quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Comentário à 4ª Tarefa – Instabilidade crónica das Acções relativas a normas

O regime de impugnação judicial de normas administrativas conta com um longo passado de avanços e recuos aos mais variados níveis. Tradicionalmente existia uma tendencial resistência à admissibilidade da impugnação judicial directa das normas administrativas. Tal acontecia por duas ordens de razões, como bem indica o Professor Vieira de Andrade nas suas “Lições”: por um lado, por estarem em causa regras gerais e abstractas, em princípio insusceptíveis de produzirem lesões directas na esfera dos particulares; por outro porque, estando em causa regulamentos governamentais, o tradicional respeito pela autoridade normativa do Governo, muitas vezes expressão de opções políticas ou quasi-políticas, a tal determinava.

Pois bem, estas restrições dogmáticas acabaram por sofrer uma evolução em consequência do reforço das ideias de legalidade administrativa e de protecção dos administrados, bem como da verificação da lesividade efectiva de muitos actos normativos. A própria atribuição de poderes legislativos normais ao Governo português, permitindo uma distinção formal entre os actos legislativos e os actos regulamentares governamentais, determinou o afastamento do argumento da separação de poderes contra a invalidação jurisdicional dos regulamentos centrais.

Apesar de todos os avanços e recuos verificados nesta disciplina em Portugal, foi a partir da revisão de 1997 que passou a existir uma consagração constitucional expressa do direito de impugnação judicial directa pelos cidadãos de normas administrativas com “eficácia externa lesivas dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos”. Ora, a construção normativa deste preceito constitucional não levanta quaisquer dúvidas em relação à sua matriz subjectivista. De facto, o que dela se retira é que o pressuposto base da impugnação judicial directa das normas administrativas é a lesividade de direitos ou interesses subjectivos e não uma suposta ofensa à ordem jurídica, determinante de uma eventual matriz objectivista.

No artigo 72º e seguintes do CPTA encontramos o regime de impugnação de normas administrativas. É da conjugação dos artigos 72º e 73º do CPTA que se retira a admissibilidade de dois tipos de pedidos, sujeitos a regimes diferentes: o pedido de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral e o pedido de declaração de ilegalidade num caso concreto.

De facto, como se conclui da transcrita frase de Vieira de Andrade, existe um desfasamento teleológico na construção dos dois diferentes regimes referidos. No caso da declaração de ilegalidade da norma com efeitos restritos ao caso concreto, o pedido pode ser efectuado pelo lesado ou pelos titulares da acção popular quando a norma produza os seus efeitos “imediatamente”, sem que dependa de um acto administrativo ou judicial de aplicação. Já para a declaração com força obrigatória geral, o pedido só pode ser efectuado pelos particulares interessados depois de a norma ter sido desaplicada em três casos concretos (que tanto podem consistir em processos de impugnação de normas em casos concretos, como em processos de impugnação de actos em que tenha havido desaplicação das normas aplicadas pelo acto) ou pelo Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento das entidades legitimadas para a acção popular (cfr. art. 9º nº 2 CPTA), independentemente da desaplicação da norma em três dos referidos casos concretos.

Ora bem, no direito anterior, ainda no regime da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (LPTA), era possível pedir a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral das normas administrativas, inclusivamente daquelas que não fossem estaduais, independentemente da sua prévia desaplicação em três casos concretos. Nota-se, claramente, que a diferenciação assumida no novo regime, tanto pela intervenção do Ministério Público na impugnação (cfr. art. 73º nº 2 CPTA), como pelas diferentes condições legais de impugnação exigidas aos particulares interessados e ao Ministério Público, como ainda nos efeitos da declaração de ilegalidade com força obrigatória geral (cfr. art. 76º nº 2 e nº 3 CPTA), evidencia um forte cariz objectivista, no sentido de se assumir com um predominante fundamento de defesa do interesse público.

Quando se diz que “o CPTA assegura a protecção plena dos titulares de direitos e interesses legalmente protegidos ao nível do caso concreto, como decorre da imposição constitucional” não se quer dizer que o CPTA cumpriu na sua totalidade o dever de concretização legislativa da imposição constitucional. De facto, existem situações em que para protecção dos direitos do particular e mesmo para garantir a prossecução do interesse público, a determinação de uma sentença com força obrigatória geral, aplicada logo no primeiro caso concreto, seria essencial. Refiro-me a questões de regulação de actividades privadas em áreas de concorrência, no sentido do que refere o Professor Vieira de Andrade nas suas Lições de Justiça Administrativa.

Conclui-se que a regressão jurídica, resultante do novo regime do CPTA, com forte pendor objectivista veio levantar problemas que, na minha modesta opinião, se colocam ao nível de uma possível inconstitucionalidade por omissão, por deficiente e insuficiente concretização do preceito constitucional disposto no art. 268º nº 5. Será esta, portanto, uma questão digna de se levantar e desenvolver.

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