sábado, 13 de dezembro de 2008

NO XADREZ JURÍDICO-ADMINISTRATIVO, QUANTAS CASAS DEVE ANDAR O PEÃO?

A actual Constituição da República Portuguesa, (adiante CRP), assegura o princípio da tutela jurisdicional efectiva nos termos do artigo 20.º, n.º 1.

Este artigo tem aplicação prática no âmbito do contencioso administrativo, e foi a pedra de toque a toda a reforma que trouxe à luz do dia o Código de Processo nos Tribunais Administrativos (adiante CPTA) que temos hoje.

O presente comentário incidirá na análise do meio de tutela jurisdicional que permite a impugnação de normas, traduzindo no CPTA a imposição constitucional do artigo 268.º, n.º 5 da CRP e apresentando-nos naquela sede, cinco artigos específicos.

Em primeiro lugar, dispõe o artigo 72.º do CPTA que qualquer norma emanada ao abrigo de disposições de direito administrativo pode ser impugnada. E pode sê-lo com base em vícios próprios ou vícios do procedimento de aprovação da norma. Podemos pois impugnar a norma desde o acto que a gerou.

Importante salientar é a ressalva a nível de âmbito que faz o número 2 do citado artigo 72.º ao explicar que não se trata aqui de declarar a ilegalidade de leis por desconformidade com outras “parametricamente superiores” a essas, na expressão de Gomes Canotilho.

Trata-se sim de impedir, no caso concreto, ou com força obrigatória geral, como veremos, que uma norma produza efeitos jurídicos.

Ora aqui chegados, é premente a análise do artigo 73.º do CPTA.

Antes de mais, quem está legitimado para pedir esta declaração de ilegalidade da norma?

O âmbito de aplicação é bem amplo ao permitir que qualquer particular que “seja prejudicado pela aplicação da norma ou possa vir previsivelmente a sê-lo no futuro”, ou seja aquele que, titular de um interesse directo e pessoal na relação material, alegue ter sido lesado nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos. Temos portanto que o particular que pode impugnar actos administrativos que o lesem nos termos do artigo 55.º, n.º 1, alínea a) do CPTA, também pode impugnar normas que o lesem “se directa e pessoalmente”.

Cabe definir o que se entende por directa e pessoalmente. Estas duas expressões têm vindo a ser densificadas nomeadamente pela justiça europeia, em acórdãos como o acórdão “Plaumann”, “Jego-Queré I” ou mais recentemente no acórdão “UPA”.

Interesse directo, haveria quando fosse negado ao particular, um direito ou lhe fosse imposta uma obrigação. Pessoal, se ele puder ser individualizado de tal forma que haja uma circunstância que o caracterize e o diferencie face a todos os demais particulares.

A jurisprudência dominante na justiça europeia, é, por actuar num domínio mais vasto e para já com menos estrutura física e humana do que a existente no âmbito nacional, bastante restritiva no que se entende por interesse pessoal.

Entendemos pois que é de boa razão que a expressão interesse pessoal tenha uma interpretação ampla, por forma a que não negue ao particular a possibilidade de aceder à justiça administrativa e possa fazer valer o seu “direito garantia”, na expressão de Vieira de Andrade, à tutela jurisdicional efectiva.

Também legitimados estão os “autores populares”, ou seja aqueles a que a lei faz referência no artigo 9.º, nº 2 do CPTA. Dada a amplitude desta abertura no âmbito da legitimidade, respeita-se assim o direito à tutela jurisdicional efectiva plasmado no artigo 20.º da CRP.

Mas ainda é autor legitimo o MP, órgão garante do interesse público e da defesa da legalidade do ordenamento jurídico. Adiante veremos como.

Em segundo lugar, este é um sistema original, ao permitir que se impugne a título principal a validade de uma norma, e é sem sombra de dúvida de forte inspiração constitucional, fazendo a distinção clara entre uma possibilidade de desaplicação no caso concreto, ou seja, uma apreciação incidental semelhante à fiscalização concreta e à excepção de ilegalidade de inspiração comunitária, e uma declaração com força obrigatória geral, semelhante à fiscalização abstracta sucessiva, que fulmine a norma e a faça desvanecer da ordem jurídica.

Também aqui faz a lei distinção quanto aos poderes de actuar de cada um dos abstractamente legítimos autores.

O artigo 73.º, do CPTA, faz claramente prevalecer em legitimidade o órgão jurídico garante do interesse público sobre o particular neste tema.

Em primeiro lugar porque permite ao MP pedir ao tribunal a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral a requerimento e até oficiosamente, e impede esta faculdade aos particulares.

Estes, apesar de autores legítimos em abstracto, não têm, no entender do legislador administrativo, dignidade bastante para que o possam fazer. Discordamos desta opção legislativa.

E entendemos assim, pois quem avalia da correcção e oportunidade deste pedido é sempre um tribunal especializado em Direito administrativo, órgão de soberania, nos termos do artigo 202.º da CRP.

E não se diga que se restringe esta possibilidade ao MP pois estará em melhores condições técnicas e por isso melhor preparado para pedir ao tribunal que julgue a norma com força obrigatória geral, pois cada caso apresentará um autor, e este poderá ter certamente meios e preparação técnica que o permitam questionar pertinentemente o tribunal.

Ademais, é o particular, por extrema que seja a pertinência do pedido que pretenda fazer ao tribunal, impedido de o fazer, apenas porque não é da sua essência imediata ser o guardião da legalidade do ordenamento.

Ora isto não se pode aceitar. Num Estado de Direito onde se pretende que exista uma presunção de constitucionalidade, e no caso sub judice uma presunção de legalidade, nenhum agente jurídico, particular ou não, poderá ser apartado da essencial tarefa que é contribuir para que toda a situação em que essa pretensão deva ser ilidida, assim aconteça.

Caso contrário, teremos que assumir que um dia viveremos num sistema que necessitará de uma declaração da legalidade das normas, um pouco ao jeito do que acontece no sistema brasileiro com a declaração de constitucionalidade. Esperamos não ir no futuro por tal caminho, por considerarmos que esvazia do nosso ordenamento a essencial segurança e certeza jurídica que conformam a acção e escolha do cidadão.

Posto isto, queremos salientar os números 4 e 5 do artigo 73.º, ora analisando.

Aqui, mais uma vez se demonstra o dever funcional que cabe ao MP de pedir a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral.

Mas, e aqui muito bem esteve o legislador ao incluir neste artigo um número 5, este conhecimento deve ser transmitido pela secretaria ao MP, oficiosamente, para que este cumpra o seu dever funcional.

Tal função, para seja estritamente oficiosa, e exequível, necessita por certo de uma estrutura informática capaz de transmitir um comando ao MP, para que cumpra o seu dever funcional. Na prática isto é apenas possível, num sistema em que a interacção entre os tribunais e o MP é estreita e sem dificuldades estruturais.

É, na sua formulação de regime, um sistema a aplaudir.

Temos pois que o particular e o autor popular não têm acesso, sem a colaboração do MP à declaração com força obrigatória geral, de uma norma administrativa que já tenha até sido julgada ilegal, ao lhes serem exigidas, para que estejam legitimados, as três desaplicações no caso concreto.

Se o juiz é órgão supremo da aplicação da justiça, porque razão se tem que esperar que seja suscitado e decidido pelo Tribunal, que aquela norma é ilegal em 3 casos concretos?

Como dizíamos há pouco, este regime é, em boa parte, decalcado do regime constitucional presente nos artigos 281.º, da CRP e 82.º da Lei do Tribunal Constitucional (adiante LTC), e pretende a nosso ver ser um complemento a este regime, pois que como supra referimos o artigo 72.º, n.º 2, apenas exclui os fundamentos já nestes artigos enunciados.

Assim, e pensamos que meramente por se pretender um certo sentido de coerência no sistema jurídico, se mantém a exigência, para aqueles casos, da desaplicação em três casos concretos.


Temos agora outra questão. Estranhamente, ou não, se interpretarmos este regime, no sentido de que não pretende de forma alguma equiparar o particular ao MP, neste âmbito, o número 2 do artigo 73.º, só permite que verificada a ilegalidade da norma, ela seja desaplicada ao caso concreto e que, a nosso ver de forma grave, permaneça ilegalmente na ordem jurídica, e possa vir a lesar outros particulares. Viola este número, no dizer de Vasco Pereira da Silva, o Direito Europeu, nomeadamente o acórdão Kühne, violando também o princípio da não contradição e o princípio da unicidade da administração.

Se a norma é geral e abstracta, por definição, e se se pretende aplicar a um conjunto abstractamente definido de casos, através de mero exercício subsuntivo, não deve continuar a produzir efeitos na ordem jurídica se já se aferiu que não lhe é possível, assim formulada, produzir legalmente esses efeitos.

Compreende-se a necessidade da existência de uma diferença entre a mera desaplicação concreta e a declaração com força obrigatória geral da ilegalidade da norma. Mas porquê então não ser remetida oficiosamente ao MP uma vez tendo havido uma desaplicação no caso concreto a norma para que este, analisando-a, suscite a apreciação do tribunal? Para quê criar uma situação de insegurança jurídica e de dúvida sobre a legalidade de uma norma, situação que pode perdurar sem prazo na ordem jurídica?

Não queremos deixar ainda de notar, que sendo prevista legitimidade ao autor popular, para que peça a desaplicação da norma com fundamento num vício próprio ou decorrente do seu processo de aprovação, apenas se estatua a sua desaplicação inter partes.

Como se consegue aqui o respeito e compatibilidade desta norma com a norma da lei da acção popular, aprovada pela Lei 83/95, de 31 de Agosto, que estatui no número 1 do artigo 19.º, que verificada a ilegalidade, terá que haver “eficácia geral” inerente a essa verificação?

A nosso ver, há incompatibilidade e outro efeito não pode ser retirado que o decorrente do principio lex posterior derrogat, a não ser que se demonstre a especialidade da norma constante da lei da acção popular, o que a meu ver é possível devido ao âmbito específico que esta compreende e à imposição constitucional de tal legitimidade.

Nos dizeres de Alexi e Dworkin, a norma, ou constitui uma regra ou um principio. Estando neste caso presentes a uma regra, concluiremos pela invalidade da regra do CPTA face à regra da lei da acção popular.

Iríamos ainda mais longe. Atingido um estádio de densificação máximo do direito à tutela jurisdicional efectiva, só se poderia dizer que este não estaria a ser lesado, se o particular pudesse, tal como o MP, fazer uso da faculdade atribuída a este no numero 3 do artigo 73 do CPTA.

Pedro Alves defende, numa perspectiva de jure condendo, que se revoguem as disposições da lei da acção popular relativas ao contencioso administrativo e que estas sejam absorvidas pelo CPTA.

Não nos opomos a tal solução desde que não seja prejudicada a essência do artigo 19.º da referida lei, ou seja que se permita o carácter erga omnes da decisão jurisdicional pedida pelo autor popular.

De resto, o regime da impugnação de normas apresenta as tradicionais soluções de regime já há muito estabilizadas na nossa ordem jurídica.

O artigo 74.º, não exige prazo para a impugnação da norma, podendo ser pedida a declaração de ilegalidade durante a sua vigência, ao jeito do que acontece nos ora complementados artigos 281.º da CRP e 82.º da LTC.

No artigo 75.º do CPTA, temos a manifestação do principio de jure novit curia, o que se compreende tendo em conta que o juiz é o guardião aplicativo da ordem jurídica.

Por sua vez, evita-se, no artigo 76.º, a criação de um vazio jurídico no ordenamento, que derivasse da declaração de ilegalidade com força obrigatória geral ao se estatuir a repristinação de normas revogadas pela norma ilegal.

E admite-se também a utilização pelo tribunal da figura das sentenças manipulativas, no artigo 76.º, nºs 2 e 3, plasmada pelo legislador constitucional no artigo 282.º, n.º 4 da CRP e com os mesmos pressupostos de utilização lá presentes, podendo ressalvar o tribunal o caso decidido administrativo.

Esta possibilidade é mais um argumento para a defesa de que este regime administrativo, mais não é do que um complemento a um regime constitucional já existente e não pretende ser inovador ou constituir qualquer elixir interpretativo para resolução de insuficiências desse regime constitucional.

Analisado que está o regime, fica patente que o legislador pretendeu criar um regime que reforçasse a tutela jurisdicional efectiva do artigo 21.º da CRP.

Boa parte da doutrina nacional, da qual destacamos Vasco Pereira da Silva, Carla Amado Gomes e em recente artigo Pedro Alves, consideram o supra analisado artigo 72.º passível de inconstitucionalidade.

Pelo supra exposto, aderimos a tais entendimentos.

Posto isto, não queremos de forma alguma terminar o comentário sem nos referirmos em especial à última parte da afirmação do ilustre professor Vieira de Andrade.

Quem olha para a revogada Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (adiante LPTA), e tendo sido sustentado o que supra se sustentou, não se pode deixar de criticar o retrocesso que, no âmbito específico da legitimidade do particular, o moderno CPTA trouxe ao ordenamento jurídico-administrativo português.

O artigo 66.º da LPTA, ex vi artigo 63.º do mesmo diploma, era claro ao legitimar o particular lesado ou que o potencialmente viesse a ser a pedir a declaração com força obrigatória geral da norma administrativa sem que tivesse de esperar pela existência de três casos concretos de desaplicação, nunca lhe sendo, no entanto, obrigatório pedir a declaração com força obrigatória geral se tivesse conhecimento de um tal caso, o que se compreende, devido à evidente diferença ôntica entre o particular e o MP.

No entanto, quanto ao referido artigo 63.º, não poderemos deixar de referir que ao remeter para o artigo 51.º, alínea e), do ETAF, a LPTA continha um regime dual e arcaico, ao não ter um sistema de pedido de declaração de ilegalidade e um recurso de normas regulamentares unificado, como acontece actualmente e bem no CPTA, no âmbito da acção administrativa especial.

A solução que a nosso ver nos parece ser a mais correcta e conforme à constituição, é aquela que permite ao particular pedir ao tribunal a declaração com força obrigatória geral da norma e, nos termos do artigo 112.º, n.º 2 e 130.º, n.º2 do CPTA, a suspensão de eficácia do regulamento que considera ilegal. Só assim se não criará uma situação de presunção de ilegalidade da norma com os efeitos anti-sistema que daí advirão.

Subjacente à expressão “retrocesso” face à LPTA, utilizada por Vieira de Andrade, poderá ainda segundo alguma doutrina uma perda de “legitimação subjectiva dos particulares”, ao se perderem “170 anos de evolução no contencioso autárquico”.

Discordamos desta visão, porque este novo código, ao estatuir uma nova filosofia de acções e fazendo alterações nomeadamente classificatórias iria necessariamente produzir alterações ao nível do encaixe sistemático de cada acção e do conteúdo material que nela estaria compreendido. Em segundo lugar porque este novo encaixe, se em abstracto não nos permite impugnar directamente normas autárquicas permite-nos impugnar as deliberações dos seus órgãos, desde que haja uma lesão ou uma provável lesão para o particular, condição que na LPTA também era necessária.

Não resulta necessariamente, por tal alteração, em nosso entender, uma perda de legitimação subjectiva do particular, e a cada direito não deixa de corresponder, neste novo código, uma acção.

Pretendeu-se talvez, e procurando encontrar a mens legislatoris da qual derivou o CPTA, um pouco paradoxalmente face ao regime objectivista criado, dar num novo código, um papel, a nível de legitimidade, impassível de confusão entre os vários autores da acção sub judice, procurando-se delinear com precisão o estatuto de cada abstracto interveniente processual.

Se assim aconteceu, subscrevo a posição de Vieira de Andrade, levando-a à sua consequência prática, que não pode deixar de ser a constatação de um retrocesso, neste especifico ponto, da ordem jurídico-administrativa, num Código que não conseguiu nascer “sem sequelas”, de um parto objectivamente difícil.

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