sábado, 13 de dezembro de 2008

Do outro lado do espelho


Desde que começámos a (psic)analisar o Contencioso Administrativo português, fomos sendo alertados para muitas incoerências e perplexidades. Uma delas, o facto de a acção administrativa dita especial ser na realidade a comum, e a comum acabar por ser especial, ou seja residual, pois o critério de distinção do recurso a ambas reside, grosso modo, em estarmos na presença do exercício da autoridade por parte da Administração, caindo assim na acção administrativa especial, ou em outras formas de exercício da actividade administrativa, com algumas particularidades que não cabe aqui aprofundar. Apenas com esta superficial distinção se chega pois à constatação da supremacia em volume da acção especial sobre a comum.
Mas surge-nos agora outra aparente incongruência: o artigo 37.º, n.º 2, alínea c) do CPTA, em sede de acção administrativa comum, mais concretamente, de acção inibitória (consistente em impedir preventivamente a consumação de um facto lesivo por via de uma provável e receada actuação administrativa) vem expressamente prever a condenação à abstenção da prática de actos administrativos, a “não emissão de um acto administrativo”… Paragem: então trata-se de um acto administrativo e enquadra-se na acção comum? (A comum especial , não a especial que é comum!) Se do outro lado do espelho (numa versão mais Lewis Carroll) a condenação à prática de um acto administrativo cai na acção administrativa especial, porque é que este caso, que parte da mesma situação – a ausência de acto administrativo- se cai na acção comum? Se não houver a emissão de um acto, mas o interessado o quiser, estaremos no âmbito da acção especial. Se não houver, mas for previsível que haja, e o interessado não o quiser (de todo ou com determinado conteúdo), caímos ao que parece na acção comum.
Como salientam Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, em anotação ao artigo, a questão da delimitação da acção inibitória face à impugnação do acto administrativo quando praticado tende a ser relegada para segundo plano, comparada com a mencionada análise dicotómica das acções, originando assim uma interpretação restritiva: a acção inibitória em análise apenas poderia ser aplicada a direitos absolutos, tratando-se de relações tendencialmente paritárias, em que o acto administrativo seria nulo, por implicar a intromissão da actividade unilateral da Administração num campo paritário, gerando nesse caso situações de conflito com a aplicação da intimação do artigo 109.º. Mas já quando a situação que se procura evitar fosse uma do normal exercício da actividade administrativa por via unilateral, o interessado teria de aguardar pela emissão do acto e posteriormente impugná-lo, não podendo reagir preventivamente através desta acção inibitória.
Uma interpretação como a restritiva acima assinalada encerra do risco de poder contender fortemente com o direito fundamental à tutela jurisdicional efectiva, nomeadamente por se tratar de um domínio em que o interessado se encontra particularmente desprotegido, dado tratar-se do exercício unilateral de autoridade por parte da Administração.
Assim, o importante será delimitar correctamente o domínio da tutela preventiva do da tutela posterior à prática do acto, sendo que o recurso à primeira implica que o interesse processual se traduza no facto de uma futura emissão do acto administrativo implicar uma situação de risco, tal como definida no artigo 39.º e ainda que os efeitos que esta acção visa acautelar não pudessem ser obtidos em sede de impugnação do acto, originando o que os autores denominam um “interesse processual qualificado”.

Portanto, a solução do dilema passa por um adequado recurso ao princípio da proporcionalidade enquanto instrumento de resolução da colisão entre interesses colidentes: o do particular à não emissão de um acto lesivo e o da Administração à existência de uma forma de actuação necessária para satisfazer determinado interesse. Deverá lançar-se mão da acção inibitória quando esta constitua o meio mais idóneo para tutelar o interesse dos particulares, ou seja, mesmo sendo assente que a reacção a actuações unilaterais de autoridade da Administração passa por regra pela acção administrativa especial, na modalidade de impugnação de actos, haverá casos em que não será possível dar adequado cumprimento ao princípio da tutela jurisdicional efectiva quando não houver uma preventiva actuação, prévia até à própria emissão do acto.
Como salienta Mário Aroso de Almeida, quando dessa operação de concordância prática resultar que o recurso à impugnação do acto não permite dar cumprimento ao princípio da tutela jurisdicional efectiva, assume preponderância a via preventiva, nomeadamente quando a prática do acto cause danos irreversíveis ou extremamente difíceis de indemnizar, quando este venha a ser imediatamente executado ou quando estejamos perante uma situação de incerteza quanto à efectiva prática do acto por parte da Administração, a que o particular quer pôr fim. Logo, só em situações específicas e verdadeiramente excepcionais, de urgência, é que da ponderação dos interesses em jogo resultaria uma preponderância aplicativa da tutela preventiva.
Voltando à dicotomia das acções, é certo que esta inserção da tutela preventiva no âmbito da acção comum causa perplexidades, pois, como referem Mário e Rodrigo Esteves de Oliveira, contende ainda com o (não) exercício de poderes de autoridade, pois a condenação à não prática de um acto administrativo relaciona-se ainda com o exercício de poderes de autoridade. E curiosamente, abstraindo agora da inefectividade do recurso a esta tutela, caso durante o processo sobrevier o acto administrativo “maldito” que se visava precisamente evitar, ocorre inutilidade superveniente da lide, sendo a questão transferida para o campo da acção administrativa especial, a menos que haja aplicação analógica do artigo 63.º do CPTA.

É também curioso que o recurso à acção de condenação à prática do acto administrativo seja amplamente referida como contendendo com o exercício da actividade administrativa, como tendo de ser bem manejada à luz da margem de livre decisão administrativa, quando também a acção inversa, de condenação à abstenção da prática de um acto implica também uma forte intromissão na decisão administrativa, podendo inclusive esvaziar sorrateiramente o campo da tutela reactiva de impugnação de actos administrativos.
Assumem pois relevância determinados condicionamentos à procedência deste pedido inibitório, como o facto de o tribunal só poder condenar a Administração a abster-se de praticar um acto administrativo impossível, proibido ou quando o particular tem direito à abstenção por parte da Administração, ou ainda quando os pressupostos da prática do acto não se possam verificar. Assim, mais uma vez, como salientam Mário e Rodrigo Esteves de Oliveira, funciona uma lógica do “espelho”: na condenação à prática do acto devido, é necessário que este seja devido/imposto, aqui, que seja indevido/proibido.
Assim, a perplexidade em análise (ainda mais injustificada quando se recorre, como faz Vasco Pereira da Silva, à solução germânica na qual a norma se inspira, e da qual diverge, por partir de pré-compreensões diferentes que depois não respeita, nomeadamente quanto ao próprio conceito de acto administrativo), será necessariamente ultrapassada quando se tenha assente o carácter excepcional, como também salienta o autor, do recurso a esta tutela preventiva. Assim, apesar de se ter em vista a não prática de um acto administrativo, como visto, esta apenas será procedente quando haja um interesse em agir qualificado, decorrente de situações limitadas e muito específicas, visando não perturbar o normal funcionamento da actividade da Administração executiva, sendo preponderante a tutela reactiva e cautelar, a última podendo também ser coordenada com a tutela preventiva a título principal, nos casos em que do conflito entre interesses resulte a sua preponderância.
Conclui-se pois que, curiosamente, o aspecto que mais suscitava perplexidade, ou seja, a inserção de um pedido relativo a um acto administrativo no âmbito da acção administrativa comum, parecendo misturar a lógica dicotómica das acções, acaba por encontrar alguma justificação, na medida em que é ele próprio um indício de que o recurso a esta tutela é excepcional: quando se trata de um acto administrativo, a tutela será primacialmente reactiva, como decorre do mecanismo de ponderação atrás exemplificado. A inserção da tutela preventiva relativamente à não prática de um acto administrativo em sede de acção comum visa precisamente alertar para o seu âmbito restrito e excepcional. Logo, a “desarrumação” quanto às acções, que à partida parece apenas incongruente, acaba por permitir destacar as especificidades desta manifestação da acção inibitória.

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