
Das Ordenações Filipinas:
«Lesa-majestade quer dizer traição commettida contra a pessoa do Rei, ou seu Real Stado, que he tão grave e abominável crime, e que os antigos Sabedores tanto estranhárão, que o comparávão á lepra; porque assi como esta enfermidade enche todo o corpo, sem nunca mais se poder curar, e empece ainda aos descendentes de quem a tem, e aos que com elle conversão, polo que he apartado da communicação da gente: assi o erro da traição condena o que a commette, e empece e infama os que de sua linha descendem, posto que não tenham culpa.»
Neste brevíssimo comentário, o meu objectivo é comentar a 4.ª tarefa, esboçando uma humilde demonstração de como o acção de impugnação de normas administrativas com força obrigatória geral é lei de lesa-Constituição, já que é uma “traição grave e abominável cometida contra a Constituição, que empece e infama os que a elaboraram, aprovaram e ratificaram”.
Reza o art. 268.º, n.º 5, da Constituição o seguinte:
«Os cidadãos têm [...] direito de impugnar as normas administrativas com eficácia externa lesivas dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos.»
Quando a lei fala dos pressupostos para a impugnação de normas administrativas, temos estatuído no art. 73.º, n.º 1, do CPTA:
«A declaração ilegalidade com força obrigatória geral pode ser pedida por quem seja prejudicado pela aplicação da norma ou possa previsivelmente vir a sê-lo em momento próximo, desde que a aplicação da norma tenha sido recusada por qualquer tribunal, em 3 casos concretos, com fundamento na sua ilegalidade.»
Há qualquer coisa aqui que “não bate certo”...
Na verdade, é inacreditável a deteoriação das garantias do particular perante o contencioso de impugnação de normas administrativas, que é, claramente, mais desvantajosa do que antes da reforma do contencioso administrativo.
Com efeito, antes da reforma, para além da via incidental de impugnação e do meio processual especial (relativo aos regulamentos da administração local comum), tínhamos o meio processual genérico contra normas provenientes de regulamentos, na condição de se tratar de norma administrativa exequível por si mesma ou de ter sido julgada ilegal em 3 casos concretos (arts. 66.º e ss. da LEPTA).
Agora, a declaração de ilegalidade da norma administrativa com força obrigatória geral apenas pode ser pedida pelo particular quando tiver sido julgada ilegal em 3 casos concretos (art. 73.º, n.º 1, do CPTA), rejeitando-se, assim, o pressuposto alternativo que consistia no facto de a norma administrativa ser exequível por si mesma.
Esta deteoriação das garantias do particular no contencioso de impugnação de normas administrativas é consequência de uma inovação no nosso ordenamento jurídico-administrativo trazida pelo CPTA que corresponde a uma autêntica “lei de lesa-Constituição”, já que foi a própria lei fundamental da Nação Portuguesa que, na revisão de 1997, consagrou o direito fundamental de impugnação de normas administrativas, no número 5 do artigo que se refere aos direitos e garantias dos administrados (art. 268/5 da Constituição).
Assim, a aprovação do art. 73.º, n.º 1, do CPTA foi uma autêntica “traição” ao direito de impugnar as normas administrativas com eficácia externa lesivas dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, consagrado em 1997 na nossa Constituição, devido à exigência abusiva de 3 casos concretos de recusa de aplicação, pelos tribunais, de norma administrativa, com fundamento na sua ilegalidade. Como diz, e bem, o Professor Vasco Pereira da Silva: «Do ponto de vista da protecção subjectiva, a solução encontrada é violadora do direito fundamental de impugnação de normas jurídicas lesivas dos direitos dos particulares (art. 268/5 da Constituição), pois, ao estabelecer que a impugnação de normas gerais e abstractas só tem efeitos concretos, cria uma restrição que afecta a extensão e o alcance do conteúdo essencial do direito (art. 18/3 da Constituição).»
Como diz, e bem, o Professor Vieira de Andrade: «A aproximação tentada [da impugnação de normas administrativas] ao modelo de impugnação constitucional de normas não se justifica plenamente, seja porque os regulamentos não são leis, seja porque na fiscalização da constitucionalidade é diferente a formação de julgamento conforme o controlo seja abstracto ou concreto.»
Se estas palavras puderem lá puderem chegar, daqui peço ao Sr. Presidente da República, ao Sr. Presidente da Assembleia da República, ao Sr. Primeiro-Ministro, ao Sr. Provedor de Justiça, ao Sr. Procurador-Geral da República e aos Senhores Deputados à Assembleia da República que, usando da prerrogativa concedida pelo art. 281.º, n.º 2, da Constituição, requeiram ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, em sede de fiscalização abstracta sucessiva, do infame art. 73.º, n.º 1, do CPTA, na parte em que condiciona o exercício do direito aí consagrado à recusa de aplicação da norma administrativa por qualquer tribunal, em 3 casos concretos. A bem da defesa da Constituição e dos direitos do cidadão!
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