terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Os Princípios estruturantes do Contencioso Administrativo

Os Princípios estruturantes do Contencioso Administrativo


1- Os princípios “são normas que exigem a realização de algo, da melhor forma possível, de acordo com as possibilidades fácticas e jurídicas. Os princípios não proíbem, permitem ou exigem algo em termos de « tudo ou nada»; impõem a optimização de um direito ou de um bem jurídico, tendo em conta a « reserva do possível», fáctica e jurídica”. ”A convivência dos princípios é conflitual (...), a convivência das regras é antinómica”. “ os princípios coexistem, as regras antinómicas excluem-se”. ( J. J. Gomes Canotilho citado por Freitas do Amaral).
O Prof. Menezes Cordeiro define os princípios como como proposições que resultam de valorações operadas por diversas normas, mas que, ao contrário destas, não assentam numa previsão e numa estatuição. O mesmo Professor distingue três funções dos princípios: ordenadora, programática e regulativa.
O Prof. Fausto Quadros faz uma distinção entre a criação e a descoberta de princípios, consoante se adopte, respectivamente, uma visão posição positivista ou não positivista.
Os princípios estão intimamente ligados à política legislativa e são, nas palavras do Prof. Oliveira Ascensão, instrumentos para a formação de um sistema, sistema que está em constante aperfeiçoamento.
Assim, compreende-se que no processo administrativo a questão dos princípios de direito reveste especial importância, dado que houve uma relativamente recente e profunda reforma.
Os princípios têm uma relação correlativamente delimitadora e concretizadora com as regras propriamente ditas, no sentido de que permitem concretizar o que resulta directamente de uma norma, ao mesmo tempo que eles próprios resultam e emergem, pelo menos em parte, do conjunto de normas de um sistema.
É esta ideia e é nesta visão de sistema ou de ordem jurídica global que os princípios ganham relevo. A visão de cada norma por si própria, ( não integrada num sistema coerente que harmonize múltiplos valores necessários, mas por vezes conflictuantes), não é suficiente para a boa aplicação do Direito. Ora, para esta harmonização e para moldar este sistema têm um enorme papel os princípios.

O Prof. Vieira de Andrade fala em duas ideias estruturantes dos processos no nosso contencioso:
- o processo serve fundamentalmente os interesses das partes, cabendo ao juiz o papel de árbitro que se limita a fazer cumprir as “regras do jogo” e a garantir assim um processo justo. É o princípio do dispositivo.
- o processo é, ainda assim, uma forma de de realização de interesses públicos exteriores aos interesses dos litigantes. Desta ideia resulta o princípio do inquisitório ou da oficiosidade.
Estes dois princípios estão numa verdadeira tensão dialética não excludente, com evidentes conexões com a questão do Objectivismo/Subjectivismo.

Sendo certo que o mesmo Professor menciona ainda os preceitos constitucionais, penso ser necessário, ainda assim, referir os princípios do acesso à justiça que vem consagrado também na Declaração Universal dos Direitos do Homem ( artigo 10.º), previsto também no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa ( CRP) e especialmente o princípio da tutela jurisdicional efectiva e plena finalmente consagrado entre nós no artigo 268.º/4 e 5 da CRP e concretizado no artigo 2.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, ( que designaremos doravante de CPTA), a garantia de um processo justo, e, por fim, a garantia de um tribunal imparcial.

2- Princípios relativos à iniciativa procesual:

Dada a natureza predominantemente subjectivista do nosso contencioso e a visão do poder judicial como um poder imparcial e inoficioso, o primeiro princípio de que se pode falar é o da necessidade do pedido. Este é um princípio que extravasa o âmbito do processo administrativo, também se encontrando consagrado no artigo 3.º/1 do Código de Processo Civil ( daqui em diante apenas CPC).
Pode dizer-se que também uma estreita relação deste princípio com o princípio já aflorado do dispositivo, e também da própria ideia de um processo de partes, (com isto quere-se realçar que os tribunais não são parte do processo).

Assim, sendo um processo de partes e havendo necessidade de apresentação do pedido perante o tribunal pode falar-se no que o Prof. Vieira de Andrade apelidou de princípio da promoção alternativa, pública ou particular. A distinção entre promoção pública e privada tem relevância.
Nos processos de autoria particular vale a liberdade de iniciativa, dado que, para estes, a acção é vista como uma liberdade atribuída para estes fazerem valer os seus direitos, querendo. De facto, nenhum particular é obrigado a defender em tribunal os seus direitos ou a defendê-los sequer.
As coisas poderão já não ser bem assim quando a acção seja da autoria de pessoas colectivas ou de direito público. Estes têm de prosseguir o interesse público no âmbito das suas competências e atribuições e estão vinculados pelo princípio da legalidade. Se na maior parte dos casos haverá margem de discricionaridade para haver liberdade de iniciativa, não será de descartar a possibilidade de haver casos em que a Administração esteja “vinculada” a agir contenciosamente.
Caso especial é o do Ministério Público ( MP), ao qual cumpre a defesa da legalidade. O MP tem o dever genérico de velar pela legalidade, mas também ele goza de alguma discricionaridade, que se consubstancia no princípio da oportunidade. De facto, o MP não tem meios, nem o têm os tribunais para agir contenciosamente em todas as situações de dúvida sobre a legalidade de actos ou normas, ou contratos. Para além deste dever genérico pode-se falar num dever especial de promoção do processo nos casos dos actos nulos e dos actos violadores de direitos fundamentais ( orientação avançada na Circular do MP n.º 8/90 de 27 de Julho), dada a sua gravidade. Mas parece-me também ser especialmente adequada a acção do MP nos casos em que não há propriamente “lesados”, pelo menos de forma directa.


3- Princípios relativos ao âmbito do processo:

Foi preocupação do legislador da reforma 2002/2004, na perspectiva da tutela judicial plena e efectiva e, também, de certa forma, da economia processual, consagrar o princípio da resolução global da situação litigiosa. Este princípio manifesta-se na liberdade da cumulação originária ou sucessiva de pedidos ( artigo 4.º e 47.º do CPTA), na possibilidade de conhecimento oficioso dos vícios ( 95.º/2, parte final, do CPTA) e na plenitude da execução ( vejam-se a título de exemplo os artigos 164.º/3, 167.º/1 e 176.º/5 do CPTA).

O princípio da vinculação do juiz ao pedido consagra uma dupla vinculação: o juiz tem de decidir todas as questões suscitadas pelas partes e não pode conhecer outras que não essas. Este princípio retira-se do artigo 95.º/1 do CPTA. Esta vinculação deriva, de certo modo, do princípio do dispositivo.
Já se viu uma limitação deste princípio no que diz respeito aos processos impugnatórios ( artigo 95.º/2 CPTA). Outras limitações podem ser encontradas nos artigos 120.º/3, 131.º/3 ( no âmbito das providências cautelares) e também, de algum modo, no artigo 45.º.

O princípio da limitação do juiz pela causa de pedir obriga a que o tribunal só possa julgar com base nos fundamentos invocados pelas partes. Este princípio está limitado nos processos de declaração de ilegalidade de normas e de actos ( artigos 75.º e 95.º/2 do CPTA).

O pedido e a causa de pedir devem ser determinados no início do processo e devem manter-se. É o princípio da estabilidade objectiva da instância.
No entanto, existem inúmeras limitações a este princípio, por exemplo, as constantes do n.º 4 do artigo 51.º ( transformação de um pedido de anulação para um pedido de condenação à prática do acto devido) e do artigo 70.º/1 e 2 CPTA ( pretensão indeferida ou notificada na pendência do processo). Mais importantes são os mecanismos previstos nos artigos 63.º e 64.º CPTA, que prevêem a ampliação do objecto da acção e a substituição do pedido ( nos casos de revogação do acto indeferido). Relevante é também, neste âmbito, a intervenção do MP nos termos do artigo 85.º CPTA.
Também estão previstos os articulados supervenientes que se reportam a factos novos que podem ser utilizados até à fase das alegações ( 86.º CPTA). Já na fase das alegações, estão previstas as possibilidades do autor invocar fundamentos novos de conhecimento superveniente ou restringi-los ( 91.º/5 CPTA), e de ampliar o pedido nos mesmos termos em é admitida a modificação objectiva da instância ( 91.º/6 CPTA), sempre com respeito pelo contraditório.


4- Princípios relativos à prossecução processual:

A prossecução do processo deve operar-se nos termos de três princípios.
São eles o princípio da tipicidade dos trâmites processuais, o da compatibilidade processual, previsto no artigo 5.º CPTA a propósito da compatibilidade das formas de processo ( comum e especial) no casos de cumulação de pedidos, e o princípio da adequação formal.
Este último princípio que se encontra consagrado no artigo 265.º-A do CPC, está também intimamente ligado com o princípio da tutela judicial efectiva e plena. Pode dizer-se que este princípio encontra uma manifestação no artigo 2.º/2 do CPTA.
Na concretização destes princípios também devem ser tidos em conta os valores de celeridade e economia processual.

O princípio do dispositivo, neste âmbito, refere-se à dinamização do processo, que deve ser levada a cabo pelas parte. Manifestações deste princípio são a possibilidade de desistência prevista no artigo 62.º CPTA e também a possibilidade de um acordo da Administração e o particular causar a inexecução de uma sentença ( 159.º/1 CPTA). Este princípio é mitigado pelo assumir do papel de autor, pelo MP, nos casos de desistência do autor ( 62.º/1 CPTA) e, mais amplamente, pelo princípio do inquisitório.
Com este princípio está ligado o princípio da igualdade das partes ( artigo 6.º CPTA).

O artigo 8.º CPTA consagra os princípios da cooperação e boa-fé processual. O primeiro impõe a cooperação de todos os intervenientes para obter um processo breve e eficaz.
O segundo princípio impõe a regra da boa fé, que, aliás, deve pautar as relações com a Administração em geral ( artigo 6.º-A do CPA). Novidade, a este propósito é a admissibilidade de condenação da Administração por litigância de má fé ( veja-se o Ac. STA de 19/2/98).

O princípio do contraditório visa dar oportunidade, em condições de igualdade material ou efectiva, de participação e intervenção de todos os participantes processuais. Este princípio faz parte também do direito processual civil, sendo consagrado no artigo 3.º/2 e 3 do CPC, e visa permitir a decisão imparcial ( imparcialidade que não existiría se os factos invocados não pudessem ser discutidos) e fundamentada. As exigências feitas nos artigos 57.º e 68.º do CPTA, em relação aos contra-interessados é uma manifestação deste princípio.
A este princípio está ligado um outro, que é o da audiência ( ou dever de consulta, dependendo da perspectiva), que é um direito fundamental dos particulares quando esteja em causa a aplicação de sanções pessoais.
Há um certo paralelismo funcional entre este princípio e o da audiência prévia no direito substantivo ( artigos 100.º e seguintes do CPA).

O princípio constitucional de acesso efectivo à justiça ( artigo 20.º da CRP) implica que a interpretação e aplicação das normas processuais favoreçam esse mesmo acesso aos tribunais. O artigo 7.º do CPTA consagra este princípio que é o do favorecimento do processo ( pro actione). Para além do acesso aos tribunais este princípio visa favorecer a tomada de decisões de mérito, e não meramente formais.

Os princípios da economia e celeridade processual são princípios relativos, ou seja, cedem, ( mais facilmente), perante outros valores.
Destes princípios resulta que os processos devem ser breves e eficazes, o que é uma concretização do ideal de justiça ou do processo justo.
Recorde-se a este propósito o artigo 20.º/4 CRP, que obriga à decisão num prazo razoável e equitativo. Outra manifestação deste princípio é a previsão de processos urgentes ( 97.º e seguintes do CPTA e que visa fazer face às necessidades de celeridade mais acentuadas) e os processos em massa ( artigo 48.º CPTA, exemplo de soluções económicas).
Como se avançou, estes princípios são subordinados em relação à ideia de processo justo. Quando as proporções de economia e celeridade atingirem o ponto em que ponham em causa esse processo justo, estes princípios têm de ceder. Isto denota-se, igualmente, no próprio artigo 20.º/4 CRP, quando reafirma a necessidade de um processo equitativo depois de exigir a celeridade da decisão.

5- Princípios relativos à prova:

O princípio da investigação implica que os fundamentos da decisão do juiz não têm de se limitar aos factos invocados pelas partes. Este princípio revela, mais acentudamente, a preocupação pela descoberta da verdade material. Revelam-se aqui também os traços mais objectivistas do contencioso.
Manifestações deste princípio são a possibilidade do MP solicitar ao juiz as diligências de instrucção que entenda necessárias ( 85.º/2 CPTA) e também a possibilidade de o juiz ordenar também ele as diligências de prova que considere necessárias para o apuramento da verdade, nos termos do artigo 90.º/1 CPTA.
Também já foi visto que, nos processos de impugnação de actos e normas, o juiz não está limitado pelos causas de invalidade invocadas ( por exemplo artigo 95.º/2 CPTA), embora esteja, não obstante, genericamente limitado pela causa de pedir.

O princípio da universalidade dos meios de prova só é limitado pelas proibições de prova determinadas no artigo 32.º/8 CRP, que, no entender do Prof. Vieira de Andrade deve ser aplicado a todos os processos, apesar de previsto especialmente para o criminal.
Aplicam-se à prova as disposições do CPC ( artigos 513.º e seguintes do CPC) por remissão do artigo 90.º/2 CPTA.

O princípio da aquisição processual determina que todos os factos invocados aproveitem a todas as partes, e, não necessariamente apenas para aquelas que os invocaram.

Análogamente ao que se verifica no processo civil, vigora no contencioso administrativo o princípio da livre apreciação das provas. Este princípio erege a livre ou íntima convicção do julgador como critério máximo de decisão no processo. Nesta convicção não devem ser excessivos os elementos subjectivos ( se tal fosse possível, nem o deverião ser de todo). O que se quer dizer é que esta convicção não é arbitrária, mas vinculada pela interpretação dos factos e das provas de acordo com a experiência comum ( entra aqui a ideia do bonus pater familias). Ou seja, não há uma fixação legal do valor atribuído às provas, como ocorreu em tempos.
O juiz deve sim ponderar, por ele, o valor concreto e comparativo a dar a cada prova de acordo com essa “experiência comum”. A valoração das provas não pode, no entanto, desrespeitar o contraditório.
Esta valoração livre está restringida em dois casos constantes dos artigos 84.º/5 e 118.º/1 do CPTA que exprimem, no entanto, dois propósitos específicos que a lei quis, claramente, estabelecer. No primeiro caso uma sanção por inércia, o segundo devido à natureza do próprio processo.

O princípio da repartição do ónus da prova objectivo reporta-se à repartição necessária dos encargos de alegação, questão que redunda em grande parte das vezes para a distribuição do risco da falta de prova, dado que nem sempre é possível chegar a uma conclusão com certeza absoluta.
A regra geral é a de que,quem invoca um direito tem de o provar ( 342.º do Código Civil).
Esta regra, no entanto, não é adequada para resolver todos os casos, nomeadamente, nos casos em que não é de direitos que tratam as acções, mas de interesses difusos ou os interesses de facto.
A sujeição da Administração à legalidade e à juricidade levam a que, à partida, estejam mais habilitadas para assumir encargos probatórios, sendo a sua actuação, em grande parte das vezes sujeita a fundamentação ( 124.º CPA).
O Prof. Vieira de Andrade fala em quadros de normalidade, e que, em sua consequência, à Administração devia caber o ónus de provar a verificação dos aspectos vinculados e ao particular o ónus relativo aos aspectos discricionários.
O Professor menciona ainda alguns casos-tipo.


6- Princípios relativos à forma processual:

Ao contrário do que era tradicional na justiça administrativa a oralidade tem larga relevância no contencioso.
Na acção comum, dado que segue a tramitação do CPC ( por remissão do artigo 42.º/1 do CPTA), há audiência de discussão e julgamento, que é oral.
Mas, também na acção administrativa especial encontramos manifestações de “modernização” da justiça, permitindo-se assim optar, no âmbito do processo urgente pré-contratual, por uma audiência pública oral ( 103.º CPTA), permitindo-se a opção de o juiz ordenar uma audiência pública para discussão oral da matéria de facto ( artigo 91.º/1 a 3 CPTA), e, por fim, nos casos de urgência, no âmbito do processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, a possibilidade de o juiz optar por realizar uma audiência oral em 48 horas para decisão imediata ( 111.º/1 CPTA).
Este princípio da oralidade está intimamente relacionado com o princípio da publicidade e, parece-me ser a melhor forma de garantir a fiscalização popular da justiça. Dado, o número avassalador de acções administrativas especiais em relação às comuns, só é pena é que a consagração do princípio da oralidade não tenha sido, neste âmbito, maior.

Como se referiu, o princípio da publicidade está ligado à fiscalização popular da administração da justiça, que, recorde-se, é da sua titularidade, ainda que não da sua competência ( artigo 202.º CRP).
Este princípio tem referência no CPTA, nomeadamente, no seu artigo 30.º, que prevê as suas condições.

Por fim, o princípio da fundamentação obrigatória das sentenças decorre do facto ainda agora salientado de que, os tribunais administram a justiça em nome do povo ( 202.º/1 CRP) e como tal devem, através da fundamentação, e, a meu ver, através da oralidade e publicidade prestar constas aos titulares da Justiça.
Este princípio resulta directamente da Constituição, que prevê esta necessidade no seu artigo 205.º/1. Vem ainda consagrada tanto no CPTA ( artigo 94.º) como no CPC ( artigo 158.º).

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