terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Recurso Hierárquico Necessário ou "Desnecessário"?

Importa nesta dissertação analisar uma questão que levante enorme controvérsia na doutrina: o requisito da definitividade vertical do acto administrativo impugnável, isto é, saber se a impugnação contenciosa dos actos administrativos se encontra dependente da prévia utilização, pelo impugnante, das vias de impugnação administrativa e, em particular, da interposição de recurso hierárquico necessário.
O que está em causa, será a necessidade de compatibilização das normas do novo processo administrativo que, concretizando um direito fundamental de acesso à justiça administrativa, consagram as regras de impugnabilidade de actos administrativos em razão da eficácia externa e da lesão dos direitos dos particulares, afastando toda e qualquer exigência de recurso hierárquico necessário ( art.51º.,n.º1, do CPTA), com as normas do procedimento reguladoras de garantias administrativas.
É certo que o CPTA não exige, em termos gerais, que os actos administrativos tenham sido objecto de previa impugnação administrativa para que possam ser objecto de impugnação contenciosa. Da leitura dos artigos 51º. e 59.º , n.º 4 e 5, decorre, a regra de que a utilização da via da impugnação administrativa não é necessária para aceder à via contenciosa.
É neste ponto de partida que se começam a vislumbrar as principais divergências doutrinárias m relação a este tema. Segundo o Professor Vasco Pereira da Silva, estávamos perante um caso de Inconstitucionalidade da Regra de Recurso Hierárquico Necessário, com base em variados argumentos:
- O Principio Constitucional da plenitude da tutela dos direitos dos Particulares (art. 268.º, n.º4, da Constituição), já que, a inadmissibilidade do recurso contencioso, quando não tenha havido. previamente, recurso hierárquico necessário, equivale a uma negação de um direito fundamental de recurso contencioso;
- O Principio Constitucional de Separação entre a administração e a justiça (art. 267.º, n.º2, da Constituição), que implica a imediata recorribilidade dos actos dos actos dos subalternos quando lesivos, sem prejuízo de o superior continuar a dispor de Competência Revogatória (art.142.º do CPA);
- O Principio da efectividade da Tutela (art. 268.º, n.º 4., da Constituição), em razão do efeito preclusão da impugnabilidade da decisão administrativa, no caso de não ter havido interposição, prévia, de recurso hierárquico, no prazo de trinta dias (art.168.º, n.º 2, do CPA), reduzindo drasticamente o prazo de impugnação de actos administrativos, o qual, sendo manifestamente curtos, pode equivaler a inutilização da possibilidade de exercício do direito, e como tal, susceptível de ser equiparado à lesão do conteúdo essencial do direito.
Assim para o Professor, a distinção entre recurso hierárquico necessário e facultativo tinha que ver com a questão de saber se o acto administrativo era ou não “ insusceptível de recurso contencioso” (art.167.º, n.º1, do CPA). Assim se entendendo, a necessidade de recurso hierárquico não dizia respeito à produção de efeitos do acto administrativo, mas apenas à sua impugnabilidade contenciosa, constituindo um mero pressuposto processual. De tudo isto decorre, que o acto administrativo praticado pelo subalterno era, pois, “idêntico” ao praticado pelo superior hierárquico, produzindo os mesmo efeitos , pelo que a necessidade de intervenção do órgão de topo da hierarquia só se verificava se o particular pretendesse contesta-lo judicialmente, caso contrário ele continuaria a sua vigência normal. Contrariamente entende outra parte da Doutrina, que , estes actos, dos subalternos, podem ser executórios mas não definitivos, pois deles cabe recurso hierárquico necessário, na falta de delegação de poderes do superior hierárquico (cf. Freitas do Amaral, “Curso de Direito Administrativo”, volume I, 1.ª edição, página 614, e “ Conceito e Natureza do Recurso Hierárquico”, volume I, página 61 .).
Contudo, entende o professor Vasco Pereira da Silva que, o código do processo afasta inequivocamente e definitivamente a “necessidade” de recurso hierárquico necessário, como pressuposto de impugnação contenciosa do acto administrativo, com base na interpretação de algumas das disposições do referido Código:

- A consagração da Impugnabilidade contenciosa de qualquer acto administrativo que seja susceptível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares ou que seja dotado de eficácia externa ( art.51.º, n.º1, do CPTA). Assim, os actos dos Subalternos, da mesma maneira como os actos dos superiores hierárquicos, são susceptíveis de preencher as referidas condições, e como tal, serem autonomamente impugnados, sem necessidade de previa interposição de uma garantia administrativa, já que o código nada diz quanto a isso.
-Atribuição de efeito Suspensivo do prazo de impugnação contenciosa do acto administrativo à utilização de garantias administrativas ( art.58.º, n.º4 do CPTA). Significa isto, conferir uma maior eficácia à utilização de garantias administrativas, dado que o Particular, sabe agora, que recorrendo a esta via, o prazo para a impugnação contenciosa só volta a correr depois da decisão do seu pedido de reapreciação do acto administrativo.
Neste contexto, na óptica do Particular, passa a poder valer a pena solicitar, previamente, uma “segunda opinião” por parte da administração, não vendo precludido o seu direito de impugnação contenciosa pelo decurso do prazo, podendo aproveitar a Administração a oportunidade de proceder a reapreciação da questão e , sendo caso disso, satisfazer logo ai a pretensão do Particular ( ver as garantias administrativas, simultaneamente, como um mecanismo de tutela de interesses subjectivos e do próprio interesse público). Resumindo, de acordo com o novo código, o recurso hierárquico, tal como as demais garantias administrativas, passam a ser sempre “desnecessárias”, mas tornam-se agora também “úteis”.
Neste contexto, o Professor Vasco Pereira da Silva vais mais longe, propondo, também, um efeito suspensivo da própria execução de decisões administrativas, generalizando assim, o regime jurídico que se encontra estabelecido para os casos de recurso hierárquico necessário.
Por outro lado, o Código estabelece igualmente a regra segundo a qual, mesmo nos casos em que o particular utilizou previamente as garantias administrativas e beneficiou da consequente suspensão do prazo de impugnação contenciosa, isso não impede a possibilidade imediata de impugnação contenciosa do acto administrativo (art.59.º, n.º5, do CPTA). O que, maus uma vez, significa um afastamento inequívoco da “necessidade” de recurso hierárquico, bem como de qualquer outra garantia administrativa, já que, será sempre possível ao particular aceder de imediato à via contenciosa, independentemente de ter feito uso ou não da via graciosa.
Assim, não será mais necessária a prévia utilização do recurso hierárquico para aceder ao contencioso administrativo, e não será igualmente necessário, no casos em que o particular optou por utilizar antecipadamente a via administrativa, esperar pelo resultado dessa diligência, para impugnar contenciosamente o acto administrativo. Todas as garantias administrativas passam a ser “facultativas”, delas não dependendo o acesso ao juiz.
Posição oposta a tudo o que foi exposto tem o Professo Mário Aroso de Almeida para o qual, se é pacifico afirmar que o CPTA não exige em termos gerais, que os actos administrativos tenham sido objecto de prévia impugnação administrativas para que possam ser objecto de impugnação contenciosa, contudo o CPTA não têm, porém, o alcance de revogar as múltiplas disposições legais avulsas que instituem impugnações administrativas necessárias, disposições que só poderiam desaparecer mediante disposição expressa que determinasse que todas elas se consideravam extintas. O professor faz uma interpretação restritiva deste regime jurídico segundo o qual se estaria aqui perante uma revogação da regra geral da exigência de recurso hierárquico necessário, constante do CPA, mas que esta não implicava a revogação de eventuais disposições especiais, que consagrem tal exigência. Assim deveria entender-se que os actos administrativos com eficácia externa são imediatamente impugnáveis perante os tribunais administrativos, sem necessidade de prévia utilização de qualquer via de impugnação administrativa. Contudo as decisões administrativas continuam, no entanto, a estar sujeitas a impugnação administrativa necessária nos casos em que isso seja expressamente previsto na lei, em resultado de uma opção consciente e deliberada do Legislador.
Subjacente a esta posição está a rejeição do argumento da inconstitucionalidade de imposição de impugnações administrativas necessárias, que na doutrina tem sido deduzido da circunstância de, na revisão de 1989, do então artigo 268.º, n.º3, da CRP a referência que dele inicialmente constava a definitividade dos actos administrativos susceptíveis de impugnação contenciosa. Contudo segundo esta parte da Doutrina, não cabe à Constituição estabelecer os pressupostos de que possa depender a impugnação de actos administrativos, em termos de se afirmar que eles só são legítimos se tiverem previsão constitucional.
Ainda dentro desta linha de pensamento, parte da nossa Jurisprudência defende que, A exigência de recurso hierárquico necessário não viola a garantia do recurso contencioso consignada no artigo 268, n.º 4, da CRP, pois, como se tem entendido na Jurisprudência, tal só ocorre quando não existam meios administrativos que possam obstar à produção de efeitos lesivos sobre a esfera jurídica do recorrente, pois, se existirem esses meios e o interessado não os utilizar, será a si próprio que pode imputar a lesividade imediata do acto por não ter usado aqueles meios, no caso o recurso hierárquico que, dado o seu efeito suspensivo, a tal obstaria (cf.. artigo 170, n.º 1, do CPA) . – cf.. por todos, acórdão de 4-02-2004, Proc.º n.º 2075/03, e jurisprudência nele citada.
Esta posição adoptada por parte da Doutrina, mais concretamente a posição adoptada pelo Professor Mário Aroso de Almeida, merece algumas criticas na óptica do Professor Vasco Pereira da silva:
-Em primeiro lugar, não se vê como será possível compatibilizar a “regra geral” da admissibilidade de acesso à justiça, independentemente do recurso hierárquico necessário, com as “regras especiais” que manteriam tal exigência. Não faz sentido dizer que a impugnação administrativa prévia se tornou desnecessária, para efeitos de impugnação contenciosa ( que era a única razão de ser da sua existência), mas que continua a poder ser exigida.
Considerar que, a partir de agora, o recurso hierárquico passou a ser sempre “desnecessário” , mas que ele pode continuar a ser exigido como condição prévia de impugnação, mesmo quando já não pode mais continuar a ser considerado como condição de impugnação, ou como pressuposto processual, é absurdo.
Admitindo que o código tinha revogado apenas a regra geral do recurso hierárquico necessário, não revogando as regras especiais que o prevêem, então seria forçoso concluir que, ainda antes da reforma, tais normas ditas especiais não possuíam especialidade alguma, já que, eram apenas confirmação, ou reiteração, da regra geral da impugnação hierárquica necessária. Qual será, então, o sentido de utilizar o argumento formal de que o código revogou a regra geral, mas não as normas que se limitavam a reiterar a regra geral e que, estavam nela incluídas, nada tendo de especial?
Haveria assim, caducidade destas normas especiais por falta de objecto. Se a única razão de ser do recurso hierárquico necessário era o de permitir o acesso ao juiz e se, agora, o código estabelece que tal garantia prévia não é mais um pressuposto processual de impugnação de actos administrativos, então isso só pode significar que a exigência de recurso hierárquico em normas avulsas deixa de ter consequências contenciosas pelo que se deve considerar que, pelo menos nessa parte, tais normas caducam, pelo desaparecimento das circunstâncias de direito que as justificavam. Caducidade que resulta da falta de objecto, que acresceria à caducidade decorrente da inconstitucionalidade da exigência de recurso hierárquico necessário ( por violação do conteúdo essencial do direito fundamental à tutela plena e efectiva, tal como, os princípios da separação de poderes e da descentralização).
Tal inconstitucionalidade tornou-se ainda mais patente, depois da concretização legislativa do direito de acesso à justiça administrativa, mediante a consagração das regras da desnecessidade de impugnação administrativa prévia ao acesso ao juiz, levando à criação de uma espécie de contencioso “privativo” de certas categorias de actos administrativos, em derrogação do regime geral conforme à constituição.
Assim seriam inconstitucionais eventuais derrogações legislativas (posteriores à reforma) do novo regime processual conforme à constituição, nomeadamente por violação do conteúdo essencial do principio constitucional da tutela plena e efectiva dos direitos dos particulares, assim como o principio da igualdade de tratamento dos particulares perante à administração e perante a justiça administrativa.
O código do Procedimento Administrativo, concretizando o direito fundamental de acesso ao contencioso administrativo (art.268.º, n.º4, da Constituição), estabelece um principio de “Promoção do acesso à justiça (art.7.º, do Código), segundo o qual o “mérito” deve prevalecer sobre as formalidades, o que implica, a regra segundo a qual devem ser evitadas “diligências inúteis” (art.8.º, n.º2, do Código).
Logo não haveria nada mais Inútil e despropositado do que continuar a exigir uma qualquer garantia administrativa prévia, quando tal exigência deixou de ser pressuposto processual da impugnação de actos administrativos, pelo que também por esta via, se verificaria a ilegalidade e inconstitucionalidade de uma decisão judicial que persistisse na regra do recurso hierárquico necessário.
De tudo o que foi exposto importa reter as principais particularidades presentes no código sobre este tema:
-Permite a imediata impugnação de actos administrativos praticados pelo subalterno, afastando a exigência de recurso hierárquico necessário. Sendo agora de vital importância que o legislador proceda à “harmonização” das disposições do CPA e demais legislação avulsa, concretamente aquelas que ainda façam a distinção entre recurso hierárquico necessário e facultativo ( art.166.º e segs. do CPA), em termos que já não se justificam.
-Revogação expressa das disposições que prevêem o recurso hierárquico necessário ( por uma questão de certeza e segurança jurídica) devendo considerar-se que as mesmas já caducaram, e proceder a generalização da regra da atribuição de efeito suspensivo a todas as garantias administrativas, acompanhada pela fixação de um prazo (curto) para o exercício da faculdade de impugnação administrativa pelos particulares ( Professor Vasco Pereira da Silva sugere 30 dias), prazo que não teria qualquer relevância para a questão da impugnabilidade do acto administrativo, mas que interessaria, para a aplicação do regime da suspensão automática da eficácia, até à decisão da garantia administrativa. Tal solução serviria o interesse do particular, que passava a ter um estimulo acrescido para utilizar as garantias administrativas, decorrente do efeitos suspensivo automático do acto administrativo, sem ver nunca precludido o direito de acesso ao tribunal e o interesse da Administração, que gozava de “uma segunda oportunidade” para melhor cumprir a legalidade e realizar o interesse público, podendo desde logo, sendo caso disso, satisfazer as pretensões do Particular e pôr termo ao litigio.
Por tudo o que foi exposto, deve-se entender que caducam todas as normas que prevejam a necessidade de recurso hierárquico necessário, ou de qualquer outro meio gracioso, considerando-se todas as garantias administrativas como “facultativas”, na medida em que, não impedem o particular de utilizar imediatamente, ou simultaneamente, a via contenciosa, alem de possuírem um efeito suspensivo dos prazos de impugnação contenciosa.
Neste Contexto, para o Professor Vasco Pereira da Silva, deve considerar-se que o Particular lesado por um acto administrativo, que preencha a previsão do anterior recurso hierárquico necessário, pode optar por fazer uma de três coisas:
-Intentar, desde logo, a acção administrativa especial, acompanhada ou não do respectivo pedido cautelar de suspensão da eficácia do acto administrativo, optando exclusivamente pela via judicial da resolução de litígios;
-Proceder à prévia impugnação hierárquica que, para além do efeito geral de suspensão do prazo de recurso contencioso, deve continuar a gozar, de efeito suspensivo da execução do acto administrativo e, só depois, em função do resultado da garantia administrativa, utilizar ou não a via contenciosa;
- Impugnar hierarquicamente a decisão administrativa, que goza de efeito suspensivo da eficácia, mas tendo ainda a possibilidade de aceder imediatamente a tribunal, sem ter necessidade de esperar pela decisão do recurso hierárquico;
Concluindo, podemos afirmar que se é certo que a necessidade da interposição de recurso hierárquico necessário vigorou durante vários anos entres nós, por tudo o que foi dito supra, parece que essa mesma necessidade já não impera hoje em dia nas disposições do nosso código, permitindo a impugnação automática de actos que sejam lesivos de direitos de particulares ou que tenham eficácia externa (art. 51.º, n.º1., do CPTA), consagrando uma orientação de acordo com os princípios do pleno acesso à justiça e da tutela jurisdicional efectiva (art. 268º, n.º 4., da Constituição).

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