quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Trabalho- Da condenação à prática de acto administrativo devido e seus pressupostos

Da condenação à prática de acto administrativo devido e seus pressupostos

É através da revisão constitucional de 1997 que o legislador procedeu a uma reformulação do artº268, reafirmando o princípio da tutela jurisdicional efectiva e adoptando um pendor mais subjectivista de garantia, dos direitos dos particulares contra a administração, que vai consagrar a possibilidade de “interpelar a administração a cumprir”, prevendo-se expressamente a faculdade de “determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos”. Desta forma, passando a ter natureza de Dto. Fundamental, a disposição do artº18 é imediatamente aplicável, como assinala e bem o Prof. Vasco Pereira da Silva, podendo ser interpretado no sentido de previsão de novo meio processual de natureza condenatória, criando directamente pelo legislador constituinte, na expressão do Prof. Sérvulo Correia. No entanto, haveria que tornar o contencioso administrativo como direito constitucional concretizado. Para isso, o legislador constituinte, ao prever a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos, usou da maior cautela na formulação do preceito, deixando nas mãos do legislador ordinário a concretização da protecção processual da pretensão do particular ao acto administrativo legalmente devido, cabendo a este a decisão de densificar e concretizar aquilo que havia de entender-se por “determinação”, sob pena de se criarem ilhas e imunidade administrativa e a consequente desprotecção dos cidadãos. Tentando o legislador, soltar-se das amarras do entendimento político francês do principio da separação de poderes e da confusão que existia entre julgar e administrar, voltando definitivamente as costas ao modelo cassatório francês de anulação dos actos, e reconhecendo que o objecto do processo haveria de consistir numa superação entre “a tradicional dicotomia entre o contencioso do recurso”, este cria uma acção especifica em que o objecto do processo, nas sentenças de condenação, é a própria pretensão do interessado inserida na relação jurídica material. Garantindo, deste modo, a tutela da posição subjectiva de conteúdo pretensivo, em que a execução das sentenças anulatórias dos actos administrativos de indeferimento, até aqui o único meio processual à disposição do particular para forçar a administração ao cumprimento dá agora lugar a sentenças de condenação, seguidas em caso de desobediência, por um processo executivo, acompanhado quando necessário por eficazes providências de execução, sanções pecuniárias compulsórias ou pela fixação de indemnizações (arts.167º. e 168º, nº1 e 3 do CPTA), comprovando o subjectivismo cada vez mais presente na justiça administrativa portuguesa. Supera-se a tradição que só o recurso contencioso de anulação, através da via impugnatória dos actos administrativos era o único meio de defesa perante actos ilegais da Administração, ficando a posição do particular exactamente na mesma em que estava antes da prática do acto ilegal, sendo o acto somente anulado. Agora, com o recurso à acção de condenação, o particular consegue logo em processo declarativo, a condenação de administração na prática do acto devido, eliminando, se for o caso, o acto de recusa ilegal. Desta feita, o particular não fica colocado na situação em que inicialmente se encontrava quando propôs a acção, pois agora consegue obter o efeito desejado e não apenas a eliminação de um acto ilegal do ordenamento jurídico, permitindo posteriormente ao particular a obtenção de uma sentença condenatória da Administração na prática do acto administrativo. A existência de sentenças condenatórias é perfeitamente compaginável com os princípios que regem a actividade administrativa bem como, acompanhando o pensamento do Prof. Vasco Pereira da Silva, “é a forma mais adequada num contencioso de plena jurisdição de reagir contra comportamentos administrativos que por acção ou omissão lesem dtos dos particulares decorrentes da negação de actos legalmente devidos”. Criando o legislador uma verdadeira e própria acção condenatória, bem à semelhança do modelo alemão das “acções para o cumprimento de um dever”consolida-se o colapso desde há muito sentido com tradicional recurso de anulação, pela previsão de novas formas de reacção dos particulares perante uma Administração (nomeadamente pela introdução, através da reforma do contencioso administrativo, operada em 1984, da acção para reconhecimento de direitos e interesses legalmente protegidos, bem como a alteração da configuração legal do silêncio) que desde há muito deixou de ser Agressiva para passar a ser Prestadora e Infra-estrutural, repercutindo-se as suas formas de actuação e a sua evolução, nas reformas do Contencioso Administrativo.
Muito da questão da condenação da Administração à prática de acto devido está relacionada com o valor do silêncio da Administração, i.e., quando existe uma ausência de uma decisão expressa, visto que a condenação da Administração pode incidir sobre casos de omissão de actuação, devendo por isso abandonar-se a figura do acto administrativo presumido, sustentando o Prof. Barbosa de Melo que “a inércia da Administração deve ser entendida como uma omissão contra a qual o interessado deve poder reagir por via de acção, devendo o juiz poder fixar medidas compulsórias para o efeito.” Assim, quando haja um acto omissivo de actuação é pressuposto que há um acto que é devido. Na acepção do Prof. Vieira de Andrade, trata-se de acto devido quando devia ter sido emitido um acto e não foi, independentemente de ter havido omissão ou recusa, ou quando tenha sido praticado um acto que não satisfaça a sua pretensão. Porém, como assinala o referido autor, acto devido não tem de ser um acto estritamente vinculado perante a lei, podendo ainda incidir sobre poderes discricionários. A este propósito destaca o Prof. Vasco Pereira da Silva que se tratam de duas realidades diferentes, quer se trate de poderes vinculados ou de discricionários, pois uma “coisa é condenar a Administração à prática de actos administrativos devidos decorrentes da preterição de poderes vinculados”, outra é o tribunal praticar os actos em vez da Administração, interpelando-a a que esta cumpra os seus deveres,”ou invadir o domínio das escolhas remetidas por lei para a responsabilidade da Administração no domínio da discricionariedade administrativa.”De notar que este poder discricionário não é um poder à margem da lei ,mas sim um modo de realização do direito no caso concreto, sendo sempre passível de posterior controlo jurisdicional.
Atenta a disposição do artº 46, revestem a forma de acção administrativa especial “os processos cujo objecto sejam pretensões emergentes da prática ou omissão ilegal de actos administrativos, bem como normas que tenham ou devessem ter sido emitidas”, por contraposição à existência de acção comum. A acção administrativa especial caracteriza-se pelo facto de se reportar à prática ou omissão de actos administrativas ou de normas, em que a dedução do pedido visa a condenação da entidade administrativa à prática, dentro de determinado prazo de um acto administrativo ilegalmente omitido ou recusado. Assim, importa ter em atenção a letra do artº67, a fim de descortinar os pressupostos de aplicação da acção de condenação da administração à prática de acto legalmente devido. Nele cabem as situações de inércia ou omissão (artº67, nº1,al. a), os casos de acto administrativo de indeferimento (artº67, nº1, al. b) e as situações de acto de recusa de apreciação da pretensão (recusa de apreciação de requerimento artº67, nº1, al. c). Importa ainda referir que o pedido de condenação resulta da conjugação de três dimensões, formando uma só: dimensão de pedido imediato (efeito pretendido pelo autor), o pedido mediato (o direito subjectivo que se pretende tutelar através desse efeito) e a causa de pedir (o acto que constitui a razão jurídica de actuar em juízo), nunca consistindo o objecto do processo, no acto administrativo; mas sim no direito de o particular a uma determinada conduta da administração, não sendo o processo de condenação um processo impugnatório (entendimento do Prof. Mário Esteves de Oliveira) no sentido em que mesmo quando tenha havido lugar à prática de um acto de indeferimento, o objecto do processo não se define por referência a esse acto. Importa neste caso atender o que prescreve o artº66, nº2. Quando exista acto administrativo, este não tem qualquer relevância face ao objecto do processo, sendo automaticamente eliminado da ordem jurídica pelo provimento do pedido do particular, relativo ao direito subjectivo lesado. O objecto do processo corresponde à solicitação do interessado, a uma acção para defesa de interesses próprios, ao direito subjectivo do particular. O Prof. Mário Aroso de Almeida defende a ideia de que o que se trata é de uma pretensão.
Se até a este ponto tomamos uma postura de introdução à figura da acção de condenação e a alguns dos seus pressupostos, importa não esquecer alguns problemas que se colocam nesta sede nomeadamente: à competência para a tomada de decisão administrativa última e à densidade do controlo jurisdicional ou à função de controlo objectivo que a acção administrativa especial de condenação é chamada a desempenhar quando se desencadeiam acções públicas ou populares (artº68, nº1, al.c) e d do CPTA).
Importa observar o disposto no artº71, quanto aos poderes de pronúncia do tribunal, nomeadamente o seu nº2 , na medida em que “quando a emissão do acto pretendido envolva a formulação de valorações próprias do exercício da função administrativa e a apreciação do caso concreto não permita identificar apenas uma solução possível, o tribunal não pode determinar o conteúdo do acto a praticar, mas deve explicitar as vinculações a observar pela Administração na emissão do acto devido”Esta formulação é claramente influenciada pela doutrina germânica da margem de livre apreciação e da teoria da representatividade, exigindo-se sempre uma realização do principio da separação de poderes.

Quanto aos pressupostos processuais específicos da acção administrativa especial de condenação, são eles:

- Existência de uma omissão de decisão por parte da Administração ou a prática de acto administrativo de conteúdo negativo.

- casos de (acto administrativo de)indeferimento

- situações de recusa de apreciação da pretensão (recusa de apreciação de requerimento)

Quanto ao primeiro:
Este encontra-se previsto no artº 67, nº 1, a) do CPTA , determinando a aplicação desta acção nos casos de omissão ou inércia da Administração. Contudo, para que a inércia seja relevante em termos jurídicos, é necessário que sobre a Administração recaia um dever legal de decidir, a obrigação legal de decidir. Esta encontra-se patente no artº 9, considerando que para a existência deste dever é indispensável que haja um impulso processual do particular e que a Administração não tenha tomado qualquer decisão no prazo legalmente devido. A letra do artº67, a) abrange também os casos em que existe um incumprimento efectivo por parte da Administração do dever de decidir, podendo o particular accionar o mecanismo da acção de responsabilidade, visto a Administração ter faltado no seu dever de apreciação da pretensão apresentada pelo particular. Anteriormente, o silêncio da Administração era encarado como um acto tácito de indeferimento, sendo este a regra, á luz do artº109 do CPA, e a excepção os casos de deferimento tácito, segundo o artº108 do CPA. Como assinala o Prof.Mário Aroso de Almeida, quando se fala em deferimento tácito, “a lei tende a associar à inércia da Administração o seu consentimento, a presunção legal de que a pretensão apresentada pelo requerente foi julgada conforma as exigências postas pelo ordenamento jurídico, sendo que esse deferimento substitui “o acto administrativo de sentido positivo que foi omitido”. Salvo devido respeito, a considerar-se após a reforma, que o deferimento tácito subsiste, qual então a finalidade de se recorrer à acção de condenação á prática de acto devido, quando esse mesmo acto já resulta da presunção legal de deferimento tácito? Também Colaço Antunes entende que a acção de condenação “deveria ser o meio idóneo para suprimir os flagelos dos deferimentos tácitos”. Maiores dúvidas levantam a figura do indeferimento tácito. Criada por via doutrinária, esta tem na sua génese muito da concepção francesa do recurso de anulação, encontrando a sua justificação na necessidade de existência de acto administrativo para efeitos de impugnação. Que sentido faz, manter o recurso de anulação quando não se pode impugnar o nada, uma mera ficção, e quando agora se prevê que a administração seja condenada à prática de actos ilegalmente omitidos?

No segundo caso:
Quando haja um indeferimento expresso do acto requerido pelo particular, deixa de fazer sentido o recurso à acção de anulação para pedir a anulação do acto. Agora, através da acção condenatória permite-se ao particular alcançar a eliminação do acto de indeferimento mas também a condenação da Administração na prática do acto legalmente devido, de acordo com o artº66,nº2 em conjugação com o artº67,nº1, b). A condenação da Administração à pratica de acto legalmente devido redunda no “não” à pretensão do particular, sendo agora chamada e obrigada a dizer “sim”, eliminando o indeferimento do ordenamento jurídico. Acabando-se com a anulação dos indeferimentos, a condenação à prática do acto devido substitui a pronúncia anulatória, pelo que uma vez proferida a sentença de condenação, não se pode sustentar que o indeferimento subsiste na ordem jurídica, nas palavras do Prof.Mário Aroso de Almeida. A acção de condenação vem agir onde antes se exigia o recurso de anulação.

Quanto ao terceiro pressuposto:
Do que aqui se trata é de uma recusa de apreciação de requerimento dirigida à prática de acto administrativo, pressuposto de aplicação do artº67, nº1.c). Neste caso, a apreciação do Tribunal incidirá sobre a validade da recusa pela Administração, avaliando também a substância da pretensão do particular, a fim de julgar a acção de condenação procedente. Deste modo, o tribunal, se considerar inválida a recusa de apreciação do indeferimento, vai analisar o mérito da pretensão, condenando a Administração a praticar um determinado acto.
Este tipo de acção pode assim fundar-se neste caso em dois tipos de acções: (acompanhando neste sentido o Prof.Mário Aroso de Almeida
- Na inexistência de motivos formais invocados pela Administração para não apreciar o pedido;
- Ou na existência de circunstâncias que no caso concreto, restrinjam ou eliminem a discricionariedade de acção, que em abstracto a lei confira à Administração e de que ela se arrogue para se recusar a agir.

Apresentados os pressupostos da acção de condenação á prática de acto devido, importa antes de concluirmos, que a introdução desta nova acção veio permitir aos particulares uma nova forma de acção, muito mais reactiva, perante uma Administração, por vezes teimosa, e julgada revestida ainda dos seus plenos poderes de autoridade para assim se eximir da prática de certos actos. Muitas vezes, a chamada de atenção feita através do recurso à acção de condenação redunda as mais das vezes num laxismo da própria máquina Administrativa, que parece por vezes adormecer sobre aquilo que lhe é pedido. Rompendo com os anteriores mecanismos de anulação, e com a ideia já ultrapassa de que administrar é ainda julgar, o paradigma da acção especial de condenação à prática de acto devido, parece que veio e é para ficar!


Bibliografia


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ANDRADE, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE; A Justiça Administrativa (Lições), 8.ª Edição, Coimbra, Livraria Almedina, Set. 2006

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