quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Comentário à 1ª tarefa

A presente frase que cabe comentar diz desde logo respeito, à evolução histórica a que esteve sujeito o contencioso administrativo, nomeadamente, ao princípio da separação de poderes que entra no léxico do Direito Administrativo pela pena de Montesquieu através da sua obra célebre De l´Ésprit des Lois de 1748, e que teve a maior repercussão na Europa e na América, contribuindo directa e decisivamente para a Revolução Americana (1787) e para a Revolução Francesa (1789). Montesquieu parte da ideia simples, mas basilar: é necessário garantir a todos os homens a liberdade individual. Ora, a liberdade é, para ele, o direito de fazer tudo que as leis permitem, e o direito de não fazer nada que as leis não imponham. Mas para que o governo assegure e respeite a liberdade dos indivíduos, é necessário não apenas que o poder político esteja limitado pelo Direito e pela autonomia dos corpos intermédios, mas que ele próprio – o poder político – esteja repartido entre diferentes órgãos do Estado. A este propósito cabe transcrever este breve trecho: “ A liberdade política só se encontra nos governos moderados. Mas ela não existe sempre nos governos moderados. Ela só se encontra aí quando não se abusa do poder: mas é uma experiência eterna que todo o homem que tem poder é levado a abusar dele; ele irá até onde encontrar limites (…). Para que se não possa abusar do poder, é necessário que, pela disposição das coisas, o poder pare o poder. Assim, uma Constituição poderá ser tal que ninguém seja obrigado a fazer coisas a que a lei o não obrigue, ou a deixar de fazer aquelas que a lei lhe consinta” Livro XI, Capítulo IV, do L´ Ésprit des lois.
A afirmação/princípio de que “julgar e Administração é ainda administrar” é fruto de juízes formados no “Antigo Regime”, nomeadamente, Thouret, Barnave, Richard de Nimes. Ora, o contencioso administrativo e seu surgimento na Revolução Francesa tem desde logo, nas palavras assertivas do Prof. Vasco Pereira da Silva, um triste início desde logo, porque o princípio da separação de poderes foi subvertido, tal qual hoje o entendemos, isto porque, este surgiu como sendo um “privilégio do foro” da Administração que se julgava a si própria através dos seus próprios órgãos o que na expressão de Nigro levou à criação de um juiz doméstico havendo portanto no seio da Administração uma enorme confusão entre a função de administrar e julgar.
O Contencioso Administrativo desenvolveu-se pois com acontecimentos traumáticos que marcaram todo o seu desenvolvimento, desde logo e, de acordo com a metáfora utilizada por o Prof. Vasco Pereira da Silva, com três fases marcantes e que são: a fase do pecado original; a fase do baptismo, ou da plena jurisdicionalização do Contencioso Administrativo; e a fase de crisma ou da confirmação caracterizada pela reafirmação da natureza jurisdicional do Contencioso Administrativo.
É pois na fase do pecado original que corresponde à época do Estado Liberal dos séculos XVIII e XIX que a frase a analisar assume especial relevância, uma vez que de acordo com o pensamento da época a proibição dos tribunais comuns em julgar a Administração não era violador do princípio da separação de poderes. Esta fase é pois caracterizada pelo sistema do juiz administrador que consubstanciava no juiz doméstico já anteriormente referido e, pela total confusão entre o poder jurisdicional e o poder de administração. Todavia, e como bem adverte o Prof. Vasco Pereira da Silva é preciso contextualizar à luz da História de modo a entender o alcance da frase em análise. Desde logo, especial importância teve o regime que antecedeu a Revolução Francesa, em norma os ideais demoram algum tempo a impor-se sobre as mentalidades, no caso em apreço da Revolução Francesa não foi diferente os juristas pode-se dizer já vinham formatados com pré – conceitos que tão difíceis são de abandonar alguns até podendo operar ao nível do sub – consciente com as implicações que daí resultaram para o Contencioso Administrativo. Tem pois aqui especial relevância a própria caracterização que Montesquieu fazia dos juízes como sendo:”as bocas que pronunciam as palavras da lei” e continua dizendo “não estão ligados a nenhum estado, são invisíveis ou nulos” destas palavras por certo se conclui a desconfiança com que eram encarados os tribunais, estes que tão avessos se tinham mostrado em relação aos novos ideais, desta forma competia à Administração operar as mudanças na sociedade e os traços da sociedade de classes ainda patentes, desta forma a Administração não estava sujeita ao controle do poder jurisdicional. Neste sentido parece ser mas fácil a compreensão da frase, ainda que ao nossos olhos hoje possa parecer chocante. O período do sistema do administrador juiz, como bem refere o Prof. Vasco Pereira da Silva irá perdurar durante um longo período, podendo este ser dividido em três momentos principais: de 1789 – 1799 em que havia total parcialidade no julgamento de litígios uma vez que administrar era também julgar; de 1799 – 1872, o sistema de justiça reservada que era “um corpo meio administrativo, meio judiciário” no qual surge o Conselho de Estado que era um órgão de resolução de litígios administrativos, mediante emissão de pareceres, sujeitos à homologação do Chefe de Estado; de 1872 em diante, conhecido pelo sistema de justiça delegada em que o papel do Conselho de Estado se altera em virtude das suas decisões passarem a ser definitivas; não significando porém que o sistema do juiz administrador tivesse cessado uma vez o Conselho de Estado continua a ser um órgão da administração, as suas decisões são até ao célebre acórdão Cadot consideradas como recursos de apelação e, os poderes do Conselho de Estado são baseados na delegação de competências e não em poderes próprios. Cabem anda umas breves palavras em relação quer ao período do baptismo, quer ao período do crisma. Na fase do baptismo ou da sua jurisdicionalização existe a transição do Estado Liberal para o Estado Social, ora tal transformação operou aquilo que em França Weil chamou do “milagre” da criação do Direito Administrativo que foi a sujeição do Estado se submeter ao Direito, mas pasme-se pois só em 1980 se passa a reconhecer o Conselho de Estado como parte da jurisdicionalização através da sentença do Conselho Constitucional a qual consagra de forma expressa e nível constitucional “a independência das jurisdições administrativas e (…) [o] carácter específico das suas funções [constitui] um princípio fundamental reconhecido pelas leis da República”. Já na fase do crisma houve a reafirmação da natureza jurisdicional do Contencioso Administrativo com a consequente afirmação dos direitos dos particulares dotados de protecção plena e efectiva.
Conclui-se portanto, do exposto que, sem dúvida alguma, o caminho foi tortuoso para o Contencioso Administrativo, mas que com essa experiência muito aprendeu uma vez que à luz dos Estados Modernos tal qual os devemos entender, não é possível confusão entre o que é administrar e o que é julgar.

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