quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Comentário à 1º Tarefa

Em vez de se reconhecer que "julgar a Administração é ainda julgar", preferia-se considerar que "julgar a Administração é ainda administrar". [...] O resultado desta situação é paradoxal: em nome da separação de poderes entre a Administração e a Justiça, o que verdadeiramente se realiza é a indiferenciação entre as funções de administrar e de julgar...

A superação do desafio proposto por esta frase encontra-se na problematização da teoria (uma abordagem mais rigorosa dirá das teorias) da divisão do poder e a sua articulação com Administração Pública e seu controlo (ou ausência dele) no primeiro decénio, grosso modo, após a revolução Francesa na Europa ocidental.

A necessidade de dividir o poder politico e a sua teorização são antigas, Aristóteles referiu-a na sua Politica e séculos depois Cícero dirá em De Legibus “se um magistrado único tivesse mais autoridade que todos os seus pares, teríamos apenas trocado a denominação do rei, sem alterar a essência da Realeza” a Europa Medieval conhecerá também, de certa forma, uma divisão do poder por entre as varias classes, atomizando-o por múltiplos grandes e pequenos senhores laicos e eclesiásticos a quem o Rei (ou o Sumo Pontífice para os adeptos da doutrina Hierocrática na sua concepção mais ampla) conferia um principio de unidade.

Há que deixar claro contudo, que nunca em Roma ou posteriormente nos estados medievais (admitindo que se pode falar em Estado na Idade Média) esteve presente uma “ideia de especialização orgânico – funcional ou de distribuição de diversas faculdades, objectivamente consideradas, por mais de um centro subjectivo de poder” como afirma o Prof. Jorge Miranda.

A isto acresce que na Roma do século I a.C. se ignorava a ideia de liberdade politica e que na Idade Média a concepção do individuo como actor politico por direito próprio foi desdenhada em função de uma cosmologia que conhecia apenas o grupo, classe ou estamento que se afirmava perante o Rei dele exigindo privilégios e imunidades.

É em função do que ficou dito que somos obrigados a situar em Locke e na Inglaterra do século XVII a primeira teorização da divisão do poder politico com impacto na contemporaneidade e, especialmente, no período em analise.

O grande empirista Inglês no seu Ensaio sobre a verdadeira origem, extensão e fim do governo civil é o primeiro a deixar implícita a distinção entre um “poder originário ou constituinte” e os “poderes constituídos” (Marcello Caetano) dividindo-os em poder legislativo, concebido como poder supremo, um poder executivo que engloba o poder de aplicar a lei mas também um poder de ir mais alem e suprir as omissões legais tendo em vista o bem comum, a esta liberdade de acção dá Locke o nome de Prerrogativa e, por fim, um poder federativo que diria respeito à manutenção da segurança, à paz e à guerra e aos interesses externos de uma forma geral.

Não há em Locke (pelo menos pelo que me foi dado a perceber) uma clara definição de um poder judicial, este é “arrumado” algures entre um poder legislativo, que define a lei, e um poder executivo que a aplica no interesse da ”Commonwealth”.

O que é, de facto, absolutamente notável em Locke é a existência (pela primeira vez) da ideia de um poder originário que é cindido e entregue a diferentes actores que assim se limitam uns aos outros, garantindo desse modo a liberdade individual.

Pertence, contudo, a Charles – Louis de Secondat, Barão de La Brède e de Montesquieu o lugar cimeiro desta reflexão.

Grandemente influenciado por Locke e pela experiência politica Inglesa saída da “Gloriosa Revolução”, Montesquieu com a sua obra marcante “O Espírito das Leis” de 1748 vai influenciar profundamente o pensamento e a acção politica das centúrias seguintes, servindo de respaldo ideológico para o legislador constitucional francês pós – revolucionário.

“O Espírito das Leis” propõe a divisão do poder politico do Estado em três braços: “o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito público e o poder executivo daquelas que dependem do direito civil” o  ultimo poder é comummente tido como o poder judicial que Montesquieu considera ser “aquele através do qual o Estado “pune os crimes ou julga os diferendos dos particulares” esta visão de um contencioso separado (que se encarrega dos diferendos dos particulares) será de capital importância posteriormente.

Aqui chegados temos de nos debruçar sobre as concretas circunstancias que envolveram a actividade administrativa do estado antes e depois da revolução e que culminaram na criação em França e posteriormente em quase toda a Europa continental de um contencioso de excepção, privilegiado, para a administração publica.

As historias contam-se do principio e esta tem um começo (ou uma afirmação de principio a ser feita) capaz de chocar os politicamente mais correctos: a Administração anterior à revolução de 1789 não se tornou muito diferente depois desta!

Com o advento do absolutismo e sobretudo com as ascensão de Luís XIV a, até aí, indómita nobreza francesa, que se tinha dado muito mal sob o jugo de Richelieu e que ainda no inicio do reinado de Luís XIV põe de pé uma Fronda, vai ser com este definitivamente domada, acantonando-se em pequenos nichos de poder e independência. Um desses nichos são os tribunais, os famosos Parlamentos que se erguem como bastiões da aristocracia em oposição ao poder régio que tudo consome à sua volta.

Esta circunstancia de uma judicatura politicamente comprometida e empenhada tinha já obrigado Luís XIII, sob sugestão do previdente Cardeal Duque de Richelieu, a assinar no fim do seu reinado em 1641 o édito de Saint - Germain interditando dessa forma os “Parlamentos de conhecer os casos relativos ao Estado, à sua administração e ao seu governo” (Vasco Pereira da Silva), o que não impediria os mesmos parlamentos de prosseguir o seu papel enquanto oposicionistas do centralismo régio até ao advento da Revolução; com esta apenas se irá acentuar a tradição de uma administração privilegiada clarificando-se, inclusive, o seu estatuto: os juízes ficam impedidos “de perturbar, seja de que forma for, as operações dos corpos administrativos, de citar os administradores por causa das suas funções, de conhecer os actos da administração sejam eles quais forem” (Delvolvé). Que não haja duvidas, os novos senhores, saídos da revolução e imbuídos de um espírito “iluminado” não querem ver a sua nobre obra perturbada pelos eventuais atavismos de uma classe derrubada.

É o receio de um governo de juízes, de uma judicatura engagé com uma agenda politica (um receio que, como vimos, vem já do antigo regime)  que dá à luz a máxima “julgar a Administração é ainda julgar". Mais do que um fruto de aturado pensamento politico é a “real politick” que se impõe.

Esta confusão entre a função de julgar e a de administrar,  a era do Administrador – Juíz a que o Prof. Vasco Pereira da Silva chamará com muita propriedade o tempo do Pecado original, manter-se-á por largo tempo e conhecerá essencialmente três fases (atemo-nos aqui à especifica evolução do contencioso administrativo francês que, pelo acima demonstrado, temos como paradigmático):

Uma primeira fase de completa indiferenciação entre as duas funções, é o tempo do caos revolucionário, os órgãos administrativos são juízes em causa própria, vigora a mais completa impunidade, é a idade de ouro do Administrador – Juiz.

Posteriormente com a criação em 1799 de um “Conselho de Estado” com laivos de independência (e que pouco mais é que o “Conselho do Rei” agora com novas vestes e ao serviço de um novo regime) entramos na fase da Justiça Reservada. Ao novo órgão, que se tornará central no contencioso administrativo francês até aos dias de hoje, caberá simultaneamente  aconselhar o chefe de estado e dirimir eventuais litígios administrativos mantendo-se, reservada, bem entendido, ao chefe de estado a ultima palavra sobre todas as questões.

A notabilidade e respeito alcançada pelo Conselho de Estado (as suas decisões raramente foram alteradas pelos chefes de Estado) levam a um terceiro passo e a um período de Justiça Delegada, o poder de dirimir os litígios administrativos é delegado pelo Chefe de Estado no Concelho de Estado que através da Lei de 24 de Maio de 1872 passa, juridicamente a deter plenos poderes dispensando-se a anterior homologação. Ressalve-se contudo que o Prof. Vieira de Andrade tem um entendimento um pouco diferente sobre esta ultima questão, subtraindo o período da justiça delegada de um modelo de justiça administrativista (que foi objectivamente o que tratamos até aqui) e classificando-a à parte como um modelo intermédio numa evolução que caminha para um modelo verdadeiramente Judicialista, onde o poder de decisão originário, já não pertence, de todo, ao chefe supremo da administração pública.

Seriam ainda necessários alguns anos após esta ultima evolução para a actividade administrativa cair sobre alçada de verdadeiros tribunais (independentemente do nome que tomassem).

Este período e o seu estudo são fundamentais para uma plena compreensão dos vícios que inquinaram a actividade administrativa durante séculos e que num ambiente de aparente democraticidade permitiram a subsistência, numa parte tão importante da vida publica, de um nicho de despotismo inaceitável. 

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