sábado, 13 de dezembro de 2008

In dubio… pro actione: formalismo atrás, mérito para a frente

Formalismo atrás, pois que as formalidades no processo administrativo são instituídas pela lei para assegurar a correcta tramitação do pedido, e não como entraves à sua apreciação e decisão; mérito para a frente, na medida em que o princípio do “pro actione” impede que a rígida aplicação das regras processuais possam pôr em causa o exercício do direito fundamental de acesso ao direito. Temos, então, em regaço, um princípio anti-formalista que consagra a concretização de uma tutela efectiva e eficaz constitucionalmente consagrada e que muito nos preza acarinhar (cfr. artigos 20.º, n.º5 e 268.º, n.º 4 da C.R.P.).

Ora, o novo C.P.T.A. veio reconfigurar o direito processual administrativo estruturando-o com base no princípio do “pro actione”, tendo pois o legislador entendido a tutela jurisdicional administrativa efectiva como o eixo axiológico estruturante de todo o Direito Processual Administrativo. De modo que este princípio, concretizando aqueloutro constitucional, vem apontar para a necessidade de uma interpretação e aplicação das normas processuais no sentido de favorecer o acesso ao tribunal ou de evitar as situações de denegação de justiça, designadamente por excessivo formalismo (cfr. Vieira de Andrade, “A Justiça Administrativa”, 4ª edição, Almedina, p. 416 e seguintes).

Não obstante ser o processo civil o seu âmbito natural de aplicação, tendo mesmo sido essa orientação pela verdade material uma das linhas-mestras da reforma de 1995, tal princípio encontra-se consagrado no art. 7º do C.P.T.A. sob a designação de “promoção de acesso à justiça”, determinando que, para a efectivação do direito de acesso à justiça, “as normas processuais devem ser interpretadas no sentido de promover a emissão de pronúncias sobre o mérito das pretensões formuladas”. Também o n.º 3 do art. 12.º do C.P.T.A. reflecte a mesma directiva hermenêutica.

E interessa-nos acarinhar por, num prisma analítico, tal princípio implicar uma aptidão especial do acesso à jurisdição administrativa para proporcionar ao sujeito de direito a situação jurídica administrativa que deveria ocorrer no quadro do Direito aplicável, significando pois a materialidade da garantia. A propósito… mérito para a frente, ao admitir-se a prevalência da justiça material sobre a justiça meramente formal. O princípio do “pro actione” consagra a prevalência da decisão de mérito em desfavor da decisão de forma, permitindo que o juiz supra oficiosamente a falta de um pressuposto processual susceptível de sanação, visando, tanto quanto possível, diminuir as absolvições de instância e, quando tal seja viável, favorecer as decisões de fundo - cfr. artºs. 265º, nº 2, 288º nº 3, C.P.C. e 7º C.P.T.A. Com isto se prende o entendimento da instrução como dever da Administração Pública em obediência à realização dos princípios da prossecução do interesse público, da legalidade, da imparcialidade e da proporcionalidade, devendo consequentemente “averiguar todos os factos cujo conhecimento seja conveniente para a justa e rápida decisão do procedimento” (art. 87.º, n.º 1, do C.P.T.A). Mais, tal prevalência implica a desvalorização das exigências processuais de carácter formal que constituam requisito dispensável do conteúdo essencial de outros princípios fundamentais do processo – como os do contraditório, da igualdade de armas e do juiz natural. Entenda-se pois que, não obstante o sentimento afável nutrido, o princípio do “pro actione” não pode prevalecer “tout court” sobre todos os demais princípios e regras processuais, nomeadamente aqueles que respeitam e caracterizam o específico meio processual utilizado: a sua aplicação não pode, nem deve, ser efectuada com violação de outros princípios e regras que visem efectivar o acesso à justiça e a tutela jurisdicional efectiva, como seja, a título de exemplo, o princípio da celeridade processual, elemento fundamental dos processos cautelares, e as normas que imponham ónus processuais específicos às partes, sob pena de se subverter tal princípio e regras.

E mais para a frente, ao ter o legislador materializado essa directiva constitucional sobre o juiz, construindo um princípio de interpretação das normas processuais concernentes ao exercício da jurisdição administrativa no sentido de promover pronúncias sobre o mérito das pretensões formuladas, exige-se, então, aquele do juiz que este proceda a uma pronúncia de mérito, a qual conheça do conjunto das pretensões formuladas, ou seja, dos pedidos e das causas de pedir que poderão justificar a respectiva procedência, de modo a não restringir o âmbito da garantia consagrada (servindo como exemplo a dificuldade causada pelos artigos 90.º e 91.º do C.P.T.A. em denegar uma qualquer pretensão do particular com fundamentos meramente formais, como a falta de documentos necessários). Consequentemente, tem a Administração, ou o juiz administrativo, o dever de suprimento de eventuais deficiências – tal como o juiz tem o dever de, antes mesmo de poder proferir uma decisão de forma, velar pelo suprimento de excepções dilatórias (cfr. art. 265.º, n.º2, do C.P.C.). Ainda neste sentido, possibilita o artigo 88.º do C.P.T.A. a correcção oficiosa de deficiências ou irregularidades de carácter formal pelo julgador, sendo possível entender essa desvalorização dos vícios procedimentais, como o reconhecimento ao juiz da possibilidade de não anular o acto administrativo, recorrendo àqueloutro princípio do aproveitamento do acto – fazendo recordar BACHOF e a sua expressão “crise do direito procedimental”. Trata-se de um “mais para a frente” num entendimento concordante com a tradição romano-germânica, de uma reafirmação da ideia de instrumentalidade dos requisitos formais e da sua consequente subalternização a considerações de ordem material.

Tem-se, pois, que à Administração cabe adoptar uma postura de imparcialidade tão próxima quanto possível da do juiz na compreensão dos problemas e das expectativas suscitadas no âmbito do procedimento, devendo, então, proceder oficiosamente sempre que o particular se encontre em risco de perder uma posição jurídica substantiva por incumprimento de uma exigência de índole procedimental, desde que a sua concretização se não considere impedida por força de norma injuntiva ou de interesse público que pela sua dimensão deva proceder.

Também o S.T.A. tem afirmado a aplicação desta vertente de princípios anti-formalistas no âmbito do contencioso administrativo, os quais impõem uma interpretação que se apresente como a mais favorável ao acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva. Deste modo, suscitando-se quaisquer dúvidas interpretativas, a opção deve ser no sentido daquela que favoreça a acção e assim se apresente como a mais capaz de garantir a real tutela jurisdicional dos direitos invocados pelo autor (Acórdão da Secção do Contencioso Administrativo do S.T.A. de 6/02/03, in rec. n.º 128/03), pelo que “in dubio pro actione”. Pois que os requisitos formais não são “valores autónomos, mas apenas meros instrumentos destinados a servir uma determinada finalidade”, havendo que “perspectivar as consequências das deficiências formais e instrutórias” em face dessa finalidade. “Em suma, tudo se consubstancia, sempre que possível, na adopção de uma perspectiva vocacionada para o conhecimento do mérito das pretensões deduzidas pelos particulares, desde que, ao assim se actuar, não sejam afectados outros valores dignos de tutela” (Acórdão do S.T.A., 1.ª Secção, de 22/01/2004, P. 2064/03).

Mais uma vez, mérito para a frente: que numa boa aplicação do Direito, apreendendo o potencial aplicativo deste princípio processual no âmbito do processo administrativo, a Administração se abstenha de se ater a questões de natureza meramente formal em detrimento da posição jurídica material dos administrados.

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