sábado, 13 de dezembro de 2008

Apesar do 2 em 1....

Como decorre da conjugação dos três artigos assinalados por MÁRIO AROSO DE ALMEIDA/CARLOS CADILHA [51.º, n.º 4, 66.º, n.º 2 e 67.º, n.º 1, alíneas b) e c) do CPTA], o meio processual adequado para reagir contra um indeferimento expresso por parte da Administração (nos dois casos em que este se traduz, constantes das alíneas b) e c) do artigo 67.º, ou seja, quando é recusada a pretensão do particular, tendo havendo uma análise do mérito da mesma, ou quando haja antes uma recusa liminar de apreciação do requerimento) será a condenação à prática do acto legalmente devido, tal como decorria já, mais uma vez, do artigo 268.º, n.º 4 da CRP.
Esta inovação na ordem jurídica nacional, ou seja, a de determinação à prática de actos administrativos, pelo facto de serem legalmente devidos, implicou uma profunda alteração dos “esquemas de pensamento” anteriores à Reforma, já que no contexto de um contencioso de plena jurisdição, os (verdadeiros) tribunais administrativos podem não só anular/declarar nulos actos praticados pela Administração, mas também imiscuir-se no domínio dos poderes de autoridade da Administração, fixando um prazo determinado e indo mesmo em certos casos ao ponto de impor o pagamento de uma quantia pecuniária, condenando-a à emissão de um acto de autoridade, unilateral (na visão clássica que, como visto em comentário anterior, não corresponde hoje ao conceito de acto administrativo), embora esta condenação à prática do acto legalmente devido englobe também o devido respeito pela margem de livre decisão administrativa, como decorre do artigo 71.º, n.º 2 do CPTA.
Assim, após 2004, se o Senhor A (Alberto ou António, dependendo da imaginação, Asdrúbal ou mesmo Abdul) se tiver dirigido à Administração, perante a qual deduziu um determinado pedido, que culminaria, havendo deferimento, na prática de um acto administrativo, e para o qual apresentou formalmente um requerimento (do qual decorre, como se verá, o seu interesse processual), mas a Administração tiver indeferido expressamente o seu requerimento?
Após 2004, em vez de o Senhor A utilizar um processo impugnatório, pois o acto de indeferimento é um acto administrativo lesivo e com eficácia externa, deve lançar mão deste instrumento, que se dirige pois não só à inércia mas também à recusa administrativa. Deve? Ou pode? Que conselho dar ao Senhor A? Sabemos já que este não tem de impugnar o acto de indeferimento, porque enquanto “titular de uma posição subjectiva de conteúdo pretensivo”, lançará mão da condenação à prática do acto legalmente devido e ilegalmente recusado.
Mas a questão principal que se coloca não é esta. É antes se estamos diante de um dever ou de uma mera faculdade de recurso à condenação à prática do acto devido, parente com algumas especificidades da Verpflichtungklage alemã. Diz-se que “no novo contencioso administrativo os actos administrativos de indeferimento deixam de poder ser objecto de processos de impugnação, dirigidos à respectiva anulação ou declaração de nulidade”. Será esta afirmação correcta, ou seja, deixará o Senhor A de poder em certos casos lançar mão da impugnação do acto administrativo de indeferimento? Estar-lhe-á absolutamente vedado fazê-lo? Sendo convidado, de acordo com o artigo 51.º, n.º 4, a substituir a petição apresentada, é esta substituição obrigatória ou uma mera possibilidade? (note-se que foco aqui apenas o caso de recusa da Administração nas duas vertentes atrás assinaladas, não analisando os casos de cumulação do pedido de impugnação e do de condenação, nem os casos de indeferimentos parciais ou ambivalentes, pois estes não oferecem dúvidas).
Embora a base, como salientam MÁRIO e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, seja de “paternalismo legal”, logo, de obrigatoriedade de recurso à condenação à prática do acto devido e substituição da petição, casos há em que se justifica a mera impugnação do acto, nomeadamente quando tenha já decorrido muito tempo desde o início do procedimento e não haja interesse autónomo na prática do acto, mas apenas na constatação da ilegalidade do deferimento para efeitos, por exemplo, de responsabilidade. Ou pode a prática do acto acarretar desvantagens para o particular, como o pagamento de taxas, ou ainda porque o acto a ser praticado é amplamente discricionário, estando os tribunais muito limitados no âmbito dos seus poderes de pronúncia, não advindo para o autor vantagens da condenação à emissão do mesmo. Sendo este o efectivo interesse processual, não pode haver lugar à substituição da petição, não gerando estes casos uma absolvição da instância, pois há justificação para ocorrer “apenas” a impugnação do acto, desde que houvesse igualmente legitimidade para pedir a emissão do acto devido, caso nisso houvesse interesse.
É certo que do artigo 66.º, n.º 2 decorre que da pronúncia condenatória resulta automaticamente a eliminação do acto de indeferimento da ordem jurídica, já que a impugnação de actos administrativos estaria vocacionada apenas para situações em que há um acto “de conteúdo positivo”, tal como resulta do artigo 51.º, n.º 4. Para utilizar o meio de impugnação de actos administrativos, seria necessário ter ocorrido uma qualquer alteração na ordem jurídica, e não apenas a “recusa de introduzir modificações jurídicas”, sendo que o recurso à impugnação fazia sentido quando era a única via possível no anterior contencioso, sob pena de não se respeitar o direito fundamental a uma tutela judicial efectiva. Mas face ao contencioso actual, embora se tenha de partir da realidade pré-existente, existindo um meio específico através do qual se pode reagir contra a recusa da Administração, qual o sentido de impugnar apenas o acto, quando se pode aqui obter a condenação à prática do acto devido e automaticamente, qual champô 2 em 1, a erradicação do acto de indeferimento do ordenamento? Para quê usar um meio menos tutelador dos interesses do particular? Poderá haver alguma vantagem em escolher apenas a impugnação do acto de recusa, ou nos casos em que isto acontece, como reiteradamente salienta VASCO PEREIRA DA SILVA, tal dever-se-á meramente a “insucesso escolar do advogado”?
Haverá, contrariamente ao que decorre do artigo 51.º, n.º 4, ainda um qualquer interesse em impugnar um acto de indeferimento em vez de escolher a via da condenação à prática do acto legalmente devido?
Como visto, há situações em que tal ocorre, precisamente quando o interesse não consiste na prática do acto, mas apenas na constatação judicial da sua ilegalidade e na sua erradicação da ordem jurídica, desde que constituindo um “interesse processual autónomo”. Salientam MÁRIO e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, em anotação ao artigo 51.º, n.º4, que “Declarar o tribunal apenas que o indeferimento é ilegal, e anulá-lo por causa disso, não assegura que agora venha aí o acto legal, o acto querido e devido – porque pode não vir qualquer acto ou pode vir um acto novamente ilegal”; ora, pode precisamente surgir um caso em que não haja interesse em que “venha aí o acto legal”!
Poderão ser considerados casos meramente académicos, mas tal não significa que tais questões não venham a surgir perante os tribunais administrativos. Assim, os casos típicos de um indeferimento ilegal de um projecto de construção, que o autor pretende meramente ver removido, não tendo porém interesse na sua autorização imediata, podem ser rebatidos, como faz VASCO PEREIRA DA SILVA, salientando que no caso do projecto de construção, nada impedia o particular de não exercer logo o seu direito à construção do imóvel, quando este lhe tivesse sido conferido através do recurso à acção de condenação. Mas o mesmo raciocínio já não se aplica nos outros exemplos, quando esteja em causa uma ampla discricionariedade de decisão ou ainda quando associadas à prática do acto estejam consequências negativas, como o pagamento de taxas.
Assim, surgem casos em que há interesse autónomo na mera impugnação do acto de indeferimento, porque se pretende apenas o reconhecimento da ilegalidade do indeferimento, não havendo pois lugar à substituição da petição, desde que reunidas duas condições: a demonstração do interesse processual na mera impugnação do acto e sua erradicação da ordem jurídica e da possibilidade de autonomizá-lo do interesse na condenação à prática do acto legalmente devido. Daqui decorre pois que não será a acção de condenação à prática de acto devido o meio de reacção jurisdicional próprio “sempre que esteja em causa um acto expresso de indeferimento(…).”
Para finalizar, importa especificar outro ponto importante do meio processual em análise, ou seja, a conformação do objecto do processo e que resulta do já mencionado artigo 66.º, n.º 2: a análise da pretensão do interessado, permitindo a determinação do conteúdo do acto onde não surja reserva da Administração e a automática eliminação do acto de indeferimento da ordem jurídica, pois o mais relevante será a discussão e aferição do fundo da causa, da pretensão do interessado.
Esta inovação da Reforma permite obter desde logo em sede declarativa o que antes apenas era possível no processo de execução de julgados, operando um amplo alargamento do objecto do processo, que não se encontra limitado ao acto de indeferimento em si e aos seus fundamentos, mas abrangendo toda a “posição pretensiva”, em toda a sua dimensão. Ou seja, consagra-se efectivamente um contencioso de plena jurisdição, em que o processo não é já actocêntrico, visando averiguar do mérito da relação jurídica administrativa, com importantes consequências probatórias e quanto a factos e questões de direito supervenientes.
Logo e em conclusão, não é possível sustentar uma estrita limitação do âmbito da impugnação de actos administrativos a actos de conteúdo positivo, ou seja, que introduzem uma mudança na ordem jurídica, “relegando” os actos de contéudo negativo apenas para o campo da condenação à prática do acto legalmente devido. Pois, se o relevante é a pretensão jurídica do interessado e é o próprio que convola o seu interesse na mera impugnação do acto, como retirar daí que ainda assim está obrigado a ser confrontado com a emissão de um acto que, precisamente, já não é pretendido?

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