sábado, 6 de dezembro de 2008

comentário à primeira tarefa

O direito administrativo, é na sua origem, um direito de criação jurisprudencial, elaborado pelo contencioso administrativo. Contencioso este, surgido na revolução francesa, e marcado por três fases principais, associadas a três momentos distintos da evolução do Estado:
- O Estado liberal: justiça delegada.
- O Estado social: transição dos séculos XIX para o XX
- O Estado pós-social.
O contencioso administrativo, instituído com a revolução francesa, rege-se pela confusão entre as tarefas de administrar e de julgar, uma vez que “a justiça administrativa nasceu dentro da administração”. Esta ideia vem reforçada com os artigos 7º do decreto 22 de Setembro de 1789, 13º da lei 16-24 de Agosto de 1790, e 3º da constituição de 1789, proibiam que os tribunais judiciais de interferir na esfera da administração, determinando que os juízes não poderiam, “sob pena de delito, perturbar, seja de que maneira for, as operações dos corpos administrativos, nem citar perante eles os administradores em razão das respectivas funções”.
A justificar esta proibição, os revolucionários franceses invocavam o princípio da separação de poderes, mas fazendo dele uma interpretação errada, segundo a qual, em vez de se reconhecer que “julgar a administração é ainda julgar”, preferia-se considerar que “julgar a administração é ainda administrar” e que a “jurisdição era o complemento da acção administrativa”. Aquilo que se criou em nome do princípio da separação entre autoridades administrativas e judiciais não foi a separação mas sim a confusão entre o poder administrativo e o judicial, o que se erigiu foi um sistema em que o administrador era juiz e o juiz era administrador.
Para perceber isto é necessário analisar as quatro realidades culturais que surgiram com a revolução francesa e que explicam a ratio deste contencioso administrativo:
1) A concepção do Estado e da separação de poderes: o que esta em causa é a criação de um novo modelo de Estado e a separação de poderes é vista como um seu elemento essencial.
Na Inglaterra, a ideia de separação significava considerar cada um dos poderes como autónomo e independente, limitando-se reciprocamente, mas sem que isso significasse a sua integração em qualquer entidade superior, tendo dai resultado a submissão da administração aos tribunais e às regras de “direito comum”. Pelo contrário em França, aquilo que vai estar por detrás de cada um dos poderes é a ideia de Estado. Um Estado “todo-poderoso” que se dissimula por detrás da administração e vai obrigar à criação de um contencioso especial pois é inaceitável o seu julgamento por um qualquer juiz, já que é uma realidade em ultima analise soberana, dotada de “privilégios exorbitantes”. A existência de uma verdadeira “jurisdição” administrativa foi, durante muito tempo, considerada como instância de controlo do sistema de formação de vontade do Estado, e não como um verdadeiro tribunal para fazer valer direitos subjectivos dos indivíduos contra o Estado.
O Estado liberal surge portanto como o resultado da conjugação destas duas visões antagónicas.
Esta concepção francesa da separação de poderes não é alheia a influência de Montesquieu que, ao partir da análise da experiência constitucional britânica vai analisá-la com os olhos de um continental. Ou seja, ele integra e enquadra a separação de poderes no âmbito estadual, considerando que existem em qualquer Estado três espécies de poderes: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito publico e o poder executivo daquelas que dependem do direito civil. Tal como é o Montesquieu a considerar que o poder judicial é aquele através do qual o Estado pune os crimes ou julga os diferendos dos particulares, isto significava que, para este autor, a resolução dos litígios em matéria administrativa não pertencia à orbita dos tribunais. Isto passaria por subtrair o controlo da administração ao poder judicial.
2) A reacção contra a actuação dos tribunais no Antigo Regime: a criação de um contencioso especial para a administração constitui também uma reacção dos revolucionários franceses contra a actuação dos tribunais na fase terminal do Antigo Regime.
O receio dos revolucionários franceses de que os tribunais pudessem colocar entraves à actuação da administração, encontrou clara explicitação no preambulo da legislação de separação de poderes de 1789.
As razões do sentimento geral de desconfiança em relação ao poder judicial eram, portanto, de natureza política e prendiam-se com o receio de que ele pudesse perturbar esta tarefa, que cabia agora a Administração Publica, de apagar as distinções de classes, de costumes e quase de nacionalidades, que o poder real não tinha podido fazer desaparecer.
3) A influência do modelo do Conselho do Rei: quer a proibição aos tribunais comuns do julgamento de litígios administrativos, quer a criação de órgãos administrativos especiais destinados à realização dessa tarefa, já vinham dos tempos do Antigo Regime. É precisamente a tentativa de defender a Administração, traduzida na proibição do seu controlo pelas autoridades judiciais, que vai justificar a criação de órgãos administrativos especiais, como sucede com o Conselho de Estado, inspirado nas instituições do Antigo Regime, e que constitui um retorno à antiga instituição do Conselho de Rei.
Daqui resulta que o Contencioso Administrativo, muito mais do que uma invenção liberal, determinada pelo principio da separação de poderes, é uma herança do Antigo Regime.
Tal como na sociedade do Antigo Regime, a desconfiança em relação aos parlamentos levara à criação do Conselho do Rei, também na França pós-revolucionaria, o receio de que os tribunais judiciais seguissem os exemplos dos parlamentos do Antigo Regime, levou à criação do Conselho de Estado como juiz privativo da Administração.
4) A continuidade no funcionamento das instituições antes e depois da Revolução: circunstância a que não podia ser alheio o facto de se verificar a identidade de muitas das pessoas que desempenhavam funções jurisdicionais num e noutro dos regimes, já que foram juízes formados sob o Antigo Regime, que por volta de 1789-1790, elaboraram o princípio “julgar a Administração é ainda administrar”.
Este período do administrador-juiz vai durar muito tempo e assumir diferentes configurações, que podem ser reconduzidas a três conjunturas principais da sua evolução: Assim, em nome do princípio da separação de poderes, os revolucionários franceses vieram subtrair a administração ao controlo dos tribunais:
- Numa primeira fase (1789-1799), de rigorosa continuidade com o Estado pré-constitucional, o único controlo da actividade administrativa era assegurado pelos próprios órgãos da administração activa (sistema de administrador-juiz)
- Posteriormente (1799-1872), os órgãos de topo da administração activa passaram a decidir em matéria contenciosa sob consulta obrigatória, embora não vinculativa, de um órgão administrativo especificamente instituído para tal, o Conselho de Estado (sistema de justiça reservada)
- Finalmente a partir de 1872, e muito por responsabilidade do prestígio granjeado pelo Conselho de Estado, passou a caber-lhe a ultima palavra em matéria contenciosa (sistema de justiça delegada).
A passagem da “justiça reservada” para a “justiça delegada” representou uma alteração importante do contencioso administrativo na medida em que implicou uma maior autonomia para o órgão fiscalizador, mas isso não significou a mudança de paradigma, tendo continuado a vigorar o modelo do administrador-juiz. E isso por três razões de ordem:
- A justificação dos poderes decisórios do Conselho de Estado em matéria de controlo da administração é feita com base na “delegação de competências”, e não na atribuição de poderes próprios de julgamento.
- O Conselho de Estado continua a ter o estatuto jurídico de órgão da administração, que desempenha simultaneamente funções de natureza consultiva e de julgamento, mesmo se passa a desempenhar a tarefa fiscalizadora com um maior grau de autonomia.
- As decisões do Conselho de Estado vão continuar a ser consideradas como recursos de apelação das decisões dos ministros, de acordo com a lógica do sistema do “ministro juiz”. Assim, o particular lesado impugnava, primeiro, a decisão administrativa perante o ministro competente e, só depois, é que poderia recorrer dessa decisão para “segunda instancia”, que era o Conselho de Estado.
Assim, o princípio da separação de poderes foi objecto de uma profunda reequação, pois o princípio passou a ser entendido como um esquema flexível e historicamente mutável de distribuição racional do poder pelos órgãos públicos. No entanto, esta evolução encontra ainda hoje resistências: em França, por exemplo, a natureza jurisdicional do Conselho de Estado é obra da sua própria jurisprudência e não de qualquer diploma legal; e embora apenas com a consequência da limitação dos poderes dos tribunais administrativos e já não a da sua inserção na administração, continua a fazer doutrina a ideia de que, em certos aspectos, “julgar a administração ainda é administrar”.
Cláudia Vieira Da Silva, subturma 12.

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