segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

A aceitação do acto administrativo

1. Objecto do presente trabalho

O instituto da aceitação do acto administrativo, figura idiossincrática do Direito Administrativo português, apesar da sua evidente importância prática e da recorrência com que a questão se coloca nos nossos tribunais, tem sido alvo de parco interesse e insuficiente construção dogmática por parte da doutrina nacional.

O presente trabalho pretende reunir e apreciar criticamente alguns dos mais importantes contributos para o tema oferecidos pela doutrina e jurisprudência lusas, tomando posição sobre os pontos mais polémicos.

Assim, começaremos por evidenciar a sua previsão legal e os fundamentos da mesma, explicitando de seguida o que deve entender-se por aceitação do acto administrativo. Procuraremos também abordar a difícil questão da sua natureza jurídica e, por fim, na posse de todos estes dados, discutir algumas concretizações doutrinárias e jurisprudenciais acerca do seu regime.

2. Previsão legal e fundamentos do instituto

A aceitação do acto administrativo enquanto causa de preclusão do direito de impugnação do mesmo é uma figura original e específica do Direito Administrativo português.

Erigida por outras ordens jurídicas, com principal destaque para a italiana, como uma construção doutrinária e pretoriana supra-legal, directamente derivada de princípios jurídicos, em Portugal ela goza de consagração legal expressa nos arts. 53.º, n.º 4 CPA e 56.º CPTA. No primeiro caso, está em causa disciplinar o acesso aos procedimentos administrativos de segundo grau (reclamação e recurso hierárquico), enquanto no segundo se bule com a possibilidade de impugnação contenciosa do acto, sendo este último o preceito que aqui nos ocupará a título principal.

Pergunta-se então qual o fundamento desta restrição do direito fundamental de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efectiva (arts. 20.º, n.º 1 e 268.º, n.º 4 CRP), isto é, quais os valores constitucionalmente protegidos cuja protecção, em termos de concordância prática, justifica o recurso ao regime do art. 18.º, n.ºs 2 e 3 CRP.

Em primeiro lugar, estão em causa a economia processual e o direito a uma decisão judicial em prazo razoável (art. 20.º, n.º 4 CRP), intimamente relacionados com o princípio da igualdade (art.º 13º CRP). Com efeito, não parece razoável que os particulares possam vir aumentar a pendência nos tribunais administrativos para impugnar actos cujos efeitos negativos aceitaram, sujeitando a uma demora acrescida os restantes processos.

Por outro lado, a segurança jurídica, a protecção da estabilidade das decisões administrativas e, por via desta, do próprio jus imperii do Estado (art. 2.º CRP) aconselham a que se vede aos particulares a possibilidade de se relacionarem com as instituições do Estado de forma leviana e inconsequente, primeiro aceitando e depois impugnando um mesmo acto administrativo.

Finalmente, o princípio da boa fé (art. 266.º, n.º 2 CRP), que vincula não apenas a Administração face aos particulares, mas também estes face àquela (art. 6.º- A, n.º 1 CPA), concretizado na protecção da confiança legítima e na proibição do venire contra factum proprium, exige esta mesma solução.

3. Conceito

Densificar o conceito de aceitação do acto administrativo implica fazer uma delimitação positiva do mesmo, que evidencie os seus pressupostos, seguida de uma, ainda que sucinta, delimitação negativa, distinguindo-o de conceitos afins, a saber, a renúncia ao direito de recurso e o decurso do prazo de impugnação.

A aceitação do acto administrativo traduz-se numa manifestação de vontade positiva, expressa ou tácita (art. 56.º, n.º 2 CPTA e art. 217.º, n.º 1 CC), de concordância com o conteúdo de um acto administrativo anulável, por parte do seu destinatário, que tem como efeitos a preclusão do direito de impugnação graciosa (art. 53.º, n.º 4 CPA) e contenciosa (art. 56.º CPTA) do mesmo e, não sendo este segundo passo pacífico na doutrina, a renúncia à posição substantiva subjacente ao conteúdo desfavorável do acto em questão. Não são, pois, passíveis de aceitação os actos nulos, pois nestes não há uma verdadeira decisão de autoridade da Administração merecedora de uma tutela acrescida por parte da ordem jurídica.

Distingue-se da renúncia ao direito de recurso, porquanto esta é uma manifestação de vontade de conteúdo negativo dirigida ao não exercício, em concreto, do direito de impugnar, sem efeitos substantivos mas meramente processuais, que pode ter lugar antes ou depois da interposição da acção de impugnação (art. 681.º, n.º 1 CPC).

Distingue-se ainda do mero decurso do prazo de impugnação [art. 58.º, n.º2, al. b) CPTA], na medida em que este não encerra qualquer manifestação de vontade, podendo advir do mero desleixo do particular que deixa correr o prazo sem nada fazer, nem pode, portanto significar uma conformação com o conteúdo do acto e consequente renúncia a uma posição substantiva.

4. Natureza jurídica

A questão da determinação da natureza jurídica da aceitação do acto administrativo desdobra-se em duas outras: em primeiro lugar, a de saber se estamos perante um negócio jurídico ou um mero acto jurídico e, em segundo lugar, se se trata de um caso de ilegitimidade, falta de interesse em agir ou antes de um pressuposto processual autónomo.

É hoje ponto assente o abandono da visão de MARCELLO CAETANO segundo a qual a aceitação do acto (anulável) constituiria um reconhecimento da sua validade, tendo como efeito a sua convalidação, à semelhança do que se passa no Direito Privado.
Isto porque a legalidade das decisões administrativas releva do interesse público, sendo, pois, indisponível por parte dos particulares. A aceitação do acto produz apenas a sua inimpugnabilidade relativa, nunca a sua convalidação. Só assim se explica que o MP possa vir impugnar o acto aceite pelo particular (ou prosseguir na impugnação, no caso de aceitação superveniente), em defesa da legalidade objectiva [arts. 56.º, n.º 1, a contrario, 55.º, n.º 1, al. b) e 62.º, n.º 1, todos do CPTA]
Quanto à primeira questão formulada, RUI MACHETE pronuncia-se no sentido de que a aceitação do acto constitui «um acto de disposição de uma situação subjectiva que esteja na titularidade do particular», mais concretamente, um «negócio jurídico unilateral de direito substantivo».

Salvo o devido respeito, entendemos que esta posição é frontalmente incompatível com a teoria geral do facto jurídico. Com efeito, num negócio jurídico rege a autonomia da vontade na sua plenitude, abrangendo tanto a liberdade de celebração como a liberdade de estipulação. Pelo contrário, um acto jurídico é marcado por uma manifestação de vontade do agente (liberdade de celebração), à qual a lei faz corresponder determinados efeitos jurídicos, sem que o agente possa defini-los ou obstar-lhes (não existindo, pois, liberdade de estipulação). Ora, precisamente, uma vez tendo o particular declarado, expressa ou tacitamente, aceitar um determinado acto, não pode excluir o efeito preclusivo do direito de impugnação ou determinar efeito diferente. Desde que a sua vontade de aceitar o acto tenha sido livre e esclarecida, a prática do acto de aceitação implica a renúncia ao direito de impugnação.

Seguimos, pois, a posição de VIEIRA DE ANDRADE, segundo a qual a aceitação do acto tem a natureza de acto jurídico.

No que toca à segunda questão, parece-nos ser de excluir liminarmente a possibilidade de se tratar de um pressuposto processual autónomo, propugnada por VIEIRA DE ANDRADE. Salvo o devido respeito, esta é a solução facilitista de, perante a dificuldade de classificação, prescindir da mesma, afirmando a inclassificabilidade.

É igualmente de rejeitar a proposta de RUI MACHETE de considerar a aceitação como um requisito negativo de legitimidade activa. A favor desta tese poder-se-ia apontar a epígrafe do art. 53.º, n.º 4 CPA («Legitimidade»). No entanto, este argumento literal é, como se sabe, insuficiente, pois a epígrafe não vincula o intérprete nem tem o legislador uma tarefa classificatória.

Está em causa nesta tese, quanto a nós, um caso típico de petição de princípio: afirma-se que o interesse pessoal e directo se tornou ilegítimo, quando se devia primeiramente provar que se trata de uma questão de legitimidade, para depois se discutir se ela deixou ou não de existir.

Entendemos, pois, que a aceitação do acto está ligada ao interesse em agir, na esteira de VASCO PEREIRA DA SILVA. Assim, uma vez que a aceitação do acto se traduz no acatamento dos seus efeitos desfavoráveis e, portanto, na renúncia aos efeitos favoráveis do acto legalmente devido, a impugnação seria inútil porque o direito ao acto favorável se extinguiu na esfera do particular, nada havendo a salvaguardar através da anulação do acto aceite.

5. Algumas concretizações doutrinárias e jurisprudenciais

Como se referiu supra, o efeito preclusivo do direito de impugnação derivado da aceitação do acto administrativo constitui uma restrição ao direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efectiva (arts. 20.º, n.º 1 e 268.º, n.º 4 CRP), que é um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (art.º 17.º CRP).

Assim, a doutrina e jurisprudência têm acentuado a necessidade de recorrer aos princípios hermenêuticos próprios da interpretação dos direitos, liberdades e garantias, nomeadamente ao princípio in dubio pro libertatis, que impõe uma interpretação restritiva das restrições. Desta feita, têm sido concebidos diversos requisitos da aceitação, não expressamente previstos no art. 56.º CPTA, de forma a limitar ao mínimo a compressão do direito fundamental em questão.

Esses requisitos têm-se revelado particularmente importantes no que toca à aceitação tácita (art. 56.º, n.º 2 CPTA) e à densificação daquilo que deve ser tido como «facto incompatível com a vontade de impugnar». Com efeito, é essencial para que se possa lograr a garantia do núcleo essencial da tutela jurisdicional efectiva que aquilo que se entende por comportamento concludente da vontade de aceitar não seja estendido para lá do razoável.

A aceitação terá, em primeiro lugar, de ser espontânea, requisito inferido do art. 56.º, n.º 3 CPTA, que estatui que não é aceitação tácita a execução ou o acatamento do acto por funcionário ou agente, salvo se a oportunidade da execução estiver na disponibilidade do mesmo. Assim, os actos praticados no âmbito do dever de obediência não valem, em regra, como aceitação, por não serem espontâneos.
Exige-se ainda que a vontade de aceitar seja livre e esclarecida, não relevando a declaração de aceitação determinada pelo receio das consequências negativas do não acatamento do acto. Tem aqui aplicação todo o regime da falta e vícios da vontade (art. 240.º e ss. CC).

Nesta senda, a jurisprudência tem entendido que a aceitação do acto, para ser perfeita, tem de ser feita num contexto em que o particular tenha um conhecimento perfeito do conteúdo do acto e da sua eventual ilegalidade, requisito que vem complementar a exigência de que a aceitação seja posterior ao acto (art. 56.º, n.º 1 in fine CPTA). Com efeito, a ratio dessa exigência temporal é precisamente garantir que o particular conheça o conteúdo final do acto, aceitando-o de forma esclarecida, pelo que não deve bastar a mera possibilidade formal desse conhecimento.

Além disso, entende CARLOS CADILHA, em comentário ao Acórdão 07.03.2002 TCA, e com razão, que não existe aceitação quando, atenta a situação fáctica, outro comportamento não era exigível ao particular, visto que a rejeição total do acto agravaria a sua posição jurídica global de forma inaceitável. In casu, a aceitação da nomeação para um cargo não deve ser equiparada à aceitação tácita de todo o conteúdo do acto de nomeação, incluindo o momento a partir do qual esta começa a produzir efeitos, pois sendo a nomeação um acto que tem na aceitação um requisito de eficácia, a sua não aceitação impediria o particular de iniciar funções até que fosse decidida a questão da sua aplicação no tempo.

Por fim, a doutrina tem vindo a dizer que, no que toca à formulação de reservas, vale o princípio de que protestatio contra factum non valet, isto é, que não basta uma mera reserva formal da faculdade de impugnar, devendo a mesma ser desconsiderada se o comportamento concludente apontar no sentido da aceitação do acto.

Bibliografia:

ALMEIDA, Mário Aroso de, CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2ª edição revista, Coimbra, Almedina, 2007, p. 340 e ss.

ANDRADE, José CarlosVieira , «Aceitação do acto administrativo», in BFDUC, Volume Comemorativo, Coimbra, 2003, pp. 20 e ss.

CADILHA, Carlos Alberto Fernandes, «Aceitação da nomeação vs aceitação do acto administrativo», in CJA, n.º 37, pp. 42 e ss.

LUÍS, Sandra Lopes, A aceitação do acto administrativo: conceito, fundamentos e efeitos, dissertação de mestrado em Ciências Jurídico-Políticas, apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2008

MACHETE, Rui, «Sanação (do acto administrativo inválido)», in DJAP, vol. VII, Coimbra, 1996, pp. 336 e ss.

OLIVEIRA, Mário Esteves de et allii, Código do Procedimento Administrativo Comentado, 2ª edição, Coimbra, Almedina, 1997, pp. 287-288

SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, Coimbra, Almedina, 2005, pp. 292 e ss.

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