terça-feira, 16 de dezembro de 2008

O ÂMBITO DA JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA:

A RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL


 

 

Sumário: 1. A reserva constitucional da jurisdição administrativa; 2. O Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais; 3. A Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro

 

 

1. A reserva constitucional da jurisdição administrativa

 

A revisão constitucional de 1989 veio entre nós consumar a plena jurisdicionalização da Justiça Administrativa, iniciada pela Constituição da República Portuguesa (CRP) na sua versão originária de 1976[1].

Ultrapassada estaria, assim, a ideia de que os tribunais administrativos não eram verdadeiros tribunais, integrantes do Poder Judicial, mas antes eram órgãos pertencentes à Administração Pública. Esta concepção, consequência daquele entendimento liberal francês de que julgar a administração seria ainda administrar, estava ainda latente no art. 212.º, n.º 3, CRP, na sua primeira redacção, que apenas previa a possibilidade da existência de tribunais administrativos e fiscais. Mas esse preconceito persistiu enquanto perdurou a vigência do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) de 1984, ou seja, até 1 de Janeiro de 2004, quando entrou em vigor o actual ETAF[2].

No entanto, como se disse, desde 1989 que o compromisso constitucional era outro. O novo art. 214.º CRP, actual 212.º, consagrou, no seu n.º 3, a jurisdição administrativa como a ordem de tribunais encarregada de “dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas”.

Desta forma, há que, em primeiro lugar, saber se da interpretação deste normativo resulta uma reserva material absoluta de jurisdição atribuída ao foro administrativo, num duplo sentido de, por um lado, perceber se os tribunais administrativos só podem julgar questões de direito administrativo (material) e se, por outro lado, só eles podem conhecer tais questões[3].

Quanto ao primeiro aspecto, para compreendermos a dimensão máxima da reserva de jurisdição administrativa, temos de ter em conta que a consagração da norma constante no art. 212.º, n.º 3, CRP visou o estabelecimento de uma linha divisória perante a jurisdição comum. Ou seja, há que interpretar essa norma através de um raciocínio de redução teleológica, concluindo que o legislador não quis de forma cortante estabelecer um limite máximo à jurisdição administrativa, por isso admitindo o preceito constitucional a entrega aos tribunais administrativos da competência para conhecer de litígios sobre questões juridico-públicas[4] e da competência para decidir diferendos referentes à actividade administrativa, ainda que incluíssem aspectos de direito privado[5].

 Por um lado, a jurisdição administrativa capta para si o poder de apreciação de todas as matérias de natureza juridico-pública, mesmo quando essas excedam o domínio da função administrativa – nomeadamente quanto a questões de responsabilidades pelo exercício das funções legislativa e jurisdicional –, desde que não tenham sido expressamente confiadas a outra jurisdição especializada[6]. Isto é, a jurisdição administrativa apresenta-se como a jurisdição geral em matérias juridico-públicas, a menos que o legislador, por razões políticas ou jurídicas devidamente fundamentadas, derrogue esta regra para atribuir ao Tribunal Constitucional ou ao Tribunal de Contas jurisdição sobre determinada matéria desse foro[7].

Por outro lado, é suscitada a questão de saber se podem os tribunais administrativos conhecer de litígios que incluam aspectos de direito privado. Com maiores ou menores reservas, essa possibilidade é hoje aceite pela generalidade da doutrina, que se desenvolveu no sentido inverso ao que era inicialmente propugnado pelo Supremo Tribunal Administrativo e pelo Tribunal Constitucional. Assim, é hoje (quase) pacificamente aceite a atribuição legal à jurisdição administrativa de litígios referentes à actividade administrativa que impliquem questões de direito privado[8]. Essencial será, mesmo para os autores mais reticentes em relação a esta possibilidade, não o ramo de direito aplicável, mas que estejam em causa acções ou omissões de tonalidade pública[9].

Desta feita, deve considerar-se ultrapassada a jurisprudência do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal Administrativo que entendia inconstitucionais as leis que conferissem aos tribunais administrativos competência para o julgamento de litígios que não fossem emergentes de relações jurídicas administrativas[10]. Pelo contrário, antes serão de acolher a doutrina e a nova jurisprudência que admitem a atribuição da resolução de litígios referentes a actividades da Administração, ainda que respeitem a relações ou incluam elementos de direito privado, aos tribunais administrativos [11].

Mas esta questão, por revestir particular interesse no âmbito da análise da responsabilidade civil administrativa pelos seus actos e omissões, não será para já tão aprofundadamente estudada quanto se exige, pois fá-lo-emos adiante.

Quanto ao segundo aspecto referido, o de saber se apenas os tribunais administrativos podem conhecer de questões emergentes de relações juridico-públicas, de novo se dirá que o preceito constitucional não formula um imperativo estrito, que contenha uma proibição absoluta[12].

Se atendermos à história do actual art. 212.º CRP compreendemos que a sua consagração visou a afirmação da ordem judicial administrativa como uma jurisdição própria, ordinária, abandonando aquela ideia de que a jurisdição administrativa seria especial ou excepcional em face dos tribunais judiciais.

Por isso se formulou um preceito que define a área da nova ordem judicial administrativa adoptando o sistema da cláusula geral, sem que com isso se estabeleça uma reserva material absoluta[13].

É certo que o ideal será que a totalidade dos litígios juridico-administrativos passem a caber à jurisdição administrativa. E é por isso que os tribunais comuns, quando conhecem de causas resultantes de relações jurídicas administrativas que lhes estejam submetidas, seguem os trâmites previstos no CPTA, por força do art. 192.º deste código, a menos que caibam um processo especial para essas causa[14].

Mas parece excessivo retirar daquele art. 212.º CRP que serão inconstitucionais as leis que remetam para outros tribunais, designadamente para os tribunais judiciais, o julgamento de litígios materialmente administrativos, quando assim não tenha sido previsto pela CRP[15].

Antes diremos, acolhendo a doutrina do Prof. VIEIRA DE ANDRADE[16], seguindo a jurisprudência do STA[17], do Tribunal de Conflitos[18] e do TC[19], que o preceito constitucional define um modelo típico, susceptível de adaptações ou de desvios em casos especiais, desde que não fique prejudicado o núcleo caracterizador do modelo.

Desta forma, respeitará essa regra a atribuição à jurisdição comum de competência para julgar litígios materialmente administrativos desde que a título excepcional e devidamente fundamentada em razões substantivas ou de natureza prática, mas com relevo jurídico (nomeadamente, a salvaguarda das condições de efectiva obtenção de tutela jurisdicional plena)[20] e não só as devoluções de competência em caso de estado de necessidade – na medida em que, por razões práticas, seja impossível o cumprimento da reserva ou a realidade imponha a necessidade de desaplicar na norma constitucional[21].

Mais. Concordamos que o preceito implique que, tendencialmente, a apreciação jurisdicional dos litígios referentes a relações administrativas não deve ser subtraída aos tribunais administrativos, sempre na medida da existências de condições objectivas que permitam uma efectiva tutela jurisdicional[22].

Mas o que a norma constitucional impreterivelmente impõe é que seja respeitada a garantia institucional de justiça administrativa em sentido material. Quer isto dizer que o que dela decorre é a obrigação para o legislador de respeitar  o núcleo essencial da organização material das jurisdições. Ou seja, todas as razões apontadas acima são de ter presentes e são de ponderar, mas o que realmente a CRP proíbe é a descaracterização da jurisdição administrativa, enquanto jurisdição própria ou principal para julgar os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas. Assim, não está proibida a atribuição pontual a outros tribunais da competência para o julgamento de questões substancialmente administrativas, desde que tais remissões se façam dentro da razoabilidade e do justificável, cabendo essa definição nos limites da margem de escolha política, dentro da margem de liberdade constitutiva do poder legislativo, designadamente naquelas situações de fronteira em que há dúvidas de qualificação ou naquelas zonas de intersecção entre as matérias administrativas e as restantes[23]. Quando assim actue o legislador ordinário ser-lhe-á exigível que expressamente demonstre essa sua intenção e a justifique, por razões substanciais (como a proximidade de matérias) ou mesmo conjunturais (como a cobertura territorial da jurisdição, por exemplo). E sempre tendo em conta que tais remissões hão-de ser excepcionais e limitadas, por respeito àquele núcleo fundamental que a CRP atribui à jurisdição administrativa[24].

Tudo visto, podemos concluir, como faz JORGE MIRANDA, citado por CARLA AMADO GOMES que “Os Tribunais administrativos hão-de ser, por regra, os tribunais de contencioso administrativo, mas sem se vedarem derrogações em nome de outros interesses ou valores constitucionalmente atendíveis, assim como, em contra partida, poderão, porventura, ser-lhes adicionadas competências vizinhas ou conexas”[25].

 

 

2. O Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais

 

Para definir o âmbito da nova jurisdição administrativa, o legislador da reforma do contencioso administrativo fez uso de um sistema misto, ou seja, recorreu a uma cláusula geral enquanto critério de delimitação da jurisdição e complementou-a com uma enumeração exemplificativa positiva, de inclusão de matérias, e negativa, de exclusão de possíveis objectos de litígio[26].

Assim, o legislador ordinário fez uso do conceito constitucional do art. 212.º, n.º3, e transpô-lo para o art. 1.º ETAF, elegendo a relação jurídica administrativa como critério de delimitação do âmbito da jurisdição administrativa.

Por outro lado, torneou essa cláusula geral identificando no art. 4.º, n.º 1, ETAF alguns dos mais importantes litígios incluídos na jurisdição administrativa e, nos n.ºs 2 e 3 desse preceito, alguns outros dela excluídos. Mas, apesar de esta enumeração ser meramente exemplificativa, não se pode dizer que ela se limite a concretizar a cláusula geral do art. 1.º: o art. 4.º ETAF acrescenta várias situações à jurisdição administrativa, que não lhe caberiam de forma natural, por surgirem de relações jurídicas de outra natureza, assim como também subtrai a essa jurisdição várias outras questões de natureza administrativa.

Daí a relevância da exposição que fizemos antes, quanto à reserva material de jurisdição administrativa operada pela CRP, pois essas adições e subtracções de litígios à Justiça Administrativa foram operadas pelo legislador com base no pressuposto de que nunca se desrespeitou aquele art. 212.º, n.º 3, CRP[27].

No final de contas, resulta da análise do art. 4.º ETAF que a reforma do contencioso trouxe um inovador alargamento do âmbito da jurisdição administrativa em relação ao que acontecia antes, nomeadamente em matérias como a actividade contratual e a responsabilidade civil da Administração Pública[28] – tema, este último, que por agora nos ocupa.

Posto isto, actualmente, compete aos tribunais da jurisdição administrativa (e fiscal) a apreciação de litígios que tenham por objecto questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público – art. 4.º, n.º1, al. g) ETAF.

A actual redacção desta alínea pretendeu dissipar as dúvidas que existiam em torno da sua primeira letra, esclarecendo que passam a também integrar o âmbito da jurisdição administrativa as acções de responsabilidade por actos de gestão privada das pessoas colectivas de direito público. Ainda assim, a falta de clareza na sua expressão não afasta totalmente essas dúvidas, mais ainda se lermos a cláusula geral do art. 1.º ETAF em termos restritivos, considerando-a como delimitadora do âmbito da jurisdição administrativa[29]. Mas, tendo em conta a letra da lei, que não distingue entre actos de gestão pública e gestão privada, e os motivos que levaram à Proposta de Lei que veio a dar origem ao ETAF, resulta deste normativo que sempre que uma pessoa de direito público deva responder extracontratualmente por prejuízos causados a outrem, o julgamento da respectiva causa pertencerá à jurisdição administrativa, independentemente da qualificação do acto lesivo como acto de gestão pública ou de gestão privada[30].

Esta foi uma das maiores novidades introduzidas pela reforma do contencioso administrativo: a eliminação da dicotomia gestão pública/gestão privada enquanto critério de repartição de competências entre o foro administrativo e o foro comum, o que implicou um alargamento daquela jurisdição face ao que tradicionalmente se entendia[31].Mas será que esta norma extravasa o critério enunciado no art. 1.º ETAF? Mais parece ter subjacente um novo entendimento de relação jurídica administrativa, que inclui a tradicionalmente chamada actividade de gestão privada da Administração Pública[32].

O que há a reter é que, da interpretação desta alínea do art. 4.º, n.º 1, ETAF, conjugada com as demais referentes à responsabilidade civil pública, a reforma do contencioso administrativo consagrou um regime de unidade jurisdicional, abandonando a (falsa) distinção entre gestão pública e gestão privada como critério de determinação da competência do tribunal[33], procurando pôr fim a séculos de conflitos negativos de jurisdição, com todos os prejuízos que essas dúvidas trouxeram à boa e célere aplicação da Justiça Administrativa. Apenas duas ressalvas a esta afirmação se impõem: a primeira, referente à al. i) do preceito em causa, que faz depender a jurisdição aplicável da lei substantiva, e a segunda para vincar que se trata aqui da distinção entre as jurisdições competentes para conhecer dos litígios de responsabilidade extracontratual da Administração Pública, não da lei substantiva aplicável. Mas sobre estes problemas nos debruçaremos adiante.

Por outro lado, esta mesma al. g) do n.º 1 do art. 4.º ETAF atribui aos tribunais administrativos competência para conhecer das acções destinadas à reparação dos danos resultantes do exercício da função legislativa e da função jurisdicional que, nos termos da lei, devam ser ressarcidos.

Desta forma, é atribuída à jurisdição administrativa a competência para apreciar as questões de responsabilidade resultantes do (mau) funcionamento da administração da justiça. No entanto, é lhe excluída a competência para apreciação da responsabilidade emergente de erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outra ordem de jurisdição – art. 4.º, n.º 3, al. a)[34].

Vedada aos tribunais administrativos está também a competência para apreciar a responsabilidade emergente de factos da função política, como resulta da redacção actual desta alínea e, já antes, da Lei n.º 107-D/2003[35].

Por seu turno, a al. h) do n.º 1 do art. 4.º ETAF veio concretizar a imposição decorrente dos arts. 22.º e 271.º, n.º 1, CRP e atribui à jurisdição administrativa competência para julgar os litígios respeitantes à responsabilidade civil dos funcionários, dos agentes, dos titulares de órgãos e dos demais servidores das pessoas colectivas de direito público, qualquer que seja o regime da prestação do seu trabalho ou do exercício do seu cargo, e qualquer que seja a natureza da actividade causadora do dano, desde que este ocorra no exercício das suas funções e por causa delas[36].

No entanto, parece haver alguma discrepância entre os autores que se debruçam sobre esta questão de saber o que se entende por “exercício de funções administrativas e por causa delas”. Se há autores que se contentam com uma conexão aparente com o exercício de funções administrativas[37], outros há que voltam a fazer uso da dicotomia gestão pública/gestão privada por parte, agora, dos titulares dos órgãos da Administração ou dos seus agentes[38]. Quanto a nós parece-nos ser de acolher aquele primeiro entendimento de que, enquanto houver pelo menos a aparência de exercício de funções administrativas, a jurisdição competente para conhecer da responsabilidade dos actos dos agentes da Administração será a ordem dos tribunais administrativos. Antes de mais, porque a imposição constitucional é apenas no sentido de que os titulares dos órgãos da Administração, assim como os seus funcionários, serão responsáveis de forma solidária com o Estado e com aqueles órgãos pelos prejuízos decorrentes da sua actuação – o que, de resto, é cumprido. E porque essa obrigação é uma imposição de âmbito substantivo, isto é, de responsabilização pela actuação administrativa e de contornos dessa responsabilização, não existindo qualquer imposição para o legislador quanto ao foro a observar para resolução dos litígios que surjam dessas questões (fora do que tentámos acima demonstrar acerca do art. 212.º, n.º 3, CRP, sobre a reserva de jurisdição administrativa, nos termos gerais). A acrescer a isto há, por último, o sentido da reforma do contencioso administrativo, que foi, como se disse acima, com vista à consagração de um regime de unidade de jurisdição administrativa.

Por fim, por força do art. 4.º, n.º 1, al. i), ETAF, os litígios respeitantes à responsabilidade civil extracontratual por danos causados por entes privados “de mão pública” e por privados que exerçam poderes públicos (concessionários, nomeadamente) caberão à jurisdição administrativa na medida em que a esses particulares seja aplicável o regime substantivo específico da responsabilidade de direito público[39].

Hoje, a responsabilidade civil extracontratual do Estado e das pessoas colectivas de direito público é regulada pela Lei n.º 67/2007, de 31/Dez.

Por isso, por esta remissão do art. 4.º, n.º 1, al. i) ETAF e por outros problemas que têm sido levantados pela doutrina à luz desse novo regime da responsabilidade extracontratual dos entes públicos, passaremos, de seguida, a uma breve análise do seu regime, na medida da sua conveniência para este nosso exercício.

 

3. A Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro

 

Desde há muito que a doutrina reclamava um ETAF à altura das exigências constitucionais consagradas pela revisão constitucional de 1989.

E não menos audíveis eram as exigências de uma nova Lei da responsabilidade extracontratual do Estado e das entidades públicas, capaz de fazer face às exigências da realidade actual, deixando para trás o desde há muito obsoleto Decreto-lei 48 051, de 1967.

Mas se o tardio ETAF de 2004 trouxe algum agrado e sossego por atender à reivindicada plena jurisdicionalização da Justiça Administrativa, unificada numa ordem obrigatória comum para o Direito Administrativo[40] (como, de resto, previa a CRP desde 1989), a nova lei da responsabilidade extracontratual das entidades públicas há-de, no mínimo, causar alguma perplexidade aos seus intérpretes, aplicadores e estudantes.

É que, se o ETAF vigente abandonou (ou, pelo menos, pretendeu abandonar) aquela obtusa distinção entre gestão pública e gestão privada, enquanto critério diferenciador da jurisdição administrativa da jurisdição comum, a Lei n.º 67/2007 ressuscitou-o, no seu art. 1.º, n.º 2.

Então, diz-nos esse normativo, conjugado com o n.º 1 do mesmo artigo, que esta lei rege, na falta de previsão especial, a responsabilidade civil extracontratual do Estado e das mais pessoas colectivas de direito público por danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa, entendendo-se por função administrativa as acções e omissões adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo. Não é difícil compreender que, por detrás desta perífrase usada pelo legislador no art. 1.º, n.º 2, L67/2007, mais não se esconde do que o velho conceito de gestão pública. Ou seja, por outras mais simples palavras, esta lei regula a responsabilidade extracontratual da Administração decorrente da sua actividade de gestão pública.

Mas, posto isto, que conclusões há a reformular da exposição que temos vindo a tomar? Nenhumas. De facto, parece inegável que a L67/2007 traz de volta o conceito de gestão pública, mas não mais para aferir da jurisdição competente para o conhecimento dos litígios quanto à responsabilização das entidade de direito público pela sua actuação, antes sim para definir o direito substantivo aplicável.

Isto é, não nos parece que seja possível dizer, como faz CARLA AMADO GOMES, de resto invocando o mesmo entendimento por parte do Prof. MARCELO REBELO DE SOUSA e por ANDRÉ SALGADO MATOS, que estarão assim excluídas da jurisdição administrativa as acções de efectivação de responsabilidade das pessoas colectivas públicas por factos ou omissões de gestão privada, praticadas fora da esfera de intervenção do Direito Público, despojados de prerrogativas de autoridade e ausentes de regulação jurídica administrativa[41].

É que, nesta sede, (repete-se) não está em causa a distinção entre a jurisdição administrativa e a jurisdição comum, mas antes a aferição da lei substancial aplicável à efectivação da responsabilidade da Administração.

Assim, também o pressupõem os Profs. DIOGO FREITAS DO AMARAL e MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, VIEIRA DE ANDRADE, como também MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, quando afirmam que a irrelevância da natureza do facto lesivo para o efeito de competência dos tribunais administrativos é independente critério substantivo adoptado para definição do regime aplicável, por existir um regime para a responsabilidade por danos resultantes do exercício da função administrativa de direito público diferente daquele aplicável à responsabilidade por danos do exercício jure privatorum de uma actividade administrativa[42].

E o que a L67/2007 faz é usar o critério da gestão pública para definir a sua aplicabilidade à responsabilidade extracontratual derivada da actividade administrava nesse âmbito, como também usa o mesmo critério no art. 8.º, n.º 2, mas apenas daí resultando que a responsabilidade prevista nessa norma é solidária, entre o ente público e o titular do órgão ou seu agente.

Posto isto, continuaremos a afirmar que a jurisdição administrativa é o foro competente para julgar os litígios de efectivação da responsabilidade extracontratual da Administração Pública, assim como o é em relação à responsabilidade extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos, seja essa responsabilidade decorrente da sua actividade de gestão pública ou de gestão privada, de acordo com o art. 4.º, n.º 1, als. g) e h), na esteira do que temos vindo a ensaiar.

Já o mesmo não se pode dizer em relação à alínea i) do mesmo art. 4.º, n.º1. porque este expressamente remete para a lei substantiva, quando faz depender a competência da jurisdição administrativa para dirimir litígios referentes à responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados da aplicação aos mesmo do regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público. Quer isto dizer que, por a L67/2007 se fazer aplicar à responsabilidade extracontratual da Administração só na medida da sua actividade de gestão pública, os tribunais administrativos só podem dirimir conflitos referentes a efectivação de responsabilidade extracontratual entre particulares quando essa decorra da actividade prosseguida por um deles sob desígnios de autoridade pública, por força dessa al. i). A responsabilidade extracontratual desses particulares, no âmbito da sua gestão privada, continuará, desta forma, entregue à jurisdição comum, mesmo que os danos surjam de actos praticados sobre o manto aparente da prossecução de fins públicos – o que não deixa de ser um aspecto (muito) criticável, considerando a unificação da jurisdição administrativa que a reforma do contencioso procurou, para pôr cobro aos entraves que a anterior legislação colocava à efectiva tutela jurisdicional dos particulares, e tendo em conta a posição tão favorável a essa ideia que assumimos.

Tudo visto, para além deste ponto que acabámos de abordar, o que a L67/2007 veio implicar, para o que agora nos interessa, foi que o regime que ela prevê regula a responsabilidade extracontratual do Estado e demais pessoas de direito público, quando essa decorra da sua actividade de gestão pública. Quanto à responsabilidade extracontratual da Administração Pública decorrente da sua gestão privada, ainda que agora seja competência da jurisdição administrativa por força do art. 4.º ETAF, ela decorre das regras gerais da responsabilidade civil, ou seja, dos arts. 483.º e seguintes do Código Civil, nomeadamente arts. 500.º e 501.º.

 

 


 

Bibliografia

 

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[1] FRANCISCO LEDDA, citado por VASCO PEREIRA DA SILVAin O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2005, p. 183

[2] DIOGO FREITAS DO AMARAL & MÁRIO AROSO DE ALMEIDAGrandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 2.ª Edição, 2003, pp. 23 ss.

[3] JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADEA Justiça Administrativa (Lições), 8.ª Edição, 2006, p. 109

[4] CARLA AMADO GOMES, “O artigo 4.º do ETAF: Um Exemplo de Creeping Jurisdiction?”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Armando M. Marques Guedes, 2004, p. 408

[5] JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADEA Justiça…, p. 109

[6] CARLA AMADO GOMES, “O artigo 4.º…” , pp. 408 e 409

[7] CARLA AMADO GOMES, “O artigo 4.º…”, p. 409

[8] JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADEA Justiça…, p. 110

[9] CARLA AMADO GOMES, “O artigo 4.º…”, p. 413

[10] Nomeadamente, ac. STA 10/Mai/94 e ac. TC. 607/95. Cfr.: JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADEA Justiça…, p. 110

[11] Neste sentido, ac. TC. 371/94 (por todos). Cfr.: JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADEA Justiça…, p. 110

[12] JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADEA Justiça…, p. 113

[13] JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADEA Justiça…, p. 113

[14] MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA & RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRACódigo de Processo nos Tribunais Administrativos: Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais: Anotados, 2004, p. 40

[15] J. J. GOMES CANOTILHO & VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa: anotada, 3.ª Edição revista, 1993, p. 814

[16] JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADEA Justiça…, p. 113

[17] Entre outros, acs. STA de 27/Jan/2004 (Proc. n.º 1116/03) e de 31/Out/2002 (Proc. n.º 1329/02)

[18] Acs. do Tribunal de Conflitos de 12/Mai/94 (Conflito n.º266) e de 14/Mar/96 (Conflito n.º 296)

[19] Entre outros, ac. TC n.º 746/96, de 29/Mai ou ac. TC n.º 284/2003

[20] CARLA AMADO GOMES, “O artigo 4.º…”, p. 409. Esta autora faz ainda depender essa atribuição de competências da condição de recondução ao foro próprio logo que possível.

[21] MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, “A Publicidade, o Notariado e o Registo Público de Direitos Privados”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, 2001, pp. 498 ss.

[22] DIOGO FREITAS DO AMARAL & MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Grandes Linhas da Reforma…, p. 25

[23] JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADEA Justiça…, p. 114.

[24] JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Âmbito e Limites da Jurisdição administrativa”, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 22, 2000, p. 11 ss. Esta será também a posição seguida por CARLA AMADO GOMES, “O artigo 4.º…”, p. 409.

[25] CARLA AMADO GOMES, “O artigo 4.º…”, p. 408

[26] Cfr. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Âmbito…”, p. 6, quanto aos modelos possíveis.

[27] MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA & RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRACódigo…, p. 32

[28] MARIA JOÃO ESTORNINHO, “A Reforma de 2002 e o Âmbito da Jurisdição Administrativa”, in CJA, n.º 35, Set./Out. 2002, p. 3

[29] Dúvida esta suscitada também pelo Prof. VIEIRA DE ANDRADEin A Justiça…, p. 127.

[30] MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA & RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRACódigo…, p. 59

[31] Cfr. MARIA JOÃO ESTORNINHO, “A Reforma…”, p.5

[32] MARIA JOÃO ESTORNINHO, “A Reforma…”, p.5; contra: CARLA AMADO GOMES, “As Novas Responsabilidades dos Tribunais Administrativos na Aplicação da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro”, in Três Textos Sobre o Novo Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas: Lei 67/2007 de 31 de Dezembro, 2008, p. 96

[33] VASCO PEREIRA DA SILVAin O Contencioso…, p. 480

[34] DIOGO FREITAS DO AMARAL & MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Grandes Linhas da Reforma…, p. 35; Cfr. MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA & RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRACódigo…, p. 60

[35] MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA & RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRACódigo…, p. 60

[36] Cfr. MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA & RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRACódigo…, p. 60; CARLA AMADO GOMES, “As Novas Responsabilidades…”, p. 99; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADEA Justiça…, p. 129.

[37] JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADEA Justiça…, p. 129. O mesmo entendimento parece ter o Prof. VASCO PEREIRA DA SILVAin O Contencioso…, p. 490

[38] CARLA AMADO GOMES, “As Novas Responsabilidades…”, p. 99

[39] Cfr. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADEA Justiça…, p. 128.

[40] Cfr., nomeadamente, VASCO PEREIRA DA SILVAO Contencioso…, pp. 472 ss.

[41] CARLA AMADO GOMES, “As Novas Responsabilidades…”, p. 99

[42] Cfr. MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA & RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRACódigo…, p. 59; DIOGO FREITAS DO AMARAL & MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Grandes Linhas da Reforma…, p. 34; Cfr. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADEA Justiça…, p. 129.

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