quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Ainda há recurso hierárquico necessário? (trabalho)

1. Introdução ao problema

Para se discutir da existência ou não do recurso hierárquico necessário no direito administrativo actual convirá, a título de introdução, esclarecer o conceito de recurso hierárquico.
Nas palavras de Freitas do Amaral, pode definir-se como o “recurso administrativo mediante o qual se impugna o acto de um órgão subalterno perante o seu superior hierárquico a fim de obter a respectiva revogação ou substituição”.
Este recurso é, portanto, um recurso administrativo, não se confundindo com os recursos de natureza jurisdicional. Ele integra-se no quadro orgânico da Administração activa sendo portanto, de pleno sentido, uma garantia graciosa e não uma garantia contenciosa.
É notória a diferença entre a natureza de ambos (administrativa/jurisdicional), que se reflecte em diversos aspectos. O recurso hierárquico é interposto perante uma autoridade administrativa e não perante um tribunal o que consequentemente leva a que o recurso hierárquico seja decidido por acto administrativo e não por sentença. Outro aspecto importante é que enquanto o recurso contencioso é fundamentado na ilegalidade do acto recorrido, o recurso gracioso além desta pode ser fundamentado na injustiça ou inconveniência do acto.
Apesar destas marcantes diferenças são descortináveis algumas semelhanças: “ambos são regidos pelo mesmo direito, ambos são meios de impugnação de actos de autoridade, ambos têm por objecto decisões da Administração” (in “Conceito e Natureza do Recurso Hierárquico” Vol. I 2ª edição, Almedina).
Esclarecido o conceito de recurso hierárquico, torna-se então imperativo explicar a génese do problema que dá origem a esta exposição. A (in)existência de recurso hierárquico necessário nos dias de hoje.
Anteriormente à reforma do contencioso administrativo a doutrina distinguia os recursos hierárquicos entre necessários e facultativos. Sendo o seu significado compreensível a todos, torna-se apenas necessário explicar quais os critérios que presidiam a esta distinção.
Como refere Vasco Pereira da Silva, esta discussão é um resquício dos “traumas de infância” infligidos ao contencioso administrativo pelo sistema de administrador-juíz.
No anterior regime de contencioso, era exigida a executoriedade e definitividade (horizontal e vertical) do acto para que este fosse impugnável, sendo que hoje só se exige a sua eficácia externa.
À luz da anterior concepção, sendo o acto definitivo e executório, o recurso hierárquico seria facultativo. Não o sendo o particular via-se obrigado a esgotar todas as garantias administrativas até poder impugnar o acto contenciosamente, daí o recurso ser chamado “necessário”.
Nas palavras de Marcello Caetano: “se o acto não for praticado por agente de quem possa recorrer-se para os tribunais, o recurso hierárquico visa alcançar a decisão final de outra autoridade de cujos actos (...) seja permitido por lei recorrer contenciosamente (...) é necessário para se poder transformar o acto do subalterno noutro contenciosamente recorrível”; “se o acto a impugnar é desde logo definitivo e executório (...) o recurso hierárquico que dele porventura seja interposto é um simples tentativa de resolução do caso fora dos tribunais (...) trata-se de um recurso hierárquico facultativo”.
É neste sentido que dispõe o CPA, no nº 1 do art. 167º.
Claro está, que esta exigência levantava desde logo algumas objecções quanto à sua constitucionalidade, as quais serão objecto de uma análise em sede própria.
Com a reforma do contencioso administrativo, surge então a questão que dá título a esta exposição. Nomeadamente o disposto no nº 5 do art. 59º CPTA, que entra em conflito directo com o 167º nº 1, dispondo que nada impede o interessado de interpor em simultâneo recurso administrativo e contencioso. Isto porque se anteriormente se exigia a definitividade e executoriedade do acto, agora apenas se exige a sua eficácia externa (nº 1 do art. 58 CPTA).
Este problema surge no âmbito da definitividade do acto. Esta pode ser dividida em horizontal, ou seja, que no procedimento administrativo o acto seja aquele que põe termo ao procedimento (com a introdução da primeira parte do art. 51º nº 1, já não há argumentação possível que sustenha este requisito); e vertical, significando que não haja órgão algum na administração a que seja possível recorrer desse acto.
Obviamente, o recurso hierárquico necessário encontra-se na dimensão vertical da definitividade e, a doutrina discute-se os nº 4 e 5 do art. 59º representam a estocada final na definitividade vertical ou se, em alguns casos ela ainda represente um requisito para a impugnabilidade do acto.
Em suma, após a reforma estabeleceram-se duas posições gerais, uma pela manutenção do recurso hierárquico necessário e outra pela revogação do nº 1 do art. 167º.
Proponho-me portanto o objectivo de esclarecer o melhor possível os argumentos em contenda de maneira imparcial de modo a tirar uma conclusão que seja o mais consentânea possível com o sentido da lei, da Constituição e dos interesses de quem interpõe o recurso.


2. Posições doutrinárias

2.1 Pela Constitucionalidade e manutenção do recurso hierárquico necessário

Em defesa do recurso contencioso necessário, podemos encontrar o Prof. Mário Aroso de Almeida. Este Autor diz que a introdução dos nº 4 e 5 do Art. 59º CPA, não vem acabar com a figura do recurso hierárquico.
No entanto, é inquestionável que o campo de acção desta figura sofre um severo golpe e, que em termos gerais o Código exerce preferência pela não imposição de barreiras administrativas ao recurso contencioso.
Aroso de Almeida, afirma portanto, que as diversas leis avulsas que estabelecem recursos hierárquicos necessários se mantêm e que, nesses casos em concreto é necessário recorrer administrativamente para posteriormente se poder impugnar o acto pela via contenciosa.
Acrescenta o mesmo, que pelo número de leis que estabelecem este expediente, a falta de menção expressa pelo CPTA de que pretendia terminar com este instituto, significa que estas leis passam a ser especiais em relação à lei geral. Será portanto um caso em que a norma geral é afastada, e a isso não obsta o facto de as leis especiais serem anteriores, pois segundo o art. 3º do Código Civil, na falta de “intenção inequívoca do legislador” isso será permitido.
Neste sentido, o art. 167º CPA, por não fazer mais que reconhecer a existência desta figura, não pende para afirmar o requisito da definitividade vertical como basilar no sistema. O que ele faz é reconhecer que só deve haver lugar a recurso hierárquico necessário, quando este resulte de uma opção “consciente e deliberada” do legislador.
Assim: “afigura-se que, com o CPTA, se deve passar a entender que uma decisão administrativa só estará sujeita a recurso hierárquico necessário – como de resto a qualquer tipo de impugnação administrativa necessária – nos estritos casos em que isso seja expressamente previsto na lei.” In Implicações de direito substantivo da reforma do contencioso administrativo, CJA nº 34.
Outra consequência de fundo da reforma, será a revogação tácita do art. 164º do CPA, pelo art. 59º nº 4, “que só atribui efeito suspensivo à reclamação quando o acto a que ela se reporta esteja sujeito a impugnação administrativa necessária”.
Em consequência da extinção da figura do indeferimento tácito, ter-se-á de ler o nº 3 do art. 175º a uma luz diferente. Assim, deve interpretar-se o disposto no sentido de que “a falta de decisão do superior confere ao interessado a faculdade de lançar mão do meio de tutela adequado à protecção dos seus interesses”.
É então dado como certo, para este autor que esta figura não levanta problemas de constitucionalidade, ao contrário de outros autores, como se verá mais à frente.
A discussão centra-se em duas disposições da Lei Fundamental; o nº 2 do art. 267º e o nº 4 do art. 268º.
Com a reforma constitucional de 89 e a consequente queda do requisito da definitividade do acto administrativo expresso na lei, defende uma parte da doutrina que este passou a ser proibido, vedando deste modo a possibilidade de se estabelecerem recursos hierárquicos necessários.
Ora o Prof. Aroso de Almeida é da opinião que apesar de deixar de ser um requisito geral, nada obsta no texto constitucional a que por lei se possam estabelecer estes meios de impugnação administrativa. Acrescenta, contudo, que como qualquer outro pressuposto processual, têm de passar nos critérios de constitucionalidade.
Tem portanto de se aferir “se essa imposição envolve um condicionamento excessivo, desproporcionado e, por isso ilegítimo do direito fundamental de acesso à justiça administrativa.”
Conclui-se desta forma que o recurso necessário será um pressuposto processual tão (in)justo/(in)constitucional,como tantos outros.
Resta então, perceber como este recurso não ofende o postulado geral de desconcentração da administração imposto pelo nº2 do art. 267º. Sendo o recurso hierárquico necessário objecto de uma ponderação específica do legislador sempre que é introduzido, será consentâneo com o disposto na C.R.P., visto que esta não exige uma desconcentração total mas sim “sem prejuízo da eficácia e unidade da Administração e dos poderes de direcção, tutela e superintendênciados órgãos competentes.”
Por outras palavras, haverá lugar a esta figura, sempre que se mostre adequado, pois é essa a intenção da Lei Fundamental.
Contudo, uma última nota será necessária, no que diz respeito à posição defendida por este autor.
Não sendo insensível aos eventuais problemas e deficiências da figura do recurso hierárquico necessário, defende que faria mais sentido, nos casos em que tal se afigurasse justificável, a imposição aos interessados: “do ónus de se dirigirem (...) a organismos administrativos independentes, porventura para-judiciais, instituídos para proceder, de modo célere e eficaz à apreciação e resolução extrajudicial dos conflitos que perante eles sejam colocados, deste modo libertando o contencioso administrativo de muitos processos inúteis”.
Estas pretensões residem no facto de variadas vezes, o recurso necessário ter uma relativa inultilidade, por falta de independência do órgão que analisa o recurso, tendencialmente predisposto a seguir a posição adoptada pelo seu subalterno.
Ainda em defesa desta figura,encontramos o Prof. Vieira de andrade. Afirma, no seu Justiça Administrativa (pag. 222) a sua concordância, com Aroso de Almeida, inclusive remetendo para ele, a fim de se obter mais conhecimentos sobre a matéria. Assim, em face da actual legislação, só haverá lugar a recurso hierárquico em caso de ser previsto expressamente em lei especial.
Convém, no entanto analisar alguns argumentos introduzidos por este autor, a título de comentário a um Acórdão do Tribunal Constitucional (Ac. 499/96).
Apoiado pela Jurisprudência do TC e do STA, refere que a imposição de uma impugnação administrativa não é inconstitucional. Não constitui decerto uma obstrução ao acesso ao recurso contencioso, uma vez que o art. 268º nº 4 “visa conferir aos cidadãos o direito ao recurso contencioso, contra qualquer acto de autoridade lesivo dos seus direitos” sendo o recurso hierárquico necessário comparável a qualquer outro pressusposto processual que se possa impôr (patrocínio judiciário e prazo de recurso por ex.).
Nem será sequer uma obstrução “em espécie, porque o acto do subalterno acaba por ser ele próprio, impugnado, na medida em que fica incorporado no acto do superior”.
Ainda na linha de pensamento de representar o recurso necessário como um qualquer outro pressuposto, conclui-se que, retirado o requisito da definitividade da CRP, não é impeditivo que o legislador o estabeleça quando se mostre necessário. Portanto, mesmo que se trate de uma norma restritiva de um direito fundamental (análogo), para não ser aceitável a solução tinha de se provar “arbitrária ou desnecessária em face de valores intocáveis para justificar o recurso”.
Alega, tal como Aroso de Almeida, que a necessidade de interposição é fundada em valores comunitários, a saber, a unidade da acção administrativa (consagrado na CRP, no nº 2 da CRP) e a economia processual. Em conclusão, ainda que contrário ao princípio da desconcentração, o recurso hierárquico não o ofende “pois só existe onde a lei não tenha optado por competências exclusivas dos subalternos ou não abra a possibilidade de delegação (ou esta não tenha sido utilizada)”.
Para reforçar a sua tese aponta quatro vantangens de que o particular beneficia ao interpôr um recurso hierárquico necessário:
“a)suspende a eficácia do acto recorrido, que é porventura o maior dos benefícios que o particular pode ter num sistema de administração executiva;
b)dispensa o patrocínio por advogado, é informal, é fácil de interpor, é barato e é rápido;
c)obriga à decisão de um órgão administrativo mais qualificado;
d)permite também o controle de mérito.”
Acrescenta ainda, que mesmo partindo do princípio pessimista de que a decisão será mantida pelo superior hierárquico, é ganho, através deste expediente algum tempo a mais para melhor se preparar um eventual pedido de supensão judicial dos efeitos do acto e também, para preparar a petição do recurso.
Reconhecendo, no entanto, que a preclusão do recurso contencioso é uma clara desvantagem, afirma que não sendo necessário patrocínio judiciário para a apresentar, nem qualquer complexa argumentação jurídica, em suma “quase basta mostrar discordância relativamente ao acto praticado”, o prazo geral estabelecido é suficiente.
Só no caso previsto no art. 170 nº 1, será portanto, premente levantar a questão da constitucionalidade. Acontece que, segundo Vieira de Andrade, se a não suspensão de efeitos decorrer da lei, não se podem ignorar os motivos que levaram o legislador a estabelecê-la; caso decorra da vontade do autor do acto, poder-se-à sempre recorrer aos tribunais para que se pronuncie sobre a eficácia desta opção.
Conclui então pela constitucionalidade do instituto, não sem advertir que, é dever dos tribunais garantir “uma tutela judicial efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos”, podendo deste modo admitir o recurso imeditato (e o pedido de suspensão judicial de eficácia) caso uma solução contrária prejudique desrazoavelmente o direito ao recurso contencioso. Pronuncia-se em termos semelhantes para casos em que a exiguidade dos prazos não seja razoável.
Um último argumento em defesa do recurso hierárquico necessário, será o de que para além destes autores, a jurisprudência constitucional e administrativa tem-se pronunciado a favor da sua admissbilidade.

2.2 Uma posição intermédia

António Bento São Pedro, defende, que o requisito da definitivdade foi completamente eliminado com a reforma do contencioso administrativo, nomeadamente a definitividade vertical, que é a que mais interessa ao tema em estudo.
Neste sentido, “nos casos em que o recurso hierárquico necessário se destinava a assegurar a definitividade vertical, o CPTA, afastou essa necessidade (de impugnação administrativa prévia)”.
Contudo, defende este autor que continua a haver espaço para impugnações administrativas necessárias, quando criadas por lei e, desde que sejam um pressuposto processual autónomo e não, um meio para obter a definitividade vertical.
O pressuposto processual, para se adequar aos parâmetros constitucionais, ainda que estabelecendo uma condição temporária, tem de permitir o acesso à justiça em tempo útil. Por outras palavras, tem de ser um meio ao “serviço da utilidade prática das decisões judiciais” e não um obstáculo.
Outro requisito, apoiado pela jurisprudência Constitucional (Ac. nº 161/99 e 44/2003), é que a criação de um pressusposto processual tem de se efectuar por Lei em sentido formal, não podendo portanto, criar-se um pressuposto por Regulamento.
Sendo assim, quais as situações em que será legítimo criar uma impugnação administrativa necessária por lei?
António Bento São Pedro, afirma que quando tais impugnações ao invés de pretenderem constituir apenas a última palavra (em termos hierárquicos) da Administração, vise co-responsabilizar outro órgão.
Estes requisitos são alcançados pelos recursos tutelares, que tradicionalmente são entendidos como recursos hierárquicos necessários. E se é verdade que estes também pretendem a última palavra da administração, não menos verdade é o facto de que neste caso se recorre para uma pessoa jurídica diferente, que se encontra numa unidade de atribuições diferente.
Deste modo são cumpridas as disposições do CPTA, uma vez que a definitividade vertical não é um critério para o estabelecimento destes recursos. O critério é sim, co-responsabilizar outra entidade, mais competente, porventura, para decidir. O recurso, neste caso, representa até uma vantagem para o particular, isto porque recorrer para uma entidade ad quem, significa uma maior competência, distanciamento e imparcialidade na análise da sua situação.
Há que retirar, portanto as consequências do que foi exposto. No caso de o particular deixar decorrer o prazo para impugnação administrativa necessária, a consequência será a absolvição da instância, nos termos da al. h) do nº 1 do Art. 89º do CPTA. O art. 59º nº 4 não é aplicável, uma vez que antes da decisão da impugnação administrativa, o acto ainda não é impugnável.
Se por algum motivo, a Administração não se pronunciar, por força do art. 175º nº 3 do CPA, pode o particular interpor acção de condenação à prática de acto devido. Convém, no entanto anotar que neste caso, uma vez que o objecto do processo é a pretensão do interessado, “pode discutir-se no processo a validade ou invalidade do acto recorrido administrativamente, bem como a definição da relação jurídica subjacente em tudo aquilo que seja estritamente vinculado”.
Em caso de apresentação extemporânea da impugnação hierárquica, caso ela não seja aceite pela Administração, poderá o acto de recusa ser impugnado. Caso esta seja aceite, será tratada como uma impugnação facultativa. Assim, tendo de se conformar com o art. 53º do CPTA, será impugnável, se o acto proferido não for meramente confirmativo do anterior.

2.3 Pelo fim do recurso hierárquico necessário

Ainda antes da reforma do cotencioso administrativo, já Vasco Pereira da Silva pugnava pela inconstitucionalidade deste instituto. Com a remoção dos critérios da definitividade e executoriedade do texto Constitucional (art. 268º nº 4), deixa de fazer sentido, para este autor, que a lei ordinária ainda preveja situações de esgotamento de garantias administrativas de modo a poder recorrer de um acto administrativo.
Tal previsão, constituirá um resquício do sistema de administrador-juíz, não muito longe da regra de exigência de decisão-prévia, prevista no sistema Francês. Regra esta, que estabelece uma espécie de pré-contencioso, isto porque, para se poder accionar a jurisdição administrativa é necessário interpor previamente um recurso da decisão. À semelhança do que sucede no recurso hierárquico necessário, é conferido à Administração Pública o direito de se pronunciar uma última vez, num conflito que já existe entre esta e o particular.
Esta promiscuidade entre administração e justiça, acaba por ter a consequência grave de poder precludir o direito de acesso aos tribunais, por força de um obstáculo artificial criado ao particular. O acto já reunia todas as condições para a sua impugnação, o que a lei vem establecer não acrescenta argumentos que levem a uma melhor decisão por parte do Tribunal, serão portanto diligências inúteis, contrárias ao espírito da lei, nomeadamente o art. 8º nº 2 CPTA.
Convém assim, enumerar os argumentos que, para Vasco Pereira da Silva, tornam este instituto inconstitucional, antes de analisar outras razões que possam obstar à sua validade.
Ocorre desde logo, uma violação do princípio da plenitude da tutela dos direitos dos particulares (art. 268º nº 4 CRP); constitui uma negação do direito fundamental de recurso contencioso, a sua recusa quando não tenha havido impugnação administrativa prévia.
Por seu turno, a exigência da da utilização da garantia administrativa prévia, sob pena de ser precludido o direito de acesso ao tribunal, constitui uma violação do princípio constitucional da separação entre administração e justiça, como consagrado nos art. 114º, 205º e segs, 266º e segs CRP.
O princípio da desconcentração administrativa (art. 267º nº 2 CRP), implicará “a imediata recorribilidade dos actos dos subalternos sempre que lesivos, sem prejuízo da lógica do modelo hierárquico da organização administrativa, pois o superior continua a dispor de competência revogatória (art. 142º do CPA)”.
Finalmente, mas não menos importante, o princípio da efectividade da tutela (art. 268º nº 4 CRP), isto porque o reduzido prazo de 30 dias (art. 168º nº 2) pode levar a que na prática, seja impossibilitado o exercício do direito e, deste modo pode ser equiparado a uma lesão do conteúdo essencial do direito.
É de retirar, como primeira conclusão, que em tudo o que sejam inconstitucionais, os art. 167º, 168º e 170º CPA, devem ser removidos da ordem jurídica.
Outros argumentos podem ser aduzidos contra a manutenção do recurso hierárquico necessário.
É inegável a identidade material entre os actos do sublaterno e o superior hierárquico, segundo Pereira da Silva, sendo a actuação do subalterno preenchedora de um tipo legal perfeito que produz efeitos imediatos. E, a verdade é que se o particular nada decidir fazer, o acto produzirá os seus efeitos normalmente, sem qualquer intervenção do superior hierárquico.
Como refere no seu “Em Busca do Acto Administrativo perdido”, em relação aos actos praticados pelo subalterno e pelo seu superior: “ambos são decisões provenientes de autoridades administrativas, no domínio do direito público, que produzem efeitos jurídicos de carácter individual e concreto, sendo os dois igualmente susceptíveis de lesar os direitos dos particulares”. Não haverá, então qualquer razão para impôr condições ao recurso contencioso.
Acrescenta ainda que, se por hipótese académica se admitisse a definitividade vertical como característica dos actos recorríveis, sempre tiveram de se admitir excepções, por exemplo para os actos praticados pelos subalternos, ao abrigo de competências exclusivas.
Quanto ao argumento aduzido por Aroso de Almeida, quando este diz que as leis avulsas seriam leis especiais em relação à regra geral do CPTA, Vasco Pereira da Silva tece as maiores críticas, esclarecendo a priori, que lhe parece, estar esta posição do Prof. Aroso de Almeida mais assente em opções de política legislativa do que argumentos jurídicos.
Conclui, que a ser a regra geral o recurso hierárquico, nos moldes previstos anteriormente à reforma, as leis avulsas seriam meramente confirmativas e, portanto com a revogação da regra geral, não é necessário referir que todas as outras repetições dessa regra são também revogadas. De modo que, a admitir recurso hierárquico, só para situações a criar no futuro.
De todo o modo, refere V. Pereira da Silva, o problema está mal colocado, para além da caducidade destas leis, por inconstitucionalidade, elas caducam também por falta de objecto.
Assim se, “a única razão de ser da exigência de recurso hierárquico necessário era a de permitir o acesso ao juíz, e se, agora, o Código de Processo estabelece que tal garantia prévia não é mais um pressuposto processual de impugnação de actos administrativos, então isso só pode significar que a exigência do recurso hierárquico em normas avulsas deixa de ter consequências contenciosas” (in “de necessário a útil: a metamorfose do recurso hierárquico no novo contencioso administrativo ). Por outras palavras, as normas caducam por falta de objecto.
No seguimento do exposto, V. Pereira da Silva, não consegue compreender como é que se pode afirmar que deixando de ser um pressuposto para se impugnar o acto, o recurso hierárquico possa continuar a ser exigido, criando uma situação tal de incoerência em que haveria um recurso “hierárquico desnecessário necessário”.
Ainda assim, esta figura é provida de utilidade, isto porque tem uma vantagem para o particular que o o recurso contencioso não tem, a suspensão imediata dos efeitos do acto. Para além disso, a contagem do prazo para recurso contencioso é suspensa, daí que não seja prejudicado o acesso aos tribunais.
Para uma maior utilidade e melhor funcionamento das garantias graciosas, propõe que a suspensão dos efeitos do acto seja alargada a todas as outras garantias e, que sejam tomadas medidas para garantir a estas figuras maior eficiência e imparcialidade, nomeadamente que sejam criados órgãos à semelhança dos tribunals britânicos. Contudo, nunca o direito de acesso directo aos tribunais poderia ser posto em causa por estas medidas.

3. Conclusões finais

Analizando os argumentos com que se defende ou contesta o recurso hierárquico necessário, é minha convicção que é de excluir o recurso hierárquico necessário do Contencioso Administrativo actual.
Não tanto, por julgar a figura tão gravosa, como defende o Prof. V. Pereira da Silva, mais por força das disposições do CPTA.
Penso que o recurso hierárquico necessário, ainda que com as necessárias alterações ao modelo actual, pode ser uma figura conforme à Constituição e, até benéfica para o particular. Assim, um pouco à semelhança de António Bento São Pedro, com as devidas garantias de independência do órgão que analisa o recurso, este poderia servir para evitar um processo mais demorado e mais custoso em tribunal, com a vantagem que neste caso a decisão, para além da legalidade, também se poderia fundar no mérito do acto.
Outra modificação necessária seria também um aumento dos prazos de impugnação. A Constituição não encerra uma proibição desta figura, ainda que nas alterações que sofreu não a favoreça. Com prazos mais alargados e com decisões mais independentes, penso que a tutela jurisdicional não é posta em perigo e que, não são colocados obstáculos no acesso à justiça.
O direito a ver a sua situação modificada até se pode tornar mais rápido e menos custoso para o particular, revelando-se inclusive uma solução vantajosa, uma vez que o que é pretendido pela comunidade é não ter de recorrer aos tribunais. Caso tenha de o fazer é que será exigido da Lei Fundamental que esse direito seja acessível a todos e, protegido da forma mais eficaz possível.
O art. 268º nº 4 abole a definitividade vertical, é certo, mas esta figura não negaria o acesso à justiça em tempo útil, nem como foi exposto, seria desproporcional ou arbitrária. Logo, manter-se-iam as possibilidades de contestar o acto administrativo, como ele é caracterizado neste artigo.
Todavia, à luz do Direito Contencioso Administrativo actual, sou compelido a concordar com o Prof. V. Pereira da Silva, quando afirma que este não permite o recurso hierárquico necessário. O nº 5 do art. 59º CPTA é suficientemente claro ao dispor que nenhuma impugnação administrativa condicionará a interposição de recurso contencioso e, sendo assim tem de se ter por revogados, em tudo o que se mostrar adequado, os art. 167º; 168º e 170º CPA.
Posto isto, com uma adequada adaptação do modelo a um mecanismo mais centrado na imparcialidade e no particular, do que na hierarquia e, com as necessárias alterações no CPTA, penso que o recurso hierárquico poderia ser admissível, Constitucional e até útil. À luz da lei actual, não vejo aberta a possibilidade quer à manutenção das leis antigas, nem muito menos à criação de novas leis que o prevejam.

Bibliografia:

Ø Bento São Pedro, António; O recurso hierárquico necessário no Código de Processo dos Tribunais Administrativos;
Ø Aroso de Almeida, Mário
· Implicações de Direito Substantivo na Reformado Contencioso Administrativo; CJA nº 34;
· O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, reimpressão da 4ª edição de Junho 2005, Almedina;
Ø Freitas do Amaral, Diogo; Conceito e Natureza do Recurso Hierárquico; Vol I 2ª edição, Almedina;
Ø Vieira de Andrade, José
· Comentário ao Ac. 499/96 do TC;
· A Justiça Administrativa (Lições), 9ª edição, Almedina.
Ø Pereira da Silva, Vasco
· De necessário a útil, a metamorfose do recurso hierárquico necessário no novo Contencioso Administrativo; CJA nº 47;
· O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, ensaio sobre as acções no novo processo administrativo; 2005 Almedina;
· Em busca do Acto Administrativo Perdido, 2003, Almedina.

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