de uma vertente mais “restrita” do conceito processual face ao conceito de acto administrativo, Vieira de Andrade avança com o facto de o CPTA apenas admitir a impugnação de decisões administrativas com eficácia externa (restringindo-o assim apenas a actos com efeitos regulatórios, inovatórios, ou seja, constitutivos).
Mas, como visto, a eficácia externa pode ser entendida como aplicável apenas à acção pública e popular, como defende Vasco Pereira da Silva, e mesmo não defendendo tal concepção, pense-se na impugnação de deliberações do órgão colegial pelo seu presidente, ou de uma actuação de um órgão de uma pessoa colectiva por outro. O artigo tem porém a virtualidade de levar a doutrina anteriormente contrária a admitir agora a impugnabilidade de actos prévios, parciais, de actos que excluem um interessado do procedimento e de medidas provisórias, mas ainda com reticências quanto às pré-decisões.
A análise da frase já vai muito longa. Porém, carece de uma conclusão. A frase de Vieira de Andrade, que ele próprio delimita como um confronto do artigo 120.º CPA face ao conceito de acto administrativo impugnável vertido no CPTA, não só não é verdadeira na parte em que o considera mais restrito, pelo menos quanto à tutela subjectiva de direitos e interesses, como mesmo na outra vertente, à partida verdadeira, merece o repensar da questão à luz da conclusão a que acima cheguei. Não faz sentido procurar a contraposição entre o conceito de acto para efeitos procedimentais face ao de acto para efeitos processuais, mas sim ir buscar o conceito de acto administrativo substantivo, tendo em conta a tripla definição (e já não definitividade) do acto administrativo acima referida. E se a afirmação de Vieira de Andrade não é totalmente verdadeira se a entendermos como reportada ao conceito procedimental de acto administrativo, muito menos é quanto equacionada face ao conceito substantivo. Explicando:

Como salienta Vasco Pereira da Silva, o conceito de acto administrativo surgiu com fins processuais: “delimitar as actuações administrativas submetidas a uma jurisdição e a formas de processo especiais”. Assim sendo, a evolução substantiva do conceito nunca esqueceu as suas origens processuais. E hoje portanto “o conceito de acto administrativo necessita de ser repensado e reconstruído em razão da sua tripla dimensão substantiva, procedimental e processual” ( O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, p. 304).
Mas quando Vasco Pereira da Silva interpreta o artigo 120.º do CPA enquanto concepção “ampla e aberta de acto administrativo, compreendendo toda e qualquer decisão destinada à produção de efeitos jurídicos numa situação individual e concreta” ( ob. citada, p. 308), retira daqui o conceito material, substantivo, de acto administrativo, o qual extravasa o sentido literal do conceito patente no artigo, que como o próprio (o artigo, não o autor) indica, pretende apenas servir para efeitos procedimentais.
Portanto, o artigo 120.º, na minha opinião, serve de base a um conceito substantivo de acto administrativo, mas dele apenas decorre literalmente o conceito procedimental. Logo:
O conceito processual é efectivamente mais vasto numa vertente (a orgânica) do que o conceito procedimental, mas não me parece correcto dizer que seja mais restrito, como exposto.
Já aplicando a frase de Vieira de Andrade ao verdadeiro conceito substantivo de acto administrativo, que não é aquele que decorre do 120.º CPA, então a frase mais incorrecta se torna: pois, face ao conceito substantivo, não se pode chegar sequer a dizer que o conceito processual é mais vasto. Apenas, como defende Vasco Pereira da Silva, que processualmente impugnáveis serão, dentro do conceito de acto administrativo substantivo, aqueles que sejam susceptíveis de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos.
Assim, facilmente se conclui que é a característica da lesividade do acto que permite distinguir o conceito processual do substantivo ( o conceito de acto administrativo compreende todo aquele que vise produzir efeitos numa situação individual e concreta, mas só é impugnável o acto susceptível de lesar outrém). Tendo sido a origem do conceito de acto administrativo processual e nunca se tendo o conceito substantivo desligado das suas origens processuais, é pois natural que seja o conceito processual e não o procedimental, patente no CPA , que corresponde hoje em maior medida ao conceito substantivo de acto administrativo. No ordenamento jurídico germânico, devido a uma restrição artificial do conceito de acto administrativo, o conceito substantivo é mais restrito do que o processual. No ordenamento jurídico português, sobretudo desde 1989 e agora claramente no CPTA, esta visão não é defensável. Portanto “ tanto as actuações agressivas como as prestadoras ou as infra-estruturais, tanto as «decisões de carácter regulador como as actuações de conteúdo mais marcadamente material, os actos de procedimento como as decisões finais, as actuações internas como as externas” se incluem hoje no conceito substantivo de acto administrativo, e não necessariamente no artigo 120.º CPA, como defende Vasco Pereira da Silva. Do que decorre que qualquer uma destas manifestações, se lesiva de direitos ou interesses legalmente protegidos (densificar estes conceitos é outra história…) é susceptível de impugnação contenciosa (não esquecendo os outros pressupostos processuais…). Consequentemente, como já defendia Vasco Pereira da Silva na sua dissertação de doutoramento, face à CRP e agora ao CPTA, desde que lesivos, são também impugnáveis actos administrativos no decurso de um procedimento, pareceres vinculativos, verificações constitutivas, actos internos, decisões provisórias, actos postos em execução a título experimental, actos de execução, ordens de regularização de situações ilegais, declarações de incompetência, promessas administrativas e actos confirmativos, entre outros.
Logo, face a este conceito em evolução de acto administrativo substantivo, o conceito de acto administrativo impugnável não é verdadeiramente “diferente”, muito menos mais vasto, exige-se sim a sua lesividade, a qual delimita o carácter impugnável dentro do conceito substantivo de acto administrativo; poder-se-á, de certa forma, entender o conceito processual como mais restrito face ao substantivo, para tentar, pelo menos, salvar a frase de Vieira de Andrade.

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