domingo, 14 de dezembro de 2008

Compromisso falhado

Decorre do artigo 268.º, n.º 5 da CRP, desde 1997, que “Os cidadãos têm igualmente direito de impugnar as normas administrativas com eficácia externa lesivas dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos”.
A orientação da norma constitucional parece pois, à partida, ser eminentemente subjectivista. Dando cumprimento ao preceito constitucional, o CPTA, no seu artigo 73.º, vem no n.º 1, em sede de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, conferir legitimidade a quem “seja prejudicado pela aplicação da norma ou possa previsivelmente vir a sê-lo em momento próximo…”, ou seja, realçando a suficiência da mera ameaça de lesão, mas impondo ainda como pressuposto a desaplicação da norma por um qualquer tribunal, em três casos concretos, com fundamento na sua ilegalidade. Já no n.º 3 do mesmo artigo é conferida legitimidade ao Ministério Público, enquanto defensor da legalidade [como decorria já do artigo 219.º, n.º 1 da CRP, artigo 1.º do EMP e 51.º do ETAF, e também do CPTA, nos seus artigos 55.º, n.º 1, alínea b) e 68.º, n.º 1, alínea c)] seja oficiosamente ou a requerimento de qualquer entidade constante do artigo 9.º, n.º 2, não sendo neste caso necessário que tenha havido previamente recusa de aplicação em três casos concretos. Assim, neste caso em que não há, claro está, uma lesão, constituindo aquilo a que Mário e Rodrigo Esteves de Oliveira chamam uma “acção pública desinteressada”, não se coloca o pressuposto de desaplicação em três casos concretos para que a norma possa ser declarada ilegal com força obrigatória geral.
Já se olharmos antes para casos de produção imediata de efeitos, ou seja, quando a norma não está na dependência de um acto administrativo ou jurisdicional de aplicação, isto é, quando seja exequível por si mesma, a legitimidade e condições legais de impugnação variam face às atrás descritas quanto às normas não exequíveis. Neste caso, é o lesado ou também o actor popular, nos termos dos interesses que lhe cumpra proteger, sem necessidade de aguardarem por três decisões de desaplicação, que podem requerer a declaração de ilegalidade… sem força obrigatória geral, ou seja, circunscrevendo-se os efeitos da declaração ao caso concreto.
Logo, é vedado ao particular, que será o efectivo prejudicado pela norma, a possibilidade de suscitar a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral quando não se encontrarem reunidos três casos concretos de desaplicação da mesma… o que significa que mesmo com dois casos concretos de desaplicação, o particular não pode usar mão deste meio, parecendo tal restrição ir contra a amplitude com que a impugnação de normas foi constitucionalmente desenhada. Resta-lhe pois pedir a declaração de ilegalidade com efeitos restritos ao caso concreto. A legitimidade para requerer esta declaração encontra-se alargada também ao actor popular (o qual, na declaração de ilegalidade com força obrigatória geral apenas a pode requerer ao Ministério Público, constituindo-se então assistente).
Assim, e como já referido, as condições legais de impugnação diferem consoante a própria legitimidade activa. Logo, como salienta Vieira de Andrade, os direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares são plenamente protegidos quando se trata da declaração com efeitos restritos ao caso concreto: não há qualquer requisito adicional, bastando que os efeitos da norma se produzam imediatamente e que lesem o particular, assim se respeitando o artigo 268.º, n.º 5 da CRP; já quanto à declaração com força obrigatória geral, como o próprio autor salienta, desta ressalta um cariz mais objectivista, perspectivando a questão como de interesse público, permitindo a intervenção mais facilitada do MP. Os traços objectivos do regime passariam assim pela legitimidade activa conferida ao MP, não dependente de nenhum interesse individual concreto, levando a uma decisão com tendenciais efeitos erga omnes.

Constituirá esta solução um retrocesso face ao regime anterior? À luz da LPTA e da sua dualidade de meios processuais quanto à impugnação de regulamentos, a declaração de ilegalidade de normas administrativas impunha que a norma ou fosse exequível por si mesma, ou tivesse sido declarada incidentalmente ilegal em três casos, sendo que o meio especial de impugnação de normas, o qual se aplicava apenas aos regulamentos da administração local, não estava sujeito a este requisito de desaplicação em três casos concretos, suscitando situações que, segundo Vasco Pereira da Silva, seriam mesmo esquizofrénicas. Hoje, quando a norma for imediatamente aplicável, é possível requerer a sua ilegalidade, sem necessidade de três casos de desaplicação, mas com efeitos…apenas no caso concreto. Esta alteração do regime pela aproximação à fiscalização constitucional de normas, se por um lado apresenta vantagens, na medida em que implica a retroactividade dos efeitos da declaração, a repristinição das normas revogadas (salvo razões de segurança jurídica, equidade ou interesse público de excepcional relevo que levem à produção de efeitos apenas para o futuro), por outro lado denota a maior relevância objectivista do meio processual, ao restringir fortemente a possibilidade de impugnação com força obrigatória geral por parte do particular.
Se é certo que através da declaração de ilegalidade com força obrigatória geral , devido à aproximação ao regime constitucional, o particular se encontra mais tutelado a nível dos efeitos da declaração do que anteriormente (onde os efeitos eram meramente ex nunc, sendo a excepção fixar os efeitos da declaração em momento anterior), nomeadamente, como salienta Vieira de Andrade, através da “eliminação dos efeitos não consolidados das normas”, tirando situações excepcionais, certo é que a via de acesso a este se tornou mais difícil. E não se argumente que ainda assim a construção da impugnação de normas é mais favorável ao particular, permitindo-lhe que mesmo quando tenha havido três desaplicações da norma, possa ainda assim apenas requerer a declaração de ilegalidade limitada ao caso concreto, quando o Ministério Público, na mesma situação, tem o dever de propor a acção com força obrigatória geral (artigo 73.º, n.º 4)”.
Parece consequentemente, dados os diferentes requisitos consoante a legitimidade do autor, que a afirmação de Mário e Rodrigo Esteves de Oliveira, em anotação ao artigo, de que “O legislador não quis, como se vê, que se enveredasse por um processo de impugnação judicial de normas jurídicas, com o relevo ordenamental que isso tem, sem que houvesse já algum prenúncio consistente da sua ilegalidade” apenas é verdadeira quando se trate de um particular, que venha a ser lesado pela produção de efeitos da norma, pois quando se trata do MP, não é necessário qualquer “prenúncio consistente da ilegalidade da norma”. Assim, a justificação para esta diferenciação de condicionamentos legais parece decorrer do facto de no pedido de declaração de ilegalidade com efeitos circunscritos ao caso concreto não ocorrer a erradicação da norma do ordenamento, sendo consequentemente menores as cautelas a ter. Assim, a única justificação para a distinção operada reside no facto de o MP, enquanto defensor da legalidade, não poder ficar dependente da recusa de aplicação da norma em três casos concretos para poder promover uma acção que lhe permita restaurar a legalidade do ordenamento, enquanto que, quando é um particular a requerer a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, porque (presumivelmente) prejudicado, precisamente porque nesse caso prossegue um interesse próprio e não directamente um interesse público preponderante, é necessário equacionar os motivos de segurança jurídica ligados à declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, tal como aplicáveis à fiscalização da constitucionalidade.
No regime anterior, de maior abertura à possível declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, não era requisito a desaplicação da norma em três casos concretos, logo o princípio da segurança jurídica era acautelado através da mera produção ex nunc de efeitos; já no novo regime, tendo havido uma alteração do regime de efeitos da declaração com força obrigatória geral, o respeito pela segurança jurídica tem de ser salvaguardado de outra forma: através da restrição no acesso a este meio processual. Daí a exigência de desaplicação em três casos concretos. O equilíbrio pensado pelo legislador, que pode parecer pouco tutelador dos interesses dos particulares, resulta precisamente do facto de paralelamente haver a possibilidade de pronúncia com efeitos restritos ao caso concreto: o legislador entende que o interesse do particular se encontra devidamente acautelado quando ele consegue judicialmente que determinada norma não se aplique no seu caso concreto. Agora, provocar a expurgação da norma do ordenamento, “reintegrando a ordem jurídica no seu conjunto”, só quando haja um fundamento forte, assente na sua repetida desaplicação. A prova de que o interesse do particular se encontra devidamente acautelado com a impugnação restrita ao caso concreto reside no próprio facto de mesmo havendo esta tripla desaplicação, poder o particular optar ainda assim por requerer apenas a declaração de ilegalidade sem força obrigatória geral, nomeadamente para evitar uma decisão de limitação de efeitos.
O Ministério Público, como salienta Vasco Pereira da Silva, é então hoje o actor principal do contencioso de impugnação de normas: sem condicionalismo algum, seja a norma exequível ou não; já o particular apenas pode impugnar a norma não exequível havendo três casos concretos de desaplicação, e quando se trate de norma exequível, se aqueles três casos não estiverem reunidos também só pode requerer a declaração de ilegalidade com efeitos circunscritos ao caso concreto. Segue este regime também o actor popular, sem interesse directo na demanda. O actor popular? A ponderação anteriormente efectuada e justificada à luz do interesse público e defesa da legalidade, no contexto de primazia da vertente objectivista do contencioso, dado tratar-se de impugnação de regulamento, de uma norma geral e abstracta, não permite compreender a equiparação do actor popular ao particular e não ao MP; nomeadamente porque permite ao actor popular, sem interesse próprio na declaração, aceder à declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, através de requerimento ao MP, quando neste campo o particular, presumivelmente ou efectivamente prejudicado por uma norma ilegal, não desaplicada em três casos concretos, não a pode requerer nem constituir-se assistente do MP, o que levou mesmo Vasco Pereira da Silva a propor uma interpretação correctiva do artigo 72.º, n.º 3.
Facilmente se compreende como o regime da impugnação de normas, como está actualmente desenhado, impondo diferentes condicionamentos consoante a legitimidade em causa, implica uma forte restrição ao princípio da tutela jurisdicional efectiva tal como configurado no artigo 268.º, n.º 5, ao originar um contencioso regulamentar que comparado com o regime anterior, assume uma faceta mais objectivista e restritiva, que descura a dimensão relevante de afectação da esfera dos particulares por parte dos regulamentos, nomeadamente quando sejam exequíveis por si mesmos.
O regime actual de impugnação de normas tem consequentemente uma natureza intermédia, mas em que predominam traços objectivos. Assim, como salienta Pedro Alves, os dois meios processuais em que se traduz a impugnação de normas têm traços objectivistas e subjectivistas, sendo que no caso da declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, assume preponderância o elemento objectivo, já que há uma restrição da legitimidade à existência de três casos de desaplicação da norma, aliado à legitimidade conferida ao MP e à função de reposição da legalidade pela erradicação da norma do ordenamento, apesar de este meio partir da situação de uma lesão efectiva ou previsível de direitos de particulares. Relativamente por sua vez à declaração sem força obrigatória geral, prepondera o traço subjectivista, culminando mesmo na restrição dos efeitos precisamente ao caso do autor lesado pela norma, a par porém de aspectos objectivistas, como a legitimidade popular.
Representando um retrocesso face ao regime anterior, concordo com Pedro Alves quando salienta que “Globalmente, o sistema de impugnação de normas regulamentares pelos tribunais administrativos, assenta claramente no compromisso entre a tutela dos direitos subjectivos dos particulares e a reposição da legalidade violada, compromisso esse que se traduz no predomínio objectivo e subjectivo dos processos dos artigos 73.º, n.º 1 e 73.º, n.º 2, respectivamente”. Compromisso entre a vertente objectivista e subjectivista do contencioso regulamentar. Compromisso inconstitucional e um retrocesso quando comparado com o regime anterior. Compromisso falhado.

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