quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Providências Cautelares

Na matéria de meios ou de processos cautelares, a situação anterior era, pode dizer-se, catastrófica. Os meios cautelares estavam reduzidos praticamente à suspensão da eficácia do acto, tal como também, em grande medida, o contencioso se reduzia ao recurso contencioso de anulação.
Ainda para mais, os meios cautelares apareciam embrulhados e confundidos numa categoria genérica de “meios processuais acessórios”, onde se juntavam com figuras que não pertenciam a esta pequena família : as intimações para comportamento e, sobretudo, a execução de julgados, que é um processo principal, quando não seja um processo executivo. Como a “intimação para um comportamento” não valia contra a Administração, a suspensão da eficácia do acto era praticamente o único processo cautelar previsto expressamente na legislação administrativa. E esse meio era, ainda por cima, previsto, entendido e aplicado em termos muito limitados.
Quanto ao objecto, só valia relativamente a actos administrativos – em bom rigor só para actos com efeitos positivos – e, portanto, não incluía, nem normas, nem actos negativos.
Quanto ao conteúdo, apenas se referia a efeitos conservatórios, não admitindo providências antecipatórias.
E no que respeitava aos critérios para a sua concessão, exigia-se que houvesse uma irreparabilidade do dano decorrente da execução do acto, mas a providência só era decretada se (além da admissibilidade formal aparente do pedido de anulação) dela não resultasse prejuízo grave para o interesse público. Não havia consideração do fumus boni iuris: não havia a possibilidade de atender à aparente ou provável procedência ou improcedência do pedido; tal como não havia lugar à ponderação dos interesses em jogo.
No entanto, a Constituição, desde a revisão constitucional de 1997, passou a referir expressamente a protecção cautelar adequada como uma dimensão do princípio da tutela judicial efectiva dos direitos dos administrados (refira-se, aliás, que a Constituição portuguesa é actualmente, das que conhecemos, a única a prever expressamente a protecção cautelar). E a isso não foi alheia a jurisprudência, que, em conspiração com a doutrina, continuou uma tendência que vinha já desde a revisão constitucional de 1989, minorando de algum modo as deficiências legais. Assim, conseguiu, nalguns casos com uma certa generosidade, suspender actos que eram negativos, mas que tinham alguns efeitos positivos. Tal como por vezes também realizou uma ponderação entre o dano previsivelmente decorrente da demora e a gravidade do prejuízo para o interesse público. E chegou-se mesmo, em certos casos, a aplicar as “providências cautelares não especificadas “ do Código do Processo Civil, ou a reconhecer a sua aplicabilidade, com base no princípio constitucional da tutela judicial efectiva. Tudo isto significou algum benefício, mas as soluções sem lei ou fora da lei eram pontuais, incertas e sistematicamente insuficientes – impunha-se uma alteração legislativa. A reforma era neste ponto, inquestionavelmente necessária. Também não bastava a influência do direito comunitário, cuja jurisprudência, desde o caso Factortame, impunha uma protecção cautelar efectiva – mas que só seria eficaz quanto aos direitos reconhecidos aos particulares pela ordem jurídica comunitária.

Relativamente às suas características, o processo cautelar é um processo que tem uma finalidade própria – visa assegurar a utilidade da lide, isto é, de um processo que normalmente é mais ou menos longo, porque implica uma cognição plena. Pode dizer-se que os processos cautelares visam especificamente garantir o tempo necessário para fazer Justiça. Mesmo quando não há atrasos, há um tempo necessário para julgar bem. E é precisamente para esses casos, para aqueles processos em que o tempo tem de cumprir-se para que se possa julgar bem, que é necessário assegurar a utilidade da sentença que, no final, venha a ser proferida.
Em virtude dessa função própria de prevenção contra a demora, as providências cautelares têm características típicas : a instumentalidade – isto é, a dependência, na função e não apenas na estrutura, de uma acção principal, cuja utilidade visa assegurar; a provisoriedade – pois que não está em causa a resolução definitiva de um litígio; e a sumaridade – que se manifesta numa cognição sumária da situação de facto e de direito, própria de um processo provisório e urgente.
Os processos cautelares distinguem-se, desta forma, dos processos urgentes autónomos, que são processos principais e visam a produção de decisões de mérito: assim acontece, no âmbito do CPTA, tanto com as impugnações urgentes eleitorais ou de actos pré-contratuais, como com as intimações para cumprimento do direito à informação ou para protecção de direitos, liberdades e garantias.

A lei, em cumprimento estrito da garantia constitucional, admite providências de quaisquer tipos, desde de sejam adequadas a assegurar a utilidade da sentença a proferir num determinado processo (artigo 112.º, nº1 CPTA). Ao juiz pode agora pedir-se tudo aquilo que seja adequado e que ele possa fazer com respeito pelos espaços de avaliação e decisão próprios da Administração. Isso significa, em geral, que, considerando os grandes tipos de providências cautelares, o processo administrativo não dispõe agora apenas de providências conservatórias, mas também de providências antecipatórias, incluindo nestas as providências de regulação provisória ou interina de situações. Providências conservatórias são as que visam manter ou preservar a situação existente, designadamente assegurando ao requerente a manutenção da titularidade ou do exercício de um direito ou de gozo de um bem, que está ameaçado de perder. Providências antecipatórias são as que visam prevenir um dano, obtendo adiantadamente a disponibilidade de um bem ou o gozo de um benefício a que o particular pretende ter direito, mas que lhe é negado (antecipam uma situação que não existia, quando haja um interesse pretensivo).
Quanto aos conteúdos, são susceptíveis de serem decretadas quaisquer providências que se revelem adequadas, embora haja uma enumeração exemplificativa no nº 2 do artigo 112.º, em que naturalmente predominam as referências às providências antecipatórias, enquanto novidades a salientar. A este propósito, é de assinalar que a universalidade também se estende a todas as formas de actividade administrativa, por exemplo, quanto à suspensão da eficácia, pois que, além da suspensão dos actos administrativos, se passou a admitir a suspensão de eficácia de contratos e de normas, embora com algumas limitações.
A lei enumera vários exemplos de providências, devendo salientar-se, pelo seu carácter emblemático, a intimação para a adopção ou abstenção de uma conduta por parte da Administração, justamente a antiga intimação para um comportamento que antes não podia ser utilizada contra a Administração – que não abrange obviamente a possibilidade de intimação para a prática de um verdadeiro acto administrativo. A lei refere-se ainda às providências previstas no Código do Processo Civil, que serão aplicáveis com as devidas adaptações, mas na opinião de Viera de Andrade, não parece que esta remissão normativa faça grande sentido, partindo da ideia de que o CPTA já permite quaisquer providências adequadas, não acrescentando tal previsão nada de extraordinário.
Concretizando, a lei estabelece a universalidade dos conteúdos e a universalidade das providências susceptíveis de serem pedidas e concedidas (princípio da atipicidade).


Em matéria de requisitos da decisão cautelar, o próprio conceito de medida cautelar, ao visar a garantia da utilidade da sentença, pressupõe a existência de um perigo de inutilidade, total ou parcial, resultante do decurso do tempo e, especialmete no direito administrativo, da adopção ou da abstenção de uma pronúncia administrativa. O artigo 120.º CPTA estabelece este requisito ao exigir, para a adopção da providência cautelar, que “haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal”. O juiz deve, pois, fazer um juízo de prognose, colocando-se na situação futura de uma hipotética sentença de provimento, para concluir se há, ou não, razões para recear que tal sentença venha a ser inútil, por entretanto se ter consumado uma situação de facto incompatível com ela, ou por se terem produzido prejuízos de difícil reparação para quem dela deveria beneficiar, que obstam à reintegração específica da sua esfera jurídica. Neste juízo, o fundado receio haverá de corresponder a uma prova, por regra a cargo do requerente, de que tais consequências são suficientemente prováveis para que se possa considerar “compreensível ou justificada” a cautela que é solicitada.
Como decorre da universalidade das providências admitidas, tanto releva o periculum in mora de infrutuosidade, que exigirá, em regra, uma providência conservatória, de modo a manter a situação existente, como o periculum in mora de retardamento, que postulará a adopção de uma providência antecipatória, que antecipe parcial ou mesmo totalmente, ainda que provisoriamente, a solução pretendida ou regule interinamente a situação. Repare-se que a lei não refere este requisito para a adopção da providência cautelar, quando seja evidente a procedência da pretensão formulada [alínea a) do nº1 do artigo 120.º]. Conclui-se que, nesses casos, o tribunal está dispensado de fundamentar a sua decisão na comprovação dessa perigosidade específica – no entanto, mesmo nessas situações, o perigo releva, na medida em que a providência só pode ser pedida e concedida quando haja um interesse em agir que se manifeste no fundamento do pedido, embora baste aí provar que assim se assegura alguma utilidade à sentença. Dos termos da lei, resulta ainda que devem ser atendidos todos os prejuízos relevantes para os interesses do requerente, seja este um particular, seja o Ministério Público ou um dos actores populares.
Um dos aspectos mais inovadores da reforma foi o da consagração da juridicidade material como padrão de decisão cautelar, passando-se a a reconhecer e a conferir relevo fundamental ao fumus boni iuris. O juiz tem agora o poder e o dever de, ainda que em termos sumários, avaliar a probabilidade da procedência da acção principal, isto é, em regra, de avaliar a existência do direito invocado pelo particular ou da ilegalidade que ele diz existir, ainda que esteja em causa um «verdadeiro» acto administrativo. O papel que é conferido ao fumus boni iuris (ou “aparência do direito”) é decisivo, desde logo porque parece ser o único factor relevante para a decisão de adopção da providência cautelar, em caso de evidência da procedência da pretensão principal, designadamente por manifesta ilegalidade do acto. De facto, nesta hipótese, o juiz pode decretar a providência adequada, mesmo sem a prova do receio de facto consumado ou da difícil reparação do dano e independentemente dos prejuízos que a concessão possa virtualmente causar ao interesse público ou aos contra-interessados. Pois se é evidente que um particular tem razão, se é evidente que o acto é ilegal e que a acção vai ter sucesso, então, não há, em regra, razão para deixar de conceder essa tal providência. Note-se, porém, que o critério legal é o do carácter evidente da procedência da acção e não, por exemplo no caso dos meios impugnatórios, o da evidência do vício. Efectivamente, nos casos de evidência da legalidade ou da ilegalidade da pretensão, o fumus boni iuris ou o fumus malus funcionam como o fundamento determinante da concessão ou da recusa da providência. Nas situações intermédias, que corresponderão à grande maioria dos casos, quando haja uma incerteza prima facie relativamente à existência da ilegalidade ou do direito do particular, a lei opta por uma graduação, em função do tipo de providência requerida: a) se a probabilidade for maior, isto é, “se for provável que a pretensão principal venha a ser julgada procedente nos termos da lei”, pode ser decretada a providência, mesmo que seja antecipatória; b) se a providência pedida for apenas uma providência conservatória, já não é preciso que se prove ou que o juiz fique com a convicção da probabilidade de que a pretensão seja procedente, bastando que “não seja manifesta a falta de fundamento”. Basicamente, a lei basta-se com um juízo negativo de não-improbabilidade (non fumus malus) para fundar a concessão de uma providência conservatória, mas obriga a que se possa formular um juízo positivo de probabilidade para justificar a concessão de uma providência antecipatória. Isto, em qualquer dos casos, desde que se verifiquem os outros requisitos necessários para a concessão, designadamente, o receio da constituição de uma situação de facto consumado, ou da produção de prejuízos de difícil reparação para o requerente, bem como, a proporcionalidade dos efeitos. De facto, o peso do princípio da proporcionalidade na decisão de concessão ou de recusa da providência é enorme. Trata-se mesmo, de uma característica nuclear do novo sistema de protecção cautelar que implica a ponderação de todos os interesses em jogo, de forma a fazer depender a própria decisão sobre a concessão, ou não, da providência cautelar dos interesses preponderantes no caso concreto, sempre que não seja evidente a procedência ou improcedência da pretensão formulada. Concretamente, está em causa a possibilidade de, mesmo que se verifiquem os dois requisitos fundamentais – quer o periculum in mora, quer o fumus boni iuris (quando haja probabilidade de procedência ou não seja manifesta a falta de fundamento da acção principal) -, o juiz dever recusar a concessão da providência cautelar, quando o prejuízo resultante para o requerido se mostre superior ao prejuízo que se pretende evitar com a procedência. O que significa que a reforma introduziu o princípio da proporcionalidade, na sua dimensão estrita de equilíbrio, na decisão sobre a concessão ou a recusa da providência cautelar. Normalmente os interesses do requerido correspondem ao interesse público e, por isso poderia haver a tentação de ver aqui um resquício da antiga ideia da exclusão da providência em caso de prejuízo grave para o interesse público e, dessa forma, de uma tendência para a sistemática prevalência do interesse público sobre o interesse particular. Mas, em rigor, não é isso que se deve retirar do regime legal: a lei não pode ser interpretada como um reconhecimento implícito ou um pretexto para a prevalência sistemática do interesse público sobre o particular. Desde logo, veja-se que, a ponderação não se realizará quando seja evidente a procedência da pretensão principal, isto é, quando seja manifesta a existência do direito do particular ou de uma ilegalidade relevante por ele invocada – ou seja, só funciona em situações de dúvida ou de incerteza. Na realidade, o que está em causa não é ponderar valores ou interesses entre si, mas danos ou prejuízos e, portanto, os prejuízos reais, que numa prognose relativa ao tempo previsível de duração da medida, e tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, resultariam da recusa ou da concessão da providência cautelar. Um outro aspecto, este de garantia processual, em que também se revelam as ideias de proporcionalidade e de ponderação é o da participação directa dos contra-interessados, garantida pela sua indicação obrigatória no requerimento inicial e pela sua citação para eventual oposição.
A ideia de proporcionalidade não se manifesta apenas na decisão de concessão, ou não da providenciam mas também no que respeita ao conteúdo ou ao tipo da providência a adoptar. Essa ideia surge, desde logo, na dimensão de necessidade: nos termos no nº3 do artigo 120.º CPTA, as providências devem limitar-se ao necessário para evitar a lesão dos interesses defendidos pelo requerente. Por isso, a lei confere ao tribunal um poder discricionário para, ouvidas as partes, decretar uma providência que não lhe tenha sido requerida, em cumulação ou em substituição daquela que o foi, quando isso seja adequado para evitar a lesão do requerente e seja menos gravoso para os demais interesses públicos.
De referir também que a tutela cautelar constitui por definição, uma regulação provisória de interesses, daí o seu aspecto marcante da provisoriedade. O carácter urgente do processo e, em especial a sumaridade do conhecimento da questão pelo juiz também devem ser especificamente considerados. Finalmente a instrumentalidade estrutural do processo significa que os processos cautelares dependem intimamente de uma causa principal, que tem por objecto a decisão sobre o mérito (tal resulta do artigo 112.º CPTA).

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