segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Conceitos de acto administrativo

No entender do Prof. Vieira de Andrade, o ponto de partida para a construcção do conceito de acto administrativo impugnável ( pressuposto para o pedido da respectiva acção), é o do acto administrativo, cujo conceito material se encontra no art. 120º do CPA, ou seja, “decisões dos orgãos da Administração que ao abrigo de normas de direito público visem produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta”.
Ora, se se atentar no art. 51º/1 do CPTA, retira-se de imediato a ideia de que só o conceito material de acto administrativo não é bastante para delimitar o objecto desta acção. De facto, se assim fosse, bastaria, pura e simplesmente, fazer uma remissão para o art.120.º CPA, sendo que as condições para a impugnação dependeriam apenas de outros pressupostos desligados do próprio objecto da acção, ou seja, da legitimidade e da oportunidade.E, no fundo, é isto que o Prof. Vieira de Andrade salienta.
E diz o Prof. que o conceito processual é mais vasto porque inclui decisões das entidades privadas que exerçam poderes públicos e também os actos de autoridades não integradas na Administração. Isto é o que resulta de uma leitura comparativa ( e quase absolutamente literal) dos arts. 120º CPA e 51º/2 CPTA.
E será mais restrito, na óptica deste Prof., na medida em que do art.51º/1 CPTA resulta que não serão impugnáveis todos e quaisquer actos administrativos, mas, apenas aqueles dotados de eficácia externa, e, especialmente os susceptíveis de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos.


E, apesar de ser a interpretação que mais forte apoio tem no texto do 51º/1 CPTA ( pelo menos literalmente), não é descabida uma interpretação como a do Prof. Vasco Pereira da Silva, que, ao invés de ver nestes dois critérios (eficácia externa e lesividade) uma relação de especialidade, em que o critério mais amplo é o da eficácia externa, vê antes estes dois critérios com autonomia, até, parece que se pode dizer, com alternatividade. Ora, esta alternatividade é ligada à própria função mais subjectivista ou objectivista da acção em causa.
O Prof. distingue assim os casos de acções intentadas por particulares contra a Administração para tutela de um direito dos casos de acções para defesa da legalidade e do interesse público ( a acção pública e a acção popular).
Assim, no primeiro caso há uma função predominantemente subjectiva, de tutela efectiva e plena do particular e só em segunda linha se pode falar na função objectiva ( de tutela da legalidade e interesse público) nestas acções. Assim o critério para estas acções seria o da lesividade. É até o que resulta do elemento literal do art. 268º/4 CRP: “ É garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente,(...) a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem,(...)”. Mas, também é o que faz sentido com a distinção acima referida das funções predominantemente subjectivas ou objectivas.
Já, nos casos de defesa da legalidade ou interesse público, no âmbito de acções popular e pública, de função marcadamente mais objectivistas, deveria-se atender ao critério da eficácia externa, ou seja, um critério mais formal, adequado a um interesse objectivo.
Como salienta o Prof. Vasco Pereira da Silva, o critério da eficácia externa não poderia ser o critério para os casos de acções com essa função mais subjectivista. Primeiro, a Constituição parece erguer a lesividade como o pressuposto essencial para a impugnação de actos administrativos que afectem direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares. Segundo, o próprio CPTA prevê expressamente situações em que podem ser impugnados actos ineficazes. De facto, o art. 54º/1,a) CPTA, prevê até uma situação que apela muito à própria lesividade, dado que embora aqui o acto não produza efeitos jurídicos ( nem externos, nem internos) é ainda assim susceptível de causar lesão com a execução, e como tal, pode ser, desde logo, impugnável.


Ora, ao defender a exigência de eficácia externa dos actos como pressuposto da impugnabilidade, o Prof. Vieira de Andrade tem depois dificuldade em admitir a impugnabilidade de decisões administrativas preliminares ( como pré-decisões, pareceres vinculativos, etc.), mesmo quando estes determinem “peremptoriamente a decisão final de um procedimento com efeitos externos, mas que não tenham ( ou na medida em que não tenham), elas próprias, capacidade para constituir tais efeitos externos, que só se produzam através dessa decisão final ”. O Prof. vê nestes casos uma lesividade indirectamente produzida, que pode ser digna de protecção ao nível de uma “defesa antecipada” e que não se encontra expressamente excluída pelo art. 51º CPTA, mas que também não se encontra aí definida, e como tal defende que esta impugnabilidade deveria resultar expressamente de uma lei.
Já o Prof. Vasco Pereira da Silva, com a sua interpretação dos critérios da eficácia externa e lesividade, defende uma impugnabilidade ampla de actos lesivos, que tanto podem consistir em decisões preliminares, simples actos de execução, como em actos finais de um procedimento, decisões administrativas finais no sentido clássico. Esta posição sai reforçada ainda da leitura do art. 51º/3 CPTA.


Outra querela doutrinária interessante neste domínio é a questão da exitência actual de recurso hierárquico necessário.
Parece consensual que com a reforma do contencioso se afastou a regra geral de necessidade do recurso hierárquico necessário prévio, cuja existência legítima era já discutível face à desconformidade com a Constituição, antes dessa reforma.
De facto,nem no art.268º/4 da CRP nem do art.51º/1 CPTA resultam quaisquer exigências explícitas ou implícitas disso. Pelo contrário, no art. 59º/4 e 5 CPTA, encontramos, pelo menos indícios de que o recurso hierárquico necessário prévio deixou de o ser. E aliás, este recurso gracioso é pouco compatível com a ideia base do contencioso, de garantir a tutela jurisdicional efectiva, plena e adequada dos direitos dos particulares. No entanto, um recurso facultativo gracioso, poderá ter as suas vantagens, nomeadamente de promover a aproximação entre a Administração e os particulares no âmbito da tomada da decisão e permitir assim, porventura, resolver alguns casos sem necessidade de recurso a tribunais.
Quanto a esta questão, é necessário falar na posição do Prof. M. Aroso de Almeida, que preconiza uma interpretação restritiva do regra geral ou do regime geral da desnecessidade de recurso hierárquico. Entende este Prof. que se deve distinguir entre a regra geral do CPA ( da necessidade de recurso hierárquico;167º CPA) e as regras especiais para efeitos do âmbito da revogação. Assim, quanto à regra geral do CPA, o Prof. M. Aroso de Almeida, entende que foi revogada, dado que regra geral nova revoga regra geral antiga. Já quanto às normas ditas especiais, M. Aroso de Almeida afirma que não são revogadas, pois e até de acordo com o art. 7º/3 CC, a lei geral não revoga lei especial excepto quando se o legislador inequivocamente demonstrar que tem essa intenção. Assim, quanto a estas normas em diplomas avulsos, que contenham exigência de recurso hierárquico necessário, não funcionaria a regra geral do CPTA nem haveria assim revogação destas normas.
O Prof. Vasco Pereira da Silva vem debater esta argumentação, negando desde logo o argumento formal avançado pelo Prof. M. Aroso de Almeida acerca da especialidade de certas normas e da sua não revogação. De facto, as regras que o Prof. Aroso de Almeida classifica como especiais, eram, na verdade, meras confirmações ou manifestações da regra geral do CPA, e como tal, eram a regra geral. Ora, parece que essas normas nada tinham de especial, e pode-se entender que, implícitamente, foram revogadas quando foi revogada a regra geral que era a sua fonte, que era, no fundo, a sua razão de ser. Como salienta o Prof. Vasco Pereira da Silva, ainda assim, este argumento formal só valeria para o futuro. Aí sim, as normas poderiam ser classificadas como especiais em relação à regra geral, prevendo um desvio à regra geral existente. No entanto, e como também observa o Prof. Vasco Pereira da Silva, mesmo neste cenário não parece ser de aceitar o recurso hierárquico necessário por incompatibilidade com valores constitucionais, como aliás, já o era antes da reforma, pelo menos para este Prof. Concluindo, não parece haver espaço na nosso contencioso actual para o recurso hierárquico necessário.


Concluindo, agora em geral, deve-se dizer que, de facto, as noções de acto administrativo material e acto administrativo impugnável, apesar da íntima conexão, comportam âmbitos algo diferentes de aplicação, de acordo até com a sua função.
E assim, apesar dos reparos feitos à afirmação do Prof. Vieira de Andrade, ainda assim ela parece conter uma verdade incontestável, a verdade de que o conceito processual de acto administrativo impugnável é mais vasto que o do acto administrativo, na medida em que comporta uma expansão subjectiva, e que nem todos os actos administrativos serão impugnáveis, mas tão-só aqueles lesivos dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares, até pela natureza das coisas. Na verdade, não faria sentido serem impugnáveis actos insusceptíveis de terem efeito lesivo, ( embora existam actos parcialmente favoráveis que têm efeito lesivo). Para os casos de defesa da legalidade e do interesse público, aí sim, entraria a ideia de eficácia externa, que será também um factor que vem restringir o âmbito do conceito processual do acto administrativo em relação ao material.

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