sábado, 13 de dezembro de 2008

11º Mandamento: Que sejam iguais perante a lei?

O mundo de massas e proliferação de situações da vida em tudo semelhantes, permite-nos arredondar números e sugar para um molde essas mesmas situações que, apesar de provindas de diferentes origens, são subsumíveis a categorias e assim, merecedoras não mais que de uma solução igual. Por isso, talvez, se tenham criado normas, estas que gerais a abstractas, esquecem o individualismo por um momento e conseguem, com todo o esforço de interpretação linguística, encaixar interesses e realidades em comportamentos típicos. As normas regulamentares administrativas estão igualmente viciadas dessa mesma cegueira generalista e – não obstante a ofensa à vontade de cada um em se sentir especial – claro que compreensiva: não existiriam dias suficientes para análises casuísticas de cada problema de cada um.

Ora, se antes da reforma de 84/85 no Direito Administrativo português a reacção contenciosa contra regulamentos se confundia em soluções de regime jurídico diferentes e em alguns casos, possuíam um âmbito de aplicação, pelo menos, parcialmente sobreposto (V.P.Silva, C.A. Divã Psicanálise, p. 382), não obstante, esta era possível para um leque menos modesto de casos que o previsto nos sistemas francês ou alemão. Ainda assim, esta variedade de meios processuais (antes da reforma era possível reagir-se ou por via incidental do recurso de um acto administrativa inválido, ou por declaração de ilegalidade de normas administrativas exequíveis por si ou após verificação de ilegalidade em três casos concretos ou, ainda, por via especial, quanto aos regulamentos da administração local comum) não permitia uma completa defesa de direitos individuais ou mesmo de legalidade, pela dispersão de meios e restrição do âmbito do objecto a considerar.

Actualmente, apesar da unificação do regime jurídico em acção administrativa especial para impugnação de quaisquer normas administrativas (v. arts. 46º/2 als. c) e d) e 72º e ss. CPTA), mantêm-se condições procedimentais que continuam a não libertar este meio contencioso dos receios casuísticos. Consoante o pedido, irá variar o regime: opta-se então pelo pedido de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral ou, pelo pedido de declaração de ilegalidade num caso concreto (v. art. 73º CPTA).

No primeiro caso, o legislador parece ter querido uma equiparação formal ao modelo de impugnação constitucional de normas, uma vez que exige a verificação de três casos concretos da desaplicação da norma em causa (que se podem referir quer a processos de impugnação de normas em casos concretos por via principal, quer por desaplicação incidental de actos administrativos, v. Vieira de Andrade, Justiça Adm., p. 238). A não ser que tal seja requerido pelo MP, caso em que tal exigência se subtrai, podendo o mesmo deduzir pedido sem coleccionar casos concretos de desaplicação (tendo o dever de pedir, todavia, caso tenha conhecimento que tal ocorra). Optou-se claramente por um formato objectivista, quer quanto ao requisito de ocorrência não exclusiva de lesão particular, quer mesmo quanto à legitimidade para a impugnação; parece sobrepor-se a defesa da legalidade e do princípio do Estado de Direito democrático, numa espécie de visão garantística, acima dos interesses individuais, dos interesses comuns. Não sendo de louvar tal solução, numa perspectiva de equiparação ao modelo constitucional, pois claro fique que normas regulamentares não serão ipsis verbis leis gerais, entende-se, contudo, esta reserva do legislador, que perante perigo de generalizações precipitadas se precaveu com a necessidade de três provas evidentes para admitir o seu erro.

No segundo caso, diferentemente, o pedido prende-se com a invocação de direitos subjectivos quanto a uma norma de execução imediata, caso em que o lesado poderá pedir a sua desaplicação restrita ao caso concreto. Neste caso, já será possível a invocação de um direito directamente lesivo do particular, inclusivamente, de um direito constitucional, através da garantia incluída na revisão constitucional de 1997, pelo art. 268º/5 CRP, cuja concretização se espelha no art. 73º/2 CPTA. Aqui se vislumbra um corolário da tendência subjectivista dos nossos tempos, que em termos de legislação pública, vem cedendo campo à metáfora dos poderes absolutos de quem administra (mui vincada na expressão o processo feito a um acto, de LaFerrière), numa progressiva igualação das partes em litígio. E assim, a defesa de direitos ou interesses legalmente protegidos impõe-se como uma manifestação natural da legítima titularidade dos mesmos. Ora, para tal, o legislador optou por uma circunscrição ao caso particular, levando aqui ao extremo o carácter subjectivo deste segundo mecanismo de desaplicação de normas administrativas, não sendo minimamente coerente com o primeiro formato que parecia decidido a defender acima de tudo interesses públicos.

Na verdade, se no primeiro molde se direccionou a possibilidade de impugnação a um rigor e abstraccionismo coincidente com aquilo que entendemos por norma legal, no segundo parece ter-se esquecido que, por isso mesmo, dificilmente existem danos meramente particulares derivados de uma norma. Esta, por natureza, pretende-se extensível à comunidade, caso contrário revestiria a forma de acto administrativo. Assim sendo, o legislador parece ter feito um notável esforço de cedência aos parâmetros subjectivistas reclamados pela doutrina, sem no entanto ter-se decidido afincadamente por estes; ou por outras palavras (no reverso da moeda), deu indícios de vontade objectivista, mas não os indícios suficientes. Pelo contrário, regulou um regime contraditório a nível material, ainda que processualmente tenha havido um esquema lógico de uniformização.

Os interesses particulares deverão efectivamente ter validade como causa de pedir, só assim se fará jus a um compromisso com o reconhecimento da sua titularidade e até mesmo com o alargamento da legitimidade activa na causa. E não condeno esse reconhecimento: pelo contrário, defendo facilmente a justiça naturalística e a incorporação legal daquilo que em verdade já existe, a pré-determinação de direitos subjectivos do indivíduo. E nesse sentido, se parecem dirimir as distâncias respeitosas que desde sempre enfermaram as relações jurídicas administrativas, pela tutela efectiva desses mesmo direitos.

Mas a alegação individual desses interesses poderá, por si, comportar consequentemente situações de desigualdade relativa, no sentido em que a impugnação de uma norma com esse fundamento apenas repercutirá efeitos no caso individual. Assim, existirão diferentes níveis de vinculação de uma mesma norma, que embora possa afectar (negativamente) todos por igual, não se aplicará àquele que foi mais diligente e se acautelou. Promoverá, esta solução, uma clara desigualdade entre os destinatários da norma (contrária aos princípios constitucionais e administrativos de legalidade, igualdade, coerência do sistema jurídico e garantia efectiva dos direitos particulares)?

A meu ver, poderá ter querido o legislador optar por uma espécie de concepção puramente subjectiva de um direito subjectivo, isto é, de fazer valer a tutela de um direito potestativo na esfera daquele que é particularmente lesado, de forma a poder dizer que se o direito é subjectivo, então pertence apenas a uma pessoa. Considerou plenamente um direito individual, sem o converter em direito extensível aos restantes destinatários em igual situação. Deste esquema, nada parece resultar de verdadeiramente lesivo em termos de igualdade pois, quem se sentindo ofendido na sua esfera privada terá os meios contenciosos à disposição, não fará sentido, a meu ver, extender deliberadamente uma solução que por algum motivo, poderia inclusive servir positivamente um diferente destinatário. Aqui se contrapõem, afinal, interesses privados e públicos, todavia, sem que em termos materiais pareça haver necessidade de correcção administrativa, pois os mesmos coexistem sem que por princípio, entrem em conflito, não obstante uma análise casuística. Porque a lesividade, tal como o direito, é subjectiva.

Sem comentários: