quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Algumas luzes apagadas em Paris

Ainda estava fresco o Ancient Régime e as suas origens aristocratas não permitiram que se tornasse Montesquieu no revolucionário das Luzes, de que os franceses verdadeiramente se orgulhariam. Afinal, aquilo que lemos do seu L’espirit des Lois será a consagração, afinal, de um regime que, colocando a sua classe a salvo, defende a libertação desta face ao poder absoluto do rei e aí, só aí, poderão os seus conterrâneos posteriores, encontrar uma permissão de valores que lhes permita ler coisa diferente. Mas as leituras de hoje, estádio avançado de percepção humana de direitos e liberdades – assim ingenuamente generalizável – se colocam a termos de tal forma viciados pelos frescos ideais humanistas, que até Montesquieu nos soa a conservadorismo.

Se a sua teoria da separação de poderes pretendeu uma mudança tão modesta, foi-o porque o barão não pôde evitar a atracção pelo poder à nobreza e, assim, talvez tenha encontrado uma forma subtil de sob a capa dos novos ideais britânicos de Locke, distribuir o poder do monarca, fortalecendo a aristocracia. Ou então, Montesquieu não conseguiria ser tão maquiavélico e apenas foi liberal naquilo que lhe era exigido, numa época em que ser-se contra o absolutismo despótico era ser-se já bastante liberal. Talvez. A verdade é que a intenção do autor ao criar uma teoria ainda hoje tão válida parece de facto não coincidir com a bandeira levantada por Napoleão, ou sequer, com aquela que levantamos hoje, em nossas casas constitucionais. Porque não terá a História, afinal, seguido os conselhos de Montesquieu? Ao que parece, um texto poderá ter de facto muitas interpretações, essas tão casuísticas e particulares que espantariam sempre quem os escreveu, séculos depois. Ou mesmo meia década, caso em que se colocará legitimamente a dúvida: será que foi sem querer?

Os revolucionários de 1789, tendo como mote a divisão de poderes de Montesquieu que definia o poder judicial como aquele através do qual o Estado pune os crimes ou julga os diferendos dos particulares, construíram uma estrutura governativa em que poder administrativo e judicial se confundiam. A Administração goza então, nesta fase inicial pós-revolução de um verdadeiro contencioso especial, numa espécie de vingança – não de Montesquieu – mas dos revolucionários, aos poderes régios e aos poderes dos tribunais, estes que constituíam um verdadeiro gouvernement des juges. A revolução quis então retirar poder aos parlamentos e, nisto, nada houve de interpretação abusiva das palavras do barão de La Brède, pois já este último menosprezava a jurisprudência. Estas intenções de manifestamente imiscuir a importância dos tribunais ficam-se como uma luta defensiva, que travando os revolucionários contra os próprios ideais que defendiam, só encontravam desculpa desta quase incoerência com o que nas ruas parisienses aclamavam, na nobre missão de deixar o poder a quem sabe governar. Mas nem tudo são farsas! As clássicas bandeiras de liberdade, igualdade e fraternidade sustentaram uma mudança de grande poder histórico. Embora, hoje menos ingenuamente, pareça que também aqueles que as içaram se atraíram pelo poder – se assim não fosse, julgar a Administração seria julgar, sempre julgar.

Houve, então, nesta primeira fase da história do contencioso administrativo, uma proibição de jurisdição de matérias administrativas aos tribunais comuns; os litígios que envolviam a Administração, entre 1789 e 1799, pura e simplesmente estavam no seu total âmbito de competência. Mais tarde, foram sendo criados órgãos integrados na Administração para o efeito. Entre os quais, o Conseil d’Etat (em 1799), que uma vez mais na senda dos adulterados valores revolucionários, mais não foi que uma versão light do Conselho do Rei, donde resulta que o contencioso administrativo, muito mais do que uma invenção liberal, determinada pela separação de poderes, é uma herança do Antigo Regime (VASCO PEREIRA DA SILVA). Até porque, os instrumentos jurídicos utilizados, bem como as técnicas de controlo da actividade administrativa se mantêm essencialmente os mesmos (por exemplo, a técnica dos vícios do acto). Esta será uma fase de justiça reservada, nas palavras de V.P.SILVA, que durará até ao alargamento da autonomia do Conselho de Estado em 1872, que passa a poder decidir em termos definitivos, já sem a necessidade homologação obrigatória dos seus pareceres por parte do Chefe de Estado – criando-se então uma tendência já de descentralização de poder, não conseguida aquando da Revolução. Passa-se então para um exercício de justiça delegada, não obstante a manutenção de uma estrutura de administrador-juíz, uma vez que não existia uma verdadeira competência de origem do órgão julgador (esta era delegada), ainda porque juridicamente o Conselho de Estado continua a ser um órgão da Administração e, por fim, as suas decisões continuarão a ser, até 1889, consideradas meros recursos de apelação das decisões dos ministros. Tudo isto explica o porquê do principal meio processual nesta fase do contencioso administrativo tenha sido denominado de recurso de anulação.

Ora, todos estes indícios nos levam a crer que, afinal, a história pode não ter sido bem contada. Se Montesquieu previu uma separação clara entre a sociedade e o Estado, a isso lhe devemos hoje a garantia de que interesses públicos e privados não se misturavam, antes, eram tutelados por diferentes institutos jurídicos e cujas águas se separavam por forma a evitar formas abusivas de poder. Mais, previu que cada poder – legislativo, executivo e judicial – fossem exercidos de forma delimitada e distinta, por também distintas entidades (entenda-se, não estejam reunidos nas mãos do rei, como clarifica FREITAS DO AMARAL), num equilíbrio de potências. Então, não terão os senhores revolucionários estudado bem a lição? Pois. As concepções oriundas da revolução francesa, mais que fidelidade aos preceitos iluministas, usaram-nas como disfarce para a instalação de um regime quase tão absolutista como o absolutismo – o particular era visto como um objecto nas mãos do poder público, justificando-se como actuava a Administração em torno do princípio da legalidade e interesse público, não servindo instrumentos de verdadeira garantia dos direitos particulares. Não houve, portanto, uma verdadeira ruptura nas concepções de justiça e muito menos, equiparação entre Administração e administrados.

O sistema francês de contencioso administrativo inspirou, depois, outras transformações em Estados que viram o seu modelo de separação de poderes como uma janela aberta nos escuros calabouços de domínio régio, como o também oitocentista sistema anglo-americano. Enfim, talvez os que seguiram a Montesquieu tenham visto nele uma luz de inspiração tão dicotómica quanto o espírito das suas leis. Ou então, talvez, mas só talvez, o interesse verdadeiramente público ainda estivesse para nascer.

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