quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Até onde nos leva a ambição de atropelar o próximo

É pois o legislador também homem. Comina também ele daquelas mesmas maldições, daquele desejo veemente, daquela aspiração, daquela cobiça que tão bem caracteriza a ambição. Mas até onde nos leva a ambição do legislador do processo administrativo? Talvez tamanho desejo o levasse a crer num voo para o qual seriam necessárias asas e, afinal, ele é homem. E os Homens não têm asas… talvez, numa análise anatómica, tenha buscado incessantemente umas asas e, sem elas, tenha posto os pés pelas mãos; ou, então, as mãos pelos pés. Talvez se tenha atropelado a si mesmo. Talvez se tenha confundido.

E talvez, sob esse espírito confuso, se tenha confundido com a dicotomia dos meios processuais administrativos. Não nos estranhemos. Afinal, até os espíritos mais iluminados se podem confundir. Pois, indubitável é apenas que a acção administrativa especial tem mais de comum que de especial, sendo por sua vez mais especial aquela que é a acção comum. E assim, claro que até os espíritos mais iluminados se podem confundir.

Surge-nos, então, sob alguma estranheza (ou já sem nenhuma estranheza), um caso de manifesta confusão “terminológico-sistemática” (ou mais que isso), uma acção em sede de processo comum que, seguindo a lógica dicotómica utilizada, é mais especial que comum.

Temos em mãos (e não em pés, não nos confundamos mais) a acção inibitória prevista na alínea c) do n.º 2 do art. 37.º do CPTA, em sede de acção administrativa comum. Tratando-se de um pedido de natureza condenatória, consiste no impedimento preventivo da consumação de uma lesão proveniente de uma provável e receada actuação administrativa. E provável e receada porque há uma incerteza, uma expectativa, não há um acto, mas apenas um nada com a mania que o é, ou, sem nos excedermos, um acto-hipotético.

Orienta-nos o n.º 1 do mesmo artigo no sentido da natureza residual desta acção: estamos no âmbito da acção administrativa comum quando o objecto do processo não seja objecto de regulação especial – aos quais está reservada a acção administrativa especial. Este critério substantivo, quando conjugado com a redacção do art. 46.º, n.º 1, do CPTA, leva-nos a entender a acção administrativa comum (arts. 37.º e ss, do CPTA), como o meio adequado para o julgamento de contratos, actuações informais e técnicas ou operações materiais, por corresponderem a matérias excluídas da acção administrativa especial.

E, aí, sem grandes confusões, se pede a “condenação à adopção ou abstenção de comportamentos” (art. 37.º, n.º 2, al. c), 1.ª parte, do CPTA), os quais devem ser compreendidos, numa interpretação sistemática, no âmbito dos contratos, das actuações técnicas e informais e das operações materiais da Administração. Trata-se de uma cláusula geral que visa a protecção de direitos: perante um fundado receio de lesão de direitos absolutos e de personalidade (ao que se acrescentam fortes interesses no âmbito da acção popular), o legislador iluminado, opta pela protecção, ainda que antecipada (na previsão da condenação à abstenção).

No entanto, se aqui não há confusões, elas não se dissiparam. Atentemos à 2.ª parte do preceito e procuraremos alcançar até onde nos leva a ambição do legislador. E se estamos em sede da acção comum, a redacção orienta-nos à acção especial, ou não se falasse em acto administrativo. É que o pedido de condenação pode ter por objecto um acto administrativo e, nesse caso, pelo disposto no art. 46.º, n.º 1, estaríamos no âmbito da acção administrativa especial.


Mas, então, o pedido de condenação da Administração à prática de actos administrativos não recai no âmbito da acção administrativa especial (art. 46.º, n.º 1, do CPTA)? Ou terá a ambição do legislador levado a que metesse os pés pelas mãos? Terá o legislador ambicioso atropelado um meio processual com o outro?

É que sempre que, perante uma omissão da Administração, o particular pretende uma sua acção, então, estaremos no âmbito da acção especial. Mas e se, havendo apenas a “provável emissão de um acto lesivo”, o particular pretende condenar a Administração à sua não emissão? Diz-nos o legislador, iluminado ou confuso, que caímos no campo da acção comum (art. 37.º, n.º 2, al. c), 2.ª parte, do CPTA). E aqui parece-nos de adoptar a necessidade de uma interpretação restritiva, e mesmo correctiva, e integrar “os pedidos de condenação à abstenção da prática de um acto administrativo”, a título excepcional, no âmbito da acção administrativa comum, sugerida pelo Prof. VASCO PEREIRA DA SILVA.

Mas mais, o espírito do legislador é protector, e protector até preventivamente: a norma protege de um ainda-não-acto, que é provável, mas que ainda não é. Mas, qual o grau de probabilidade exigido? Não poderá o "particular-mariquinhas", por o ser, paralisar a Administração. Propõe, então, o Prof. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA a exigência de um fundado receio de que se verifiquem situações de ameaça de agressões ilegítimas (recorrendo aos requisitos do art. 39.º, do CPTA), defendendo uma função preventiva da acção perante a susceptibilidade de uma lesão futura de um direito do particular.

Mas, então, caímos numa situação de sobreposição, ou já não saberá o legislador que tem duas mãos e dois pés, e que aquelas e estes não se confundem? É que o direito do particular seria tutelado não só por esta alínea c), como também ao abrigo da alínea a), do mesmo artigo. Mas talvez seja porque a ambição do legislador o tenha levado a “prevenir-se bem prevenido”.

No entanto, o legislador estabelece ainda outras medidas: providências cautelares preventivas (art. 112.º, n.º 2, al. f), do CPA), as quais intimam a Administração à abstenção, mas tão-só e apenas naqueles casos de “fundado receio de violação das normas de direito administrativo”. Ora, o Prof. VASCO PEREIRA DA SILVA encontra aqui a salvação da utilidade de uma sentença de condenação à abstenção em sede de acção comum.

Não obstante, talvez a ambição do legislador não o tenha levado ao porto desejado, pois que a efectividade desta tutela preventiva dependerá sempre da celeridade de actuação quer do tribunal, quer da Administração.

Bom, próximo atropelado ou não, impõe-se esse mesmo espírito ambicioso ao legislador e espera-se que tal ambição a mais não leve que a uma boa intervenção, revelando-se não só iluminado, como capaz de melhor nos iluminar a todos.

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