sexta-feira, 21 de novembro de 2008

A sanção pecuniária compulsória e a declaração de ilegalidade por omissão

Tudo começou na aula teórica de Contencioso Administrativo do dia 18 de Novembro de 2008, quando o Professor se debruçava sobre a declaração de ilegalidade por omissão consagrado no artigo 77.º do CPTA.
Falou-se da originalidade deste regime português, do facto de ter na sua génese o regime da fiscalização da constitucionalidade por omissão (e de eventualmente sofrer ou não da mesma inutilidade) e finalmente da natureza e efeitos das suas sentenças, sendo que aqui a questão começou a tornar-se mais interessante. Senão vejamos:
Ao contrário da sua congénere constitucional a declaração de ilegalidade por omissão parece não redundar apenas numa sentença declarativa, pois o número dois do artigo 77.º vem fixar um prazo para que a omissão seja suprida. Assim, o tribunal não se contenta somente com o reconhecimento de uma mera omissão, mas, todavia, não há uma verdadeira condenação da administração na produção da norma regulamentar devida, facto que o Professor justifica com o medo do legislador violar o sacrossanto princípio da separação de poderes, embora ele logo considere que tal não aconteceria tendo em conta que a discricionariedade da administração poderia ser na mesma salvaguardada. Temos assim uma condenaçãozinha que se pode tornar numa coisa mais séria se for conjugada com uma sanção pecuniária compulsória, pois esta poderia talvez levar o órgão em falta a regulamentar.
Esta questão parecia pacífica na minha mente até verificar a legitimidade activa prevista no mesmo artigo 77.º. Começando pelo fim (e pelo não problemático), o particular que alegue um prejuízo directamente resultante da situação de omissão, seguindo-se o Ministério Público (Acção Pública) e os defensores de interesses difusos (Acção Popular). Devem estar neste momento a interrogar-se sobre qual será o meu problema com a legitimidade do 77.º quando no fundo ele concede-a aos habitués já previstos no artigo 9.º!
Acontece que o meu problema deriva da conjugação desta legitimidade com a sanção pecuniária compulsória – Penso que todos concordamos que faz sentido que as três entidades em causa possam verificar contenciosamente a omissão, mas será que faz sentido aplicar sanções pecuniárias compulsórias em acções intentadas pelo Ministério Público? Ou por associações em defesa de interesses difusos? Parece que sim, porque a omissão deve em todos os casos ser suprida. Mas deverão os particulares não lesados ou o MP receber eles próprios o montante da sanção, tal como recebem os que têm interesse directo na demanda? Não faz grande sentido, não é essa a lógica que subjaz à sua legitimidade que se baseia na defesa da legalidade.
Formulei então um pensamento que procurava, de forma simples, resolver esta questão. Pensei que a sanção pecuniária compulsória podia de facto ser aplicada nos casos de acção pública/popular, porque o carácter coercitivo da sanção pode ser suficiente para o órgão praticar o acto. No entanto, o montante dessa sanção seria depositado (ainda que gradualmente) para depois poder ser levantado pelo próprio órgão uma vez suprida a omissão – uma eventual consignação em depósito, que não extingue a obrigação de agir e em nome do próprio devedor. Teríamos assim dois reforços para a Administração eliminar a omissão: O reforço negativo, o pagamento da sanção, e um reforço positivo, o facto de se reaver o montante pago assim que a obrigação legal fosse cumprida.
É este pensamento que dá o mote a análise seguinte.

Em primeiro lugar, convirá explicar qual a base normativa para a aplicação da sanção pecuniária compulsória, uma vez que o artigo 77.º é omisso (não deixa de ser irónico) quanto à sua admissibilidade. Desde logo, o artigo 3.º/2 é uma norma geral que habilita o tribunal a aplicá-la quando tal se justifique, mas mesmo que assim não fosse, o artigo 49.º manda aplicar a todas as sentenças no âmbito de Acção Administrativa Especial o artigo 44.º, que por sua vez regula a aplicação de sanções pecuniárias compulsórias na Acção Administrativa Comum.
Em segundo lugar, convém afastar uma ideia errada que teima em ressuscitar de quando em quando: A sanção pecuniária compulsória não tem qualquer motivação indemnizatória, trata-se apenas de uma medida coercitiva e sancionatória (porque incita ao cumprimento e afecta o património do devedor com uma sanção) com o objectivo de evitar o prolongamento da lesão exercendo pressão sobre o devedor. Não repara danos e inclusivamente pode-se cumular com juros de mora.
Cabe, agora sim, averiguar o regime previsto no CPTA para a sanção pecuniária compulsória. O artigo em causa é o 169.º que apesar de estar integrado nos preceitos relativos à execução de sentenças deve igualmente ser aplicado na fase declarativa por remissão expressa do artigo 44.º, revestindo esta medida neste caso de carácter preventivo como forma de evitar o incumprimento e a posterior fase executiva. O n.º 1 deste artigo merece especial destaque por consagrar uma diferença substancial do regime geral da sanção pecuniária compulsória em relação ao previsto no CPTA, uma vez que a sanção não vai recair sobre o devedor da norma, mas sim sobre os titulares dos órgãos incumbidos da execução. Foi assim aceite a proposta do Prof. Freitas do Amaral defendendo que o erário público não devia responder pela sanção mas sim o património pessoal dos indivíduos por detrás da máscara administrativa. Repare-se inclusivamente que no 169.º n.º3, no caso de órgãos colegiais, só serão responsabilizados os verdadeiros culpados pela situação desconforme, pelo que, mutatis mutandis ao nosso caso, aqueles que eventualmente se tenham mostrado desfavoráveis à omissão não seriam abrangidos.
Analisando quanto ao destino das importâncias resultantes da sanção, a tónica recai no artigo 169.º n.º6 no qual o legislador, a meu ver de forma imprudente, veio misturar a indemnização com a sanção pecuniária compulsória, embora para dizer que elas são cumuláveis, o que já resultaria da natureza das figuras. No entanto, dele retiramos que o montante é recebido pelo exequente, leia-se interessado, leia-se quem tem interesse directo na demanda. Daqui concluímos que o nosso problema permanece sem resposta e que o CPTA é omisso quanto à regulamentação da sanção pecuniária compulsória em casos de acção pública ou popular. Contudo, o código deixa-nos uma pista: Procurando regulamentar um montante máximo objectivo a que o interessado pode ter acesso via sanção pecuniária, o 169.º n.º6 (ainda ligando sanção a indemnização!) veio estabelecer que o interessado não pode receber mais a título de sanção pecuniária compulsória do que receberia a título de indemnização e que o montante restante que ainda devesse ser pago deveria ser enviado para uma dotação prevista no Orçamento de Estado inscrita à ordem do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (órgão regulado nos artigos 74.º e ss do ETAF).
Tendo em conta o exposto parece-me que não estando regulado no CPTA o destino do montante auferido pelas sanções pecuniárias compulsórias decretadas em processos declarativos no âmbito da acção pública e popular, esta lacuna deve ser integrada com recurso a uma analogia ao artigo 169.º n.º6 e como tal, todo o montante deve ser orientado para esta dotação à ordem do dito Conselho Superior.
Resta concluir que a solução proposta e que serviu de mote a esta análise não acolhe qualquer tipo de correspondência legal devendo ser rejeitada em prol da solução referida no parágrafo anterior. Para mais, a sua adopção levaria inevitavelmente a uma deturpação da figura da sanção pecuniária compulsória, cuja dimensão é punir o órgão pela inércia e como tal de conteúdo meramente negativo. A existir esta figura seria totalmente atípica, devido a conjugar características da sanção pecuniária compulsória e da consignação em depósito, embora não tenha correspondência integral a nenhuma delas. Não obstante, trata-se, de iure condendo, de uma figura cuja pertinência seria total caso fossem dinheiros públicos a estar em jogo, mas, mesmo recaindo a opção legislativa pelo património privado dos titulares dos órgãos administrativos (e com ela concordo), não deixa de ser interessante pela sua vertente dupla de incentivo à prática do acto derivada da conjugação de reforço negativo (sanção) com o positivo (reaver o dinheiro uma vez reposta a legalidade).

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