quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Será mesmo necessário?

Um problema levantado pela doutrina é, se ponderado o actual sistema, o recurso hierárquico necessário mantém-se. A questão é colocada, no âmbito dos arts. 51º e 59º, nº4 e nº5, que generalizam a regra de que a utilização da via de impugnação administrativa não é necessária para aceder à via contenciosa.
Os arts. referidos são, consequentemente um ponto de discordância entre a doutrina. Dada a complexidade da questão, optei por esquematizar os diversos pontos de vista, segundo os vários autores. Assim, atendendo à pergunta inicial:
Pelo sim: o Professor Mário Aroso de Almeida. O autor considera que o recurso hierárquico mantém-se, que o CPTA não veio eliminá-lo. Para o Professor, o CPTA não exige o recurso hierárquico necessário, não havendo que primeiro impugnar administrativamente para aceder à via contenciosa (vejam-se os arts. 51º e 59º, nº4, e nº5). Apenas quando haja uma norma avulsa a exigi-lo, como norma especial, prevalecerá, ou seja, haverá recurso hierárquico necessário com efeito suspensivo, segundo o disposto no art. 59º. Assim, ao consagrar como regra, o efeito suspensivo, a norma quis atrair os particulares a adoptar a impugnação administrativa facultativa, e daí vir a colocar-se com menor acuidade a questão do recurso hierárquico necessário.
Quando haja então, previsão especial deste recurso, o que se passa é que há que impugnar, deixar passar o prazo para o órgão superior se pronunciar e, caso haja omissão deste, será possível recorrer à via contenciosa proporcionada pela acção condenatória.
Para os seguidores desta posição, o argumento da inconstitucionalidade de imposição de impugnações administrativas necessárias (deduzido pela circunstância de, na revisão de 1989 do então art. 268º, nº3, da CRP, referir-se à definitividade dos actos administrativos susceptíveis de impugnação contenciosa), cai por terra…Mais, defende o Professor Mário Aroso de Almeida, que “não cabe à CRP definir os pressupostos de que possa depender a impugnação de actos administrativos, em termos de se afirmar que eles só serão legítimos se tiverem previsão constitucional”.
Pelo não: o Professor Vasco Pereira da Silva. Para o Professor, ao insistir-se no recurso hierárquico necessário, violar-se-ia uma série de disposições, nomeadamente o Princípio Constitucional da plenitude da tutela dos direitos dos particulares (art. 268º, nº4, CRP), uma vez que a inadmissibilidade do recurso contencioso, quando não tenha sido previamente interposto recurso hierárquico necessário, equivale a “uma negação de um direito fundamental de recurso contencioso”; o princípio da efectividade da tutela (art 268º, nº4, CRP) que remete para os efeitos da preclusão da impugnabilidade das decisões administrativas, pelo que, na circunstância de não ter sido interposto previamente recurso hierárquico no prazo de 30 dias, reduzindo drasticamente o prazo de impugnação de actos administrativos, pode redundar numa situação de impossibilidade de exercício do direito.
O Professor entende ainda que o recurso hierárquico necessário, nada tinha a ver com a produção de efeitos do acto administrativo, antes com a sua impugnabilidade contenciosa, constituindo um mero pressuposto processual. Decorre ainda, que o acto administrativo praticado pelo subalterno era “idêntico” ao praticado pelo superior hierárquico, produzindo os mesmos efeitos, pelo que a intervenção deste último, só se afiguraria útil, se o particular optasse por contestá-lo judicialmente.
O Prof. Vasco Pereira da Silva, alicerça ainda a sua posição (portanto pela “desnecessidade” do recurso hierárquico necessário), com base nalgumas disposições do CPTA, como sejam, o art. 51º, nº1 que consagra a impugnabilidade contenciosa de qualquer acto administrativo susceptível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares, ou dotado de eficácia externa, o que significa que, tanto os actos dos subalternos como os actos dos superiores hierárquicos, podem ser impugnados autonomamente, sem necessidade de prévia interposição de uma garantia administrativa, até porque o código é omisso neste aspecto. Também o art 58º, nº4, redunda na mesma consequência, isto é, pela desnecessidade do recurso hierárquico necessário, dado que agora o prazo de impugnação contenciosa do acto administrativo fica suspenso, podendo o particular solicitar uma “segunda opinião”, não vendo precludido o seu direito de impugnação contenciosa, pelo decurso do prazo. Mas mais, o art. 59º, nº5, faculta ainda ao particular a possibilidade de aceder de imediato à via contenciosa, independentemente de ter feito uso ou não da via graciosa.
Posto isto, o Professor Vasco Pereira da Silva, nega a sobrevivência deste recurso, e refutando as opiniões propugnadas pelo Professor Mário Aroso de Almeida, considera incongruente a tentativa que o Professor faz, em compatibilizar a “regra geral” da admissibilidade de acesso à justiça”, independentemente do recurso hierárquico necessário, com as “regras especiais” que manteriam tal exigência. Alvitra ainda a caducidade de tais normas especiais por falta de objecto: ora se o recurso hierárquico prendia-se apenas com a possibilidade de permitir o acesso aos tribunais, e se agora, o Código estabelece que tal garantia está confinada a um mero pressuposto processual de impugnação de actos administrativos, então não se justificam mais estas normas avulsas, e que, pelo menos na parte em que se referem à questão em análise, caducam. Acresce ainda o facto, de o legislador ter concretizado o direito de acesso à justiça administrativa, em moldes tais, clarificando definitivamente, a desnecessidade de impugnação administrativa prévia ao acesso ao juiz. Neste contexto, é “inútil” (art.8º, nº2, CPTA) e descabido continuar a exigir-se uma qualquer garantia administrativa prévia, quando tal exigência deixou de ser pressuposto processual da impugnação de actos administrativos.
Cabe ao legislador, remover todas as disposições avulsas que consagram o recurso hierárquico necessário, por já não se justificarem, e proceder à harmonização das mesmas e das disposições do CPA.
O Professor propõe ao particular lesado por um acto administrativo, que satisfaça a previsão do anterior recurso hierárquico necessário, que decida por intentar, desde logo, a acção administrativa especial, acompanhada ou não do respectivo pedido cautelar de suspensão da eficácia do acto administrativo, optando exclusivamente pela via judicial da resolução de litígios; proceder à prévia impugnação hierárquica, que como há pouco referido, para além do efeito suspensivo do prazo de recurso contencioso, continua a gozar do mesmo efeito em relação à execução do acto administrativo; impugnar hierarquicamente a decisão administrativa, que goza de efeito suspensivo da eficácia, mas mantendo-se a possibilidade de aceder imediatamente a tribunal, sem ter que esperar pela decisão do recurso hierárquico.
Face ao exposto, é de se concluir pela inutilidade do recurso hierárquico necessário, dado que o princípio do pleno acesso à justiça e da tutela jurisdicional, permitem a impugnação automática de actos que sejam lesivos de direitos de particulares ou que tenham eficácia externa. Decorre ainda da consagração de tais princípios, que, nos casos em que o particular optou por utilizar antecipadamente a via administrativa, não tem mais que esperar pelo resultado dessa diligência, para impugnar contenciosamente o acto administrativo.

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