terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Sobre o Ministério Público

O Ministério Público é aquele órgão que tem a vocação institucional e a incumbência constitucional de defender a legalidade democrática.
José Manuel Ribeiro de Almeida, Uma Teoria da Justiça.


A frase acima transposta revela bem o que pretende o nosso ordenamento jurídico da instituição do Ministério Público, algo que, aliás, vem logo bem explícito no artigo 219.º da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP). Do seu número 1 retiramos os dois grandes traços que vão marcar a atitude do Ministério Público (MP) face ao Contencioso Administrativo: cabe-lhe representar o Estado e, deixando as matérias penais de parte, defender a legalidade democrática.
Esta norma constitucional é em parte reproduzida e em parte complementada por dois normativos presentes no Estatuto do Ministério Público, concretamente o artigo 1.º, e no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), veja-se o seu artigo 51.º
O normativo constitucional prevê a independência e imparcialidade do MP face aos demais poderes (n.º2), com especial realce para a autonomia face ao Governo que é irrefutável desde 1992, data em que se retirou do actual artigo 80.º do Estatuto do MP o poder de o Ministro da Justiça dar instruções de ordem genérica ao Procurador-geral da República. Trata-se, como refere Vieira de Andrade (Justiça Administrativa) de um órgão de administração da justiça dotado de independência externa, que não é um órgão de soberania e nem se confunde com órgãos do poder judicial, já que não tem competência para a prática de actos materialmente jurisdicionais.
Iremos de seguida tentar interpretar os actuais poderes do Ministério Público no novo contencioso administrativo à luz destes três preceitos norteadores, procurando, para tal, efectuar uma breve contextualização histórica e de direito comparado, para posteriormente analisar os poderes antes e depois da reforma de 2004, sempre com vista a uma análise crítica do sistema.

É com o Regimento do Conselho de Estado de 1845 que surgem em Portugal os ouvidores, com o intuito de assessorar a Secção de Contencioso Administrativo. Trata-se de um surgimento funcional e não formal, uma vez que estas personagens não se encontravam na estrutura hierarquizada do já então surgido Ministério Público (criado pelo Decreto de 1832). Cabia a estes ouvidores a fundamentar por escrito a sua opinião sobre o caso que seria mencionada pelo relator no final do processo. Foram tempos conturbados da justiça administrativa, pelo que só com o Código Administrativo de 1896 o exercício da função correspondente à do MP conheceu relativa estabilidade. Neste domínio surge o secretário geral do governo civil, junto de tribunais administrativos a nível distrital, enquanto ajudantes do procurador geral da coroa asseguravam as seguintes funções junto do Supremo Tribunal Administrativo:
· Intervir em todos os processos contenciosos para defesa dos interesses do Estado.
· Defender os interesses da Administração com base na lei.

Portugal vivia assim, nesta matéria, no auge do sistema administrativo da ministração da justiça, numa coerente (face ao sistema judicial então em vigor) promiscuidade. Por um lado, misturavam-se órgãos da administração – o secretário geral do governo civil – com magistrados inseridos na estrutura hierarquizada do MP. Por outro, reparamos no caos conceptual entre legalidade e actuação administrativa, pois os interesses da administração eram idênticos os interesses da lei, como que duas estruturas indissociáveis, tornando quase imperceptível qual a verdadeira finalidade da actuação do MP. Confusão que perdurou no tempo ou não fosse, já em pleno final do sec. XX, também a Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo estipular que cabia ao MP, junto do STA, promover o que tiver por conveniente aos legítimos interesses do Estado (e não uma pura defesa da legalidade).
Deixamos agora a análise do regime consagrado à entrada em vigor do CPTA para mais tarde, com o objectivo de fazer uma comparação entre ambas, e analisaremos agora brevemente a experiência dos nossos povos vizinhos.


A nível de direito comparado, todo os ordenamentos têm agentes, sejam eles magistrados, advogados públicos ou entidades administrativas, cuja actuação é vocacionada para a promoção de interesses públicos. Seguindo de oeste para este, a Espanha prevê que o Ministério Fiscal actue para defesa da legalidade administrativa, nomeadamente para interposição de recursos de todas as sentenças que considere danosas para o interesse geral, para dar parecer sobre a competência do tribunal e, em contencioso eleitoral compete-lhe simultaneamente a representação pública e defesa da legalidade.
Em França, funciona um sistema em que o Comissário do Governo apresenta as suas conclusões ao Conselho de Estado, momento que representa o fim da fase oral do processo. Dita, portanto, o fim da instrução e o início da formação de decisão. Apesar do nome, trata-se de um cargo independente do governo, sendo eles os principais responsáveis pela evolução da jurisprudência francesa. Não têm iniciativa, tendo sido a principal fonte de inspiração para o modelo europeu dos advogados gerais.
Na Alemanha, os Oberbundesanwalt (OBA) existem junto do Tribunal Administrativo Federal, podendo estes intervir, se assim o entenderem, em todos os processos decorrentes nesse tribunal. A grande diferença prende-se com o facto dos OBA estarem vinculados às instruções do Governo federal. Não representam a administração nos processos, prestando essencialmente informações ao juiz com vista à constante evolução jurisprudencial.
Esta pequena explanação serve para entender que existem essencialmente duas situações caracterizadas por uma actuação imparcial, autónoma, com vista à protecção da legalidade e outra, o patrocínio judiciário, visando essencialmente a protecção da administração. A primeira das situações subdividir-se-à em duas formas de prossecução da legalidade: A acção pública e a coadjuvação ao tribunal na realização do direito (amicus curiae).
O modelo português consegue fazer uma junção de todas as possibilidades de actuação do MP, tornando-se por isso um pouco mais complexo que os seus congéneres. Iremos por isso encontrar no nosso sistema jurídico tanto manifestações de acção pública, como manifestações de amicus curiae e ainda poderemos somar o patrocínio judiciário. A conjugação destas três vertentes da actuação do MP sofreu algumas alterações com a revisão do CPTA e nem sempre vai conseguir encontrar a melhor harmonização dogmática.

Analisando o regime português vigente antes do novo código, partiremos como ponto de partida do artigo 27.º da LEPTA, procurando procurar as três vertentes de actuação do MP.


Artigo 27.º
(Direitos do Ministério Público)
Salvo nos recursos que interponha em defesa da legalidade, pode o Ministério Público, mediante vista dos autos ou, nos demais casos, em requerimento:
a) suscitar a regulariação da petição, excepções, nulidades e quaisquer questões que obstem ao procedimento do recurso e pronunciar-se sobre questões que não tenha suscitada;
b) Promover diligências de instrução;
c) Emitir parecer sobre decisão final a proferir;
d) Arguir vícios não invocados pelo recorrente;
e) Requerer, assumindo a posição de recorrente, o prosseguimento de recurso interposto durante o prazo em que podia impugnar o respectivo acto, para julgamento não abrangido em decisão ainda não transitada, que tenha posto termo ao recurso por desistência ou outro fundamento impeditivo do conhecimento do seu objecto.


Começando pela acção pública, esta consiste no poder de estar em juízo, titulado por um órgão do Estado ou uma pessoa colectiva inserida na administração, dirigida à repressão da violação da legalidade democrática num caso concreto ou devido à actividade normativa da administração. A acção pública não é exclusiva do MP, visto que o 14.º n.º4 do Código do Procedimento Administrativo atribui este mesmo poder aos presidentes dos órgãos colegiais.
No âmbito do antigo regime contencioso, o recurso de anulação era o principal expoente da acção pública, estando previsto no artigo 46.º n.º2 do Regulamento do STA. No âmbito da LEPTA, havia a considerar a alínea e) do artigo 27.º que previa a possibilidade de assumir a posição do requerente que havia desistido do processo sem que tivesse havido decisão de mérito. A natureza da alínea d) é discutível, embora se possa configurar como acção pública no sentido em que se procura a defesa da legalidade democrática com a expurgação dos vícios.
Quanto a impugnação de normas, encontrava-se previsto no artigo 63.º n.º1 e 66.º n.º1, sendo que neste último o MP era mesmo obrigado a requerer a declaração de ilegalidade de normas com força obrigatória geral uma vez que tivesse conhecimento de desaplicarão da norma em três casos.
Também a possibilidade de recurso constante no artigo 104.º n.º1 LEPTA era uma manifestação de acção pública.

Quanto a posição de coadjuvação, o MP, ao contrário da acção pública, não é parte, pois não tem interesses seus em conflito. Pelo contrário, o MP deve-se colocar numa posição de superioridade face ao caso em apreço e emitir o seu parecer imparcial, qual fosse um juiz. Nesta sua função, o MP assume-se quase como um órgão jurisdicional, faltando-lhe apenas o poder de ditar a sentença.
Na antiga LEPTA o expoente desta função do MP era a denominada vista final, prevista no artigo 53.º. Esta vista tinha uma dupla função: Por um lado, o MP promovia a regular tramitação do processo, por outro emitia parecer sobre o mérito da causa, apesar de não vincular o juiz. No âmbito processual teríamos então o artigo 27.º a), para fiscalização de irregularidades processuais, e o 27.º b) para as diligências instrutórias. A vista final estendia-se ainda a matéria de contratos administrativos e responsabilidade civil nos termos do artigo 72.º n.º 2.
Finalmente, surge-nos a terceira função do MP no qual ele se apresenta, no dizer de Freitas do Amaral (O Excesso de Poderes do MP em Portugal), como um corpo de advogados do Estado.
Embora a LEPTA não previsse esta realidade, o artigo 53.º do Estatuto do MP conferia-lhe essa prerrogativa na defesa dos seus interesses patrimoniais, ficando aqui incluídos, pelo menos, as acções sobre contratos administrativos e responsabilidade civil extracontratual.


No âmbito da pré-reforma, a posição do Ministério Público no contencioso administrativo foi debatida, tendo mesmo sido defendida a sua extinção. Pelo contrário, vozes como Ribeiro de Almeida (Uma Teoria da Justiça) e Sérvulo Correia (A reforma do Contencioso Administrativo e as funções do Ministério Público) pugnaram pela manutenção do regime então vigente, criticando a redução drástica do papel do MP no contencioso. Analisamos agora o novo regime para verificar se esses medos se concretizaram e em que medida.

Quanto a acção pública, de facto o poder do MP foi mesmo alargado, o que se deve também à passagem para um contencioso de plena de jurisdição e com o consequente surgimento de novas formas processuais para fazer face às verdadeiras necessidades dos particulares. Assim o actual 9.º n.º 2 do CPTA confere ao MP uma amplíssima acção pública, sendo esta uma norma geral que acaba por estar intrínseca a todos os meios processuais previstos no Código. (como é repetido a cada norma de legitimidade – cfr. arts. 55.º n.º 1 b), 73.º n.º 3, 68.º n.º 1 c). 77.º, 40.º n.º 1 b) e n.º 2 c) só para acção especial e comum). Nessa lista inserem-se também recursos, sendo que, para mais, a enumeração dos valores em causa no art. 9.º (ambiente, urbanismo, saúde, etc.) é meramente exemplificativa. Mantém-se também, no artigo 62.º a possibilidade de continuar um processo que não chegou a decisão de mérito por desistência do autor. O MP continua assim a ter um amplo poder de iniciativa para protecção do interesse público, agindo como parte no processo. No entanto, a decisão de instaurar ou não um processo, como de resto em todas as suas demais funções, é um poder discricionário. Acabam assim as intervenções forçadas do MP.

Foi a nível da função de amicus curiae que o MP viu os seus poderes diminuídos, tendo sido todos os seus poderes condensados no actual artigo 85.º. Em suma, o Ministério Público perde quase toda a sua competência a nível de fiscalização da legalidade processual, mantendo-se apenas a possibilidade de pedir diligências instrutórias (85.º n.º 2. 1ª parte CPTA), que, no fundo, mais não são do que uma decorrência da busca da verdade material. Embora esta tenha sido uma posição criticada, no meu prisma o legislador tomou uma opção de fundo, acabando por aliviar a tensão sobre o Ministério Público, ao mesmo tempo que não desprotegeu a legalidade processual. Em primeiro lugar, o novo CPTA caracteriza-se pela leveza dos meios processuais em contradição com a rigidez processual da antiga LEPTA, o que torna mais fácil o cumprimento da legalidade processual. Bom exemplo disso é a facilidade de cumulação de pedidos, coligação e apensações de processos. Por outro lado, e esta inovação é bem mais importante, há a considerar todo o espírito à volta do princípio pro actionem em que o Código está imbuído. Muitas são as antigas irregularidades processuais que agora, ou são colmatadas oficiosamente, veja-se o 14.º n.º 1, por exemplo, ou então o próprio autor pode ser convidado a suprir ele próprio a ineptidão por si provocada – veja-se o 14.º n.º 2 ou o 51.º 1 n.º 4 (como meros exemplos). Para tudo o resto que não seja resolvido por estes mecanismos desburocratizadores, tem então o juiz a última palavra (cfr. 27.º n.1 g) e 87.º e 88.º quanto ao despacho saneador).
Outra das grandes prerrogativas perdidas pelo MP com a reforma de 2004 foi a vista final, que tanta relevância parecia ter no antigo regime. O artigo 85.º do CPTA determina a remessa do processo ao MP no momento da citação da entidade demandada e dos contra-interessados. O MP fica assim com todos os dados na sua posse para, num prazo de 10 após a apresentação das contestações tomar uma das seguintes opções: pode não exercer qualquer das suas prerrogativas, uma vez que é um poder discricionário que lhe é conferido, pode pedir a realização de diligências instrutórias, pode arguir, sempre que se trate de um processo impugnatório, ilegalidades diversas daquelas invocadas pelo autor, ou, finalmente, pode pronunciar-se sobre o mérito da causa. As duas vistas da LEPTA confundem-se assim numa só intervenção, sendo que, daqui para a frente, o MP não mais intervirá no processo.
As razões para a supressão da vista final prendem-se com uma ideia de economia processual, tentando diminuir o tempo de trânsito de processo, mas acima de tudo com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) acolhida pelo Tribunal Constitucional. Esta jurisprudência baseia-se na violação do princípio do contraditório, pois segundo o primeiro tribunal, o parecer final do actuação do Ministério Público emitido numa fase do processo em que as partes não se poderiam pronunciar mais, viola este princípio basilar comum a todos os ordenamentos jurídicos (Veja-se acórdão TEDH - Lobo Machado contra Portugal). O Tribunal Constitucional acabou por perfilhar deste entendimento, considerando a violação do artigo 6º CEDH e também do art. 20º n.º 4 da CRP, que estipula o direito a um processo equitativo. Foi esta corrente jurisprudencial que acabou por ditar a solução legal agora vigente, com uma intervenção única do MP numa fase inicial do processo para dar lugar ao contraditório. (criticando severamente a opção do Tribunal Constitucional – Sérvulo Correia, ob. cit.).

Por fim, temos o poder (talvez mais um dever) de patrocínio judiciário que está também presente no contencioso administrativo, até por imperativo constitucional do artigo 119.º. Assim, o artigo 11.º n.º 2 CPTA mantém a representação, explicitando agora expressamente aquilo que só se retirava por interpretação da LEPTA: O patrocínio judiciário do Estado só funciona em processos que tenham por objecto relações contratuais ou a responsabilidade extracontratual. Quanto às demais causas, nomeadamente em Acção Administrativa Especial, o Estado é representado por licenciado em direito ou advogado.
Trata-se de uma solução que merece uma maior ponderação sobre a natureza da acção do Ministério Público e da sua compatibilidade com o agora estatuído.
A actuação do MP é vocacionada para a defesa da legalidade administrativa. Fá-lo na acção pública, na qual assume uma posição activa de defesa da legalidade reprimida ao assumir ele próprio as expensas do processo. Ele é parte autónoma, invoca os vícios do acto e usa o tribunal administrativo como meio de repor a legalidade. Por outro lado, desde que dentro das suas atribuições processuais, isto é, dentro do tal leque do artigo 9.º n.º 2, é mesmo concebível uma espécie de direito de queixa do particular ao MP para que ele tome conhecimento de uma situação de grave ilegalidade, para que possa exercer as diligências necessárias. É certo que existe também a acção popular, mas nem sempre um cidadão individual está munido do conhecimento e armas suficiente para se fazer valer em juízo, o que já não acontece com o MP.
Na situação em que age como amicus curiae o MP já não é parte processual. A sua tarefa assume-se aqui, ao invés, como passiva, pois espera que lhe sejam comunicados os processos para ele depois decidir se deve ou não interferir e de que forma. Não obstante, também aqui o MP age em defesa da legalidade, embora de outra forma. Busca a verdade material com as diligências instrutórias, pode arguir invalidades diferentes das arguidas pelo o autor e pode pronunciar-se sobre o mérito da causa em busca da solução legal para o caso em questão.
Mas será que na defesa do Estado em processos respeitantes a responsabilidade extracontratual e a contratos o MP também defende a legalidade administrativa? Afiguram-se-me sérias dúvidas a este respeito. A meu ver parece-me que esta função não é compatível com aquilo que seria idealmente o MP. E esta confusão levanta problemas graves, porque, também aqui, mais uma vez, restam resquícios dos traumas de nascença do direito administrativo (lembrando Vasco Pereira da Silva). Neste matéria, o Estatuto do MP, a lei (CPTA) e até a própria Constituição (!) mostram não saber distinguir que a defesa da legalidade é diferente da defesa da administração. Mais uma vez está aqui presente a lógica que a administração visa o bem público e está vinculada ao princípio da legalidade e, como tal, só pode agir de acordo com a lei, de tal sorte que defender a administração seria defender a própria legalidade…Não há nada mais francês do que este raciocínio. Creio que o Ministério Público deve preocupar-se somente com a defesa da legalidade, de forma objectiva e em todas as ocasiões. Deve-se assumir no contencioso administrativo como verdadeiro fiscal da legalidade, e aqui, há que fazer esta ressalva, havendo fiscal, ele tem de ser para todos, Estado incluído.
Levantar-se-à o argumento que a atribuição de patrocínio judiciário ao MP só se encontra patente em matérias em que este não tem os demais poderes que lhe são conferidos no restante contencioso. É uma afirmação duvidosa, pois as matérias de contratos e responsabilidade extracontratual cabem na Acção Administrativa Comum, onde o MP também tem acção pública. Claro que daqui decorre a génese para a representação do Estado por um advogado ou licenciado em direito na Acção Administrativa Especial. Parece-me que a afirmação deve ser vista ao contrário, pois o MP não exercerá os seus demais poderes por estar condicionado pelo patrocínio judiciário. No entanto, mesmo que assim fosse, não me parece a melhor opção transfigurar um órgão totalmente, mediante a função quase contraditória que está a desempenhar. O que se pede afinal ao Ministério Público? Que seja um defensor da legalidade menos nos processos em que o Estado é demandado e não agiu segundo a melhor legalidade? Deverá ele nestes processos refrear a defesa da legalidade para tentar encontrar uma solução melhor (ou mais conveniente) para o Estado, nomeadamente transaccionando com o autor? Infelizmente é este o panorama actual, o qual não merece o meu suporte.


A mudança do objecto do processo do acto administrativo para a pretensão do interessado levou à subjectivização do contencioso administrativo. O contencioso administrativo caracteriza-se agora por um processo de partes e assim sendo o Estado deve assumir a sua posição de parte tanto enquanto autor como demandado. Assim sendo, também o Estado deve poder ser alvo da actuação do Ministério Público quando este considere que tal actuação é benéfica para o interesse público. Concordamos assim com Gomes Canotilho e Vital Moreira, quando deixam transparecer, na sua anotação ao aritgo 119.º, que a função de patrocínio judiciário pode trazer alguns problemas de incompatibilidade com as demais funções do MP. Estava assim o legislador constituinte também imbuído da tal confusão entre quem julga e quem administra, custando-lhe a aceitar que quem administra deve ser julgado equitativamente sem qualquer prerrogativa de poder. Apercebendo-se o legislador ordinário disso, ou não, o certo é que o patrocínio ficou restrito a algumas matérias, permitindo uma certa compatibilização com as demais funções. Não me parece suficiente. A função de patrocínio judiciário é incompatível com a função de garante da legalidade do MP, que deve ser imparcial e autónomo do Governo, valores também ele consagrados na CRP.
Defendo assim um MP independente na defesa da legalidade material, o que o torna, é certo, num ente com funções objectivas no centro de um contencioso administrativo essencialmente subjectivo, mas que torna o sistema coerente no seu conjunto.

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