sábado, 13 de dezembro de 2008

Objectivismo relativo aos sujeitos?(Legitimidade na impugnação de normas)

Esta afirmação do Prof. Vieira de Andrade vem na sequência da análise do pressuposto da legitimidade nas acções para impugnação de normas, que consta do artigo 73.º CPTA. Da conjugação dos artigos 46.º/1 e 72.º/1 CPTA resulta que esta impugnação de normas é um subtipo da acção administrativa especial, que tem por objecto a impugnação de normas emanadas ao abrigo de disposições de direito administrativo, e que essa ilegalidade pode ser intrínseca ou por contágio. O 72.º/2 exclui do âmbito desta acção as declarações de ilegalidade com força obrigatória geral ( e só com força obrigatória geral, como é óbvio), sempre que as ilegalidades disserem respeito a inconstitucionalidades ou ilegalidades reforçadas. A competência para obter estas declarações com força obrigatória geral é assegurada pelo Tribunal Constitucional ( 281.º/1 CRP).
A primeira ideia básica que se tem de ter em conta ( e cuja relevância já se suscitou a propósito da exclusão operada pelo 72.º/2) é que o CPTA estabelece uma diferenciação entre as declarações de ilegalidade com força obrigatória geral e as declarações restritas ao caso concreto, desde logo, e como é natural, ao nível dos efeitos, mas também ao nível da legitimidade.


Deve começar-se por explicar os efeitos distintos das declarações com força obrigatória geral e as circunscritas ao caso concreto, dado que só assim se pode compreender a crítica do Prof. Vieira de Andrade. O CPTA só tem uma norma expressa sobre os efeitos e refere-se somente à declaração com força obrigatória geral, até porque é esta que foge ao comum. O artigo 76.º CPTA( o que regula os efeitos no caso da declaração com força obrigatória geral) denota, nas palavras do próprio Prof. Vieira de Andrade, “(...) uma aproximação ao modelo de fiscalização da constitucionalidade(...)”, prevendo-se a eficácia ex tunc, havendo repristinação. De acordo com o artigo 76.º/2, em casos em que razões de segurança jurídica, de equidade ou de interesse público o justifiquem, poderá haver produção de efeitos da decisão apenas para o futuro ( a partir do trânsito em julgado). Ou seja, o n.º2 consagra a possibilidade de determinação de efeitos ex nunc.


O 76.º/3 CPTA ressalva ainda os casos julgados, salvo decisão em contrário do tribunal, e só quando a norma respeite a matéria sancionatória e seja de conteúdo menos favorável ao particular.
O Prof. Vieira de Andrade entende que os efeitos da declaração sem força obrigatória geral também operam ex tunc, e há também repristinação, mas, claro, os efeitos cingem-se ao caso concreto ( não necessariamente inter partes).
Resulta desta análise que a distinção entre os efeitos das declarações de ilegalidade com força obrigatória geral ou sem ela, passa quase exclusivamente pelos diferentes âmbitos de aplicação, interiores ou exteriores ao processo. O que é bastante relevante, sublinhe-se. Adiantando-se um bocado críticas que se irão fazer mais abaixo, deve-se dizer desde já que a declaração com força obrigatória geral é mais adequada e respeitadora de vários valores e princípios constitucionais, nomeadamente a igualdade e legalidade, mas também o princípio mais vasto de Estado de Direito. De facto, permitir a manutenção de normas que um orgão de soberania já julgou ilegal é um atentado contra o cumprimento da legalidade e pode revelar até um certo desvalorizar do papel dos tribunais, criando-se também situações de desigualdade manifestas.


Passa-se agora à questão da legitimidade. Para começar, deve-se lembrar que o artigo 268.º/5 CRP ( introduzido pela revisão constitucional de 1997) garante aos cidadãos o direito de impugnar as normas administrativas com eficácia externa lesivas dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos. Como se vê, esta disposição acentua a vertente de lesão de direitos dos particulares, parecendo ser especialmente direccionada para o caso concreto. No entanto, não parece poder-se retirar daqui um eventual obstáculo a uma eventual legitimidade de particulares independentemente da verificação dos três casos concretos. Pode dizer-se que a CRP preocupou-se acima de tudo em proteger a lesão dos direitos dos particulares naqueles casos em que estes sejam afectados mais directamente, e, especialmente, em proteger a posição concreta dos particulares lesados por essas normas. A CRP deixou, portanto, margem de concretização dos meios mais adequados para proteger os cidadãos em geral destas normas, garantindo um mínimo de defesa subjectiva. Assim, pode dizer-se que cumpre ao legislador ordinário estabelecer a medida de legitimidade dos particulares nas declarações de ilegalidade com força obrigatória geral. É aí que entra também o caractér mais objectivista ou mais subjectivista que se pretenda imprimir ao contencioso e à justiça administrativa. Mas antes, vejamos como, de facto, o CPTA estabelece a legitimidade para este tipo de acções.


Esta legitimidade pode ser vista de pelo menos dois prismas:dos sujeitos e da extensão dos efeitos, se bem que estes estejam correlacionados.
Para a impugnação de normas com força obrigatória geral têm legitimidade, segundo os nºs. 1,3 e 4 do artigo 73.º CPTA, a pessoa prejudicada pela aplicação da norma ( ou que, possa, previsivelmente vir a sê-lo em momento próximo), caso em que se exige a desaplicação da norma por um tribunal em três casos concretos, e o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento das entidades previstas no artigo 9.º/2 CPTA, não havendo aqui qualquer requisito de verificação dos três casos. No entanto, a “faculdade” do MP passa a “dever” quando este tenha conhecimento de desaplicação em três casos.
O 73.º/2 CPTA prevê o caso de impugnação com efeitos circunscritos ao caso concreto, sendo atribuída a legitimidade ao lesado ( definição que resulta do n.º1), e às entidades do 9.º/2 CPTA, agora a título principal e não como meros impulsionadores ou assistentes na acção levada a cabo pelo MP.
Agora, do prisma dos sujeitos concluimos que aos “lesados” é garantida legitimidade para obter declarações de ilegalidade com efeitos circunscritos, de forma livre, e, apenas verificado o requisito adicional da desaplicação em três casos concretos, é atribuída a legitimidade para obter declaração com força obrigatória geral.
O MP legitimidade para obter declaração de ilegalidade com força obrigatória geral sem quaisquer requisitos.
As entidades referidas no 9.º/2 CPTA têm legitimidade para obter declarações sem força obrigatória geral. Tenha-se em atenção, no entanto, o artigo 19.º da Lei n.º 83/95 ( Lei de participação procedimental e de acção popular). Têm ainda o poder de requerer a intervenção do MP, e a faculdade de se constituirem como assistentes em processos tendentes a obter a declaração com força obrigatória geral, aí, subordinadamente, e como tal, sem limitações.

Agora que temos todos os dados passemos à verdadeira análise das questões levantadas por esta afirmação. Quanto a mim existem três questões principais: será que há um cumprimento integral da garantia constitucional de protecção plena dos titulares de direitos e interesses legalmente protegidos ao nível do caso concreto? Será que a opção tomada pelo legislador quanto à declaração com força obrigatória geral revela uma opção de índole objectivista? Por fim, será que terá havido um retrocesso?
O Prof. Vasco Pereira da Silva mostra-se muito crítico em relação à declaração com efeitos concretos e entende que esta solução, mesmo do ponto de vista da defesa subjectiva, viola o princípio do artigo 268.º/5 CRP, na medida em que cria uma restrição ao alcance do conteúdo essencial do direito ( 18.º/3 CRP), ainda por cima, sendo este um regime mais restritivo do que o anterior à reforma.
O Prof. Vieira de Andrade sustenta que, nas declarações com força obrigatória geral são tomadas opções objectivistas. Quanto a mim, e tendo em conta o regime anterior ( especialmente a impugnação de normas no âmbito do 63.º e s.s. da LEPTA), parece-me que este nova regulação vem trazer uma restrição à defesa objectivista, embora, o objectivismo seja, ainda assim, patente nesta acção. O que me parece que existe é uma escolha objectiva dos sujeitos. Ou seja, para obter uma declaração com força obrigatória geral, dá-se uma legitimidade ilimitada ao MP, com a colaboração das entidades referidas no artigo 9.º/2 CPTA, entidades cuja principal função e vocação é, precisamente, a defesa objectiva da legalidade e do interesse público, porque estão normalmente desligadas do caso concreto e estão especialmente habilitadas para levar a cabo essa defesa. Só limitadamente se reconhece a habilitação dos particulares lesados para levar a cabo uma acção que vá para além do caso concreto e constitua já uma defesa da legalidade. Assim, parece que é o papel a atribuir ao cidadão comum “lesado” que está aqui em causa. Prevendo um papel apenas secundário e limitado para estes, pode então eventualmente falar-se numa “escolha objectiva dos sujeitos”.
O que me parece também é que, desta limitação da legitimidade dos particulares resulta uma limitação ao próprio objectivismo e à defesa da legalidade. De facto, sendo através da declaração com força obrigatória geral que se retira a maior protecção objectivista, ao reduzir o leque de “sujeitos” habilitados para levar a cabo essa defesa de forma livre, ou seja, sem sujeição a quaisquer requisitos, está-se, como disse, a criar limitações a essa defesa.
Assim, fica já sondada a questão do retrocesso. Com a reforma houve uma unificação desejável dos processos impugnatórios, mas com a limitação à obtenção da declaração com força obrigatória geral por particulares “lesados” e a previsão da declaração com efeitos circunscritos ao caso concreto colocam-se problemas, já acima suscitados, de compatibilização desta figura com os princípios da igualdade, legalidade e Estado de Direito, nos termos também já expostos acima. Este foi um retrocesso perfeitamente evitável.
Procurando descortinar as opções do legislador, pode, porventura, dizer-se ( agora com o Prof. Vieira de Andrade) que a escolha deste modelo revela um entendimento de que o particular não tem a mesma aptidão que têm o MP e mesmo as entidades do artigo 9.º/2.
Isto também representa um indício de que, de facto, o legislador vê as declarações com força obrigatória geral como uma questão essencialmente de interesse público e de legalidade. E compreende-se que assim seja. Para a posição de um particular, pelo menos na maioria dos casos, a declaração com efeitos circunscritos ao seu caso é bastante para assegurar a sua posição. Mas porquê não dar, no mínimo, a faculdade de, (sem a restrição da desaplicação em três casos), impugnação de normas regulamentares por particulares que desejem participar na obtenção de justiça e de cumprimento da legalidade. Pela minha parte, concordo com o Prof. Vasco Pereira da Silva, vendo na declaração com efeitos circunscritos ao caso concreto uma manifesta violação do princípio da igualdade e da legalidade. Penso ainda que esta restrição não promove também a participação ( desejável) de colaboração e participação dos cidadãos na procura da justiça.

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