segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Comentário à 4.ª Tarefa - A Legitimidade e as condições de impugnação no contencioso relativo a regulamentos

A criação de mecanismos processuais para controlar a validade dos regulamentos e proteger os direitos dos indivíduos por ele afectados constitui um corolário necessário da proliferação de normas jurídicas emanadas de órgãos administrativos, a qual, por sua vez, resulta das transformações por que passaram as formas de actuação administrativa. Com efeito, a multilateralidade surge como a característica mais marcante da Administração do Estado Pós-social, resultante de actuações genéricas, como os instrumentos de planeamento e os regulamentos administrativos, além, claro, dos actos administrativos de eficácia múltipla.

Por conseguinte, o reforço das ideias de legalidade administrativa e de protecção dos administrados, associado à verificação da lesividade efectiva de muitos actos normativos, conduziu a um aprofundamento do contencioso das normas administrativas e da respectiva admissibilidade da sua impugnação.

A impugnação judicial directa de normas administrativas, designadamente de regulamentos, consiste num marco recente do Direito Português, iniciada depois da reforma da justiça administrativa de 1984/85. Com a revisão constitucional de 1997 passou a ter consagração expressa no art. 268º da Constituição, no âmbito da garantia da protecção jurisdicional efectiva, um número próprio -o nº5- em que se estabelece o direito de impugnação judicial directa de normas administrativas com eficácia externa, quando sejam lesivas de direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares.

É, pois, à luz desta norma constitucional que se deve avaliar o regime consagrado para a impugnabilidade das normas administrativas.

No processo de impugnação de normas pode pedir-se, a título principal, segundo o art. 72º nº1 do CPTA, a declaração de ilegalidade das normas emanadas ao abrigo de disposições de direito administrativo, com fundamento em vícios próprios (invalidade própria) ou decorrentes da invalidade de actos praticados no âmbito do procedimento de aprovação (invalidade derivada).

Resulta ainda dos arts. 72º e 73º do CPTA, que se admitem dois tipos de pedidos sujeitos a regimes diferentes: o pedido de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral e o pedido de declaração de ilegalidade num caso concreto.

Nos termos do art. 72º nº 2, o pedido de declaração com força obrigatória geral nunca pode, porém, fundar-se numa inconstitucionalidade directa, por esse constituir um pedido cujo conhecimento está subtraído à jurisdição administrativa, em função do art. 281º nº1 da CRP, que atribui a competência para a resolução desses litígios ao Tribunal Constitucional.

O art. 73º do CPTA, sob a epígrafe “ Pressupostos” regula a questão controvertida na doutrina da legitimidade e das condições de impugnação de normas.

Começando pela legitimidade para a impugnação de normas, esta pertence a qualquer pessoa que alegue ser prejudicado pela aplicação da norma ou que possa previsivelmente vir a sê-lo em momento próximo (a lesão não tem de ser efectiva, bastando que a ameaça seja real), bem como ao Ministério Público (está em causa a defesa da legalidade), e também, em certos termos, aos actores populares, no âmbito dos valores comunitários referidos no art. 9º.

Por sua vez, as condições legais de impugnação são diferentes, consoante se peça a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral ou com efeitos circunscritos ao caso concreto, em função da análise dos arts. 73º nºs 1, 3 e 4.

Assim, por um lado, a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral só pode ser pedida pelos particulares interessados depois de a norma ter sido desaplicada em três casos concretos, os quais tanto podem referir-se a processos de impugnação de normas em casos concretos (desaplicação por via principal), como a processos de impugnação de actos em que tenha havido desaplicação das normas aplicadas pelo acto (desaplicação por via incidental). Este requisito não é exigido se o pedido for feito pelo Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento das entidades legitimadas para a acção popular.

Por outro lado, a declaração de ilegalidade da norma com efeitos restritos ao caso concreto, isto é, a desaplicação da norma, pode ser pedida pelo lesado ou pelos titulares da acção popular, quando a norma produza os seus efeitos imediatamente, sem depender de um acto administrativo ou judicial de aplicação, não sendo necessária a prévia desaplicação em três casos (art. 73º nº2).

É a este respeito que o Prof. VIEIRA DE ANDRADE formula a afirmação em análise, considerando que «o CPTA assegura a protecção plena dos titulares de direitos e interesses legalmente protegidos ao nível do caso concreto, como decorre da imposição constitucional, mas encara a declaração de ilegalidade das normas com força obrigatória geral como uma questão predominantemente de interesse público, para a qual estabelece soluções de inspiração objectivista, em termos que podem ser susceptíveis de crítica pelo aparente retrocesso operado».

Com efeito, antes da reforma, ao abrigo do direito anterior (LPTA), podia pedir-se a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral dos regulamentos, tal como se podiam impugnar directamente os regulamentos que não fossem estaduais, independentemente da sua prévia desaplicação em três casos concretos. Esta alteração de regime conduziu a uma limitação da impugnabilidade das normas, em nome de umasideia claramente objectivista.

Recapitulando, no actual regime do contencioso dos regulamentos, é o Ministério Público o principal responsável pela impugnação de normas jurídicas (que pode ter lugar sem qualquer condicionalismo, quer se trate de normas exequíveis como não exequíveis por si mesmas e quer tenha havido, ou não, prévio julgamento acerca da sua ilegalidade), enquanto que a intervenção do actor popular e do particular fica condicionada à prévia existência de três casos concretos de não aplicação, de acordo com o regime geral, ou, de acordo com o regime especial, tratar-se de normas exequíveis por si mesmas, situação em que a sentença possui alcance limitado.

O regime descrito constitui, para o Prof. VASCO PEREIRA DA SILVA, fonte de inúmeras questões e contrasensos.

Desde logo, a assimilação do actor popular ao particular, para efeitos de impugnação de regulamentos, submetendo a sua intervenção a condicionalismos mais apertados, e admitir, nos demais casos, que o actor popular (mas não o particular) possa vir a solicitar a intervenção do Ministério Público, podendo vir a constituir-se como assistente. Para este ilustre Prof. não há razões objectivas para este tratamento diferenciado. Por essa razão, e em nome do princípio da tutela jurisdicional efectiva, da congruência do sistema e das regras gerais acerca da possibilidade de intervir como assistente, procede a uma interpretação correctiva do artigo 72º nº 3 do CPTA, no sentido de considerar alargada, também ao particular, a possibilidade de se poder constituir como assistente do Ministério Público nos processos em questão.

Por outro lado, a nova modalidade de declaração de ilegalidade concreta de normas jurídicas é, para o Prof. VASCO PEREIRA DA SILVA, merecedora de reparos, tanto do ponto de vista lógico, como do constitucional, como também do europeu.

Desde logo de um ponto de vista lógico, visto que uma norma jurídica ou é legal ou não é, e se for considerada ilegal, isso é de tal forma ilegal que não pode deixar de projectar-se na respectiva eficácia, pelo que tal juízo de ilegalidade deve valer para todos os destinatários e todas as situações da vida, conduzindo ao seu afastamento da ordem jurídica.

Da perspectiva constitucional, a solução encontrada, do ponto de vista da protecção subjectiva é violadora do direito fundamental de impugnação de normas jurídicas lesivas dos direitos dos particulares (art. 268º nº 5 da CRP), pois, ao estabelecer que a impugnação de normas só tem efeitos concretos, cria uma restrição que afecta a extensão e o alcance do conteúdo essencial do direito (art. 18º nº 3 da CRP), mediante a consagração de um regime mais restritivo do que aquele que antes existia e que foi revogado pela reforma do Contencioso Administrativo.

A declaração concreta da ilegalidade deve considerar-se também inconstitucional, segundo o Prof., por violação de bens e valores constitucionais de natureza objectiva, designadamente os princípios da legalidade (ao admitir que a sentença de um tribunal possa declarar a ilegalidade de uma norma jurídica, mas simultaneamente, deixá-la subsistir na ordem jurídica), da igualdade (ao criar desigualdades inadmissíveis decorrentes da manutenção da aplicação de uma lei declarada ilegal) e do Estado de Direito (já que permite a subsistência da ilegalidade, apesar de ela ter sido declarada pela sentença, pondo em causa os princípios da unidade e da coerência, assim como da certeza e da segurança do ordenamento jurídico.

Finalmente, do ponto de vista europeu, a jurisprudência recente do Tribunal de Justiça da União Europeia (designadamente, sentença Kuhne) tem vindo a consagrar a regra do afastamento da ordem jurídica das decisões públicas ilegais (quer sejam genéricas ou individuais) em detrimento da perspectiva da salvaguarda dos efeitos produzidos, nomeadamente ao estabelecer que o julgamento da ilegalidade de uma norma, por violação do Direito Europeu, não deve permitir a subsistência da sua aplicação na ordem jurídica de um Estado-Membro, mesmo quando ela decorra de uma decisão judicial.

Subscrevendo a posição do ilustre regente desta cadeira, é desejável, numa futura reforma, a generalização do regime da declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, constante do art. 73º nº 1 do CPTA, a todas as modalidades de impugnação de normas jurídicas, independentemente do seu autor, criando assim uma solução capaz de passar pelo crivo da lógica, da Constituição e do Direito Europeu, de forma a obter um contencioso administrativo mais conforme com as exigências de legalidade e de protecção plena dos direitos dos particulares.

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