segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

A última carta na manga.


[Delimitação da Intimação para Protecção de Direitos, Liberdades e Garantias]





Introdução

A discussão sobre a forma de efectivação da tutela jurisdicional dos direitos, liberdades e garantias exigida constitucionalmente (e mesmo internacionalmente, nomeadamente no que resulta da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e da jurisprudência dos órgãos destinados à efectivação do seu cumprimento) não é uma novidade; não decorre sequer unicamente da revisão constitucional de 1997, apesar de ter sido esta a dar azo à criação da figura da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, ora em estudo.

Efectivamente, tendo todo o debate doutrinal e pré-legislativo por base o direito de acesso aos tribunais, entendido de forma cada vez mais alargada de modo a abranger o direito dos particulares ao acesso a mecanismos de tutela das situações de urgência, coloca-se já, pelo menos desde 1989, a questão da viabilidade da criação de uma acção de amparo. Foram apresentadas várias propostas tendentes à introdução deste meio processual na ordem jurídica portuguesa para garantir a concretização do comando constitucional do artigo 20º, até com base em estudos de direito comparado, mas nenhuma procedeu.

Em 1997, a Constituição da República Portuguesa (CRP) passou a incluir, no n.º 5 do referido artigo, uma disposição que elevava a tutela das situações de urgência a um nível mais exigente. Dispõe o referido normativo que "para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos". Sublinhe-se: a CRP já não se basta com uma tutela cautelar; antes exige a existência de meios processuais que garantam uma decisão de mérito definitiva sobre causas em que esteja em jogo um direito, liberdade ou garantia ameaçado ou efectivamente violado.

Como sublinha Vasco Pereira da Silva (em O Contencioso Administrativo como Direito Constitucional Concretizado ou Ainda por Concretizar (?), 1999, pp. 5 e ss.), a concretização dos direitos fundamentais não é possível sem que existam meios contenciosos adequados que assegurem a sua tutela plena e efectiva. Nas palavras de Ana Sofia Firmino, isto implica uma "postura activa" do Estado (Processos Urgentes, in Novas e Velhas Andanças do Contencioso Administrativo, 2005, pág. 359), embora essa postura não seja objectivamente definida. Quer isto dizer que a CRP impõe que haja uma acção estatal, mas não especifica que acção deve ser essa. E, no âmbito da tutela urgente dos direitos, liberdades e garantias, o leque de opções era bastante vasto. Basta olharmos para outros ordenamentos jurídicos europeus para encontrarmos soluções diversas entre si, mas com o mesmo objectivo de protecção dos direitos, liberdades e garantias.

No presente ensaio, não nos propomos analisar pressupostos processuais, tramitação ou poderes de cognição do juiz, por óbvia limitação de espaço; porque é necessário optar por apenas uma parte da análise feita à figura, escolhemos traçar os limites em torno da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias – mostrar onde começa e onde acaba, sem nos preocuparmos com a forma como se desenrola.

Começaremos por ver muito rapidamente em que consistem os meios processuais adoptados nesta sede em Espanha e França, apenas por motivos de contextualização (1); de seguida, debruçar-nos-emos sobre a figura portuguesa da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias (2). Após uma breve apreciação geral do meio processual, tentaremos concretizar o conceito de direitos, liberdades e garantias para efeitos de preenchimento do objecto processual (2.1.) e, seguidamente, dedicar-nos-emos à delimitação da figura face a outras acções do contencioso administrativo português, com destaque para as providências cautelares (2.2.).



1. A protecção dos direitos, liberdades e garantias no direito comparado

a) A solução espanhola

Em Espanha, a Constituição consagra uma ampla tutela dos direitos fundamentais, concretizada quer a nível difuso, quer a nível concentrado, e permitindo aos particulares o acesso directo ao Tribunal Constitucional.

Tem sido o procedimiento especial para la protección de los derechos fundamentales de la persona o instituto mais invocado como exemplo para defender a introdução em Portugal da acção de amparo.

Ana Sofia Firmino aponta, referindo-se à obra de García de Enterría e Tomás-Rámon Fernández, que os tribunais ordinários conferem um "primeiro nível de protecção", à qual se sobrepõe o recurso de amparo, mediante o qual se confere à protecção dos direitos fundamentais um cunho constitucional.

Neste procedimiento, vigoram os princípios da preferência e da sumariedade; o primeiro significa que se estabelece um critério de prioridade na tramitação, enquanto o segundo implica a redução de prazos e concentração de trâmites.

O objecto deste processo especial "está limitado à protecção dos direitos fundamentais e liberdades públicas (…), restringindo-se unicamente à comprovação de que um acto do poder público afecta ou não os direitos fundamentais da pessoa. Ou seja, conclui a doutrina espanhola que o âmbito próprio do recurso previsto no artigo 114.º da LRJCA é única e exclusivamente o exame da ofensa do direito fundamental, o que poria, em princípio, de parte qualquer outro assunto de legalidade ordinária que pudesse afectar o acto." (Ana Sofia Firmino, ob. cit.) Contudo, existe uma certa abertura do preceito, no sentido de permitir a análise de questões de legalidade intrinsecamente ligadas à violação do direito fundamental. O que se exige é que não se vá para além deste âmbito.

O procedimiento especial coexiste com o processo ordinário, podendo inclusivamente ser intentado em simultaneidade com ele, e mantém-se na disponibilidade dos particulares enquanto mera faculdade.

Especial destaque merece o requisito da obrigatoriedade de prévio esgotamento das vias administrativas de recurso hierárquico.

b) A solução francesa

Em França, foi recentemente introduzido no contencioso administrativo o référé-liberté, "processo urgente que tem, precisamente, por objectivo dar tratamento às situações de urgência, em caso de violação de liberdades fundamentais pela Administração ou por entidades privadas encarregues da gestão de serviços públicos." (Ana Sofia Firmino, ob. cit.)

Para que seja outorgado o référé-liberté, é necessário que se esteja perante uma situação de urgência, que esteja em jogo uma liberté fondamentale e que haja um atentado grave e manifestamente ilegal contra essa liberdade fundamental. A verificação destes três requisitos tem de ser cumulativa, sob pena de impossibilidade de instauração do processo.

O ónus da prova da urgência cabe, naturalmente, ao requerente; contudo, a jurisprudência francesa tem tentado flexibilizar o conceito de forma a facilitar a admissão dos processos de référé-liberté. Nomeadamente, o Conselho de Estado veio pronunciar-se sobre o assunto, advogando pela abertura do conceito; "a proximidade da situação de risco" torna-se mais importante do que "a determinação do seu grau de gravidade." (Ana Sofia Firmino, ob. cit.)

Os poderes do juiz são muito amplos neste âmbito; de acordo com o artigo L521-2 do Code de Justice Administrative, este pode adoptar "todas as medidas necessárias à salvaguarda de uma liberdade fundamental". Obviamente, o juiz está sujeito a ponderações de proporcionalidade e, mais importante ainda, está limitado pela provisoriedade das medidas decretadas. De facto, as decisões proferidas no âmbito do référé-liberté podem ser modificadas ou revogadas se surgirem novos elementos de facto e de direito relevantes para o caso. Contudo, na prática, a doutrina francesa vem já referindo o desvanecimento desta característica da provisoriedade e sua substituição tendencial pela definitividade. Na maior parte dos casos, para assegurar o efeito útil da resolução dos litígios, os juízes acabam por decretar medidas que não podem ser outra coisa senão definitivas.

Resta sempre a hipótese de recurso para o Conseil d'État, num prazo de 15 dias.



2. A intimação para protecção de direitos liberdades e garantias


Como muito pertinentemente lembra Carla Amado Gomes, "se é verdade que a essência do Direito – e dos direitos – não depende da susceptibilidade da sua imposição coerciva e da sancionabilidade das condutas prevaricadoras, não é menos certo que a realização de um Estado de direitos fundamentais, num mundo não perfeito, depende de mecanismos adequados à sua tutela, plena e efectiva. (Pretexto, Contexto e Texto da Intimação para Protecção de Direitos, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, vol. 5, 2003, pág. 542)

Estes mecanismos deveriam proteger o particular de actos do poder público, fossem eles no exercício do poder legislativo, executivo ou judicial. Como já referimos, durante muito tempo foi debatida em Portugal a hipótese de introduzir uma acção de amparo para garantir essa tutela. F. Alves Correia resumiu as quatro principais objecções à sua instituição, na sua A Justiça Constitucional em Portugal e em Espanha – encontros e divergências. Segundo este autor, obstariam à adopção do recurso de amparo:

(i) A dificuldade de harmonização com o sistema de fiscalização concreta da constitucionalidade;

(ii) O facto de existirem já no ordenamento jurídico português garantias constitucionais de tutela jurisdicional efectiva dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares face à administração (recurso contencioso com fundamento em ilegalidade, medidas cautelares, impugnação de normas) que consomem uma boa parte da utilidade do recurso de amparo;

(iii) O receio de sobrecarga do Tribunal Constitucional;

(iv) O temor do aparecimento de conflitos entre o Tribunal Constitucional e os restantes tribunais, sobretudo os superiores, quando o recurso de amparo tivesse por objecto decisões judiciais violadoras de direitos fundamentais.


O legislador constituinte de 1997 não tomou posição relativamente a esta questão; mas reafirmou a necessidade de criar um meio de tutela efectiva e definitiva dos direitos fundamentais, deixando nas mãos do legislador ordinário a escolha dos meios. Jorge Miranda, no seu Manual de Direito Constitucional, aponta duas vias que teriam sido possíveis: a opção pelo recurso de amparo, quer este implicasse a intervenção do Tribunal Constitucional a título principal, quer a título subsidiário; ou o reforço dos meios de cognição sumária no âmbito das jurisdições cível e administrativa.

Ora, como constata Carla Amado Gomes, "o contencioso administrativo (…) encontrava-se mais desprovido de vias de tutela célere", pelo que esta era uma das questões que urgia reformar (a juntar a tantas outras…) aquando da revisão do Código de Procedimento Administrativo (CPTA). Nas palavras da mesma Autora, "às solicitações das situações da vida, juntou-se a injunção constitucional".

Refira-se ainda que, no Anteprojecto que esteve em discussão pública em 2000, a protecção dos direitos, liberdades e garantias pessoais (seguidamente abordaremos este detalhe) vinha prevista como uma modalidade urgentíssima de tutela cautelar, e não como um meio processual autónomo.



2.1. Delimitação do objecto – o conceito de direitos, liberdades e garantias


Os direitos, liberdades e garantias dispõem de um estatuto muito especial na ordem jurídica portuguesa. Desde logo, os artigos 1.º e 2.º CRP o comprovam, proclamando a República Portuguesa como um Estado de direito democrático, baseado na dignidade da pessoa humana, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais.

Ora, os direitos fundamentais têm uma eficácia própria: "irradiante", para utilizar a expressão de Sofia David (em Das Intimações, 2005, pág. 113), e são dotados de aplicabilidade directa, vinculando entidades públicas e privadas sem necessidade de mediação. Como afirma a mesma Autora, "(…) da aplicabilidade directa dos direitos, liberdades e garantias decorre a sua especial força executiva. Estes direitos, para além de exigirem (de todos) um dever geral de respeito, impõem às entidades públicas (e a outros particulares que exerçam poderes de autoridade, como, por exemplo, os concessionários) a obrigação de conformação material e formal de toda a sua conduta com obediência e no sentido da promoção, efectivação e protecção dos direitos, liberdades e garantias." Obviamente, não quer isto dizer que a conduta da Administração apareça sempre vinculada em sede de direitos, liberdades e garantias, o que leva a que o juiz deva ter especial cuidado nas suas decisões, de modo a assegurar o respeito pelo princípio da separação de poderes.

Ora, o comando constitucional contido no n.º 5 do artigo 20.º CRP exige a protecção dos direitos, liberdades e garantias pessoais. Contudo, o CPTA, no seu artigo 109º, foi mais longe, suprimindo esta restrição e admitindo a intimação em presença de direitos não pessoais. Esta não é uma solução isolada no direito comparado: como sublinha Carla Amado Gomes, em Intimação por Protecção de Direitos Liberdades e Garantias, "tanto na Alemanha, como em Espanha, a tutela urgente de direitos fundamentais abrange outros direitos que não apenas os de natureza pessoal – v.g., direito de sufrágio, de petição, de associação sindical." Obviamente, essa ausência de originalidade, por si só, não chega para justificar a opção do legislador ordinário. Nem mesmo o sentimento (talvez inconsciente) de necessidade de compensação alegado pela mesma Autora perante o "défice resultante da exclusão da sindicância de decisões jurisdicionais" permite fundamentar juridicamente a solução consagrada no CPTA.

Então vejamos: poderemos apoiar-nos na aplicação genérica do direito de resistência, previsto no artigo 21.º da CRP? Como responde Carla Amado Gomes, em virtude da desinstitucionalização do mecanismo e consequente diversidade de natureza, não se afigura comparável.

Será então assimilável o estatuto preferente atribuído aos direitos, liberdades e garantias no seio da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional? Também aqui estamos perante uma situação absolutamente diversa; trata-se de meras especialidades de tramitação processual.

Como explicar a restrição aos direitos pessoais feita no artigo 20.º, n.º 5 da CRP? Também aqui seguimos o entendimento de Carla Amado Gomes quando se apoia em duas razões essenciais: "por um lado, a especial fragilidade dos bens jurídicos que suportam tais direitos, liberdades e garantias (…); por outro lado, a tendencial indissociabilidade entre estes direitos e o núcleo duro do princípio da dignidade da pessoa humana (…), imperativo fundamental no sistema de direitos e liberdades constitucionalmente arquitectado."

É, então, defensável o alargamento do âmbito da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias nos termos em que o faz o CPTA? Parece que sim, até pela relevância que a própria CRP lhes atribui. Concordamos ainda com Carla Amado Gomes quando ressalva que, contudo, só perante direitos pessoais se poderá sacrificar valores constitucionalmente protegidos (como o princípio do contraditório).

Neste contexto, referem Jorge Miranda e Rui Medeiros na sua Constituição Anotada (vol. 1, 2005, pág. 204) que é "duvidoso (…) que o artigo 20.º, n.º 5, se aplique igualmente aos direitos fundamentais com uma estrutura análoga à dos direitos, liberdades e garantias pessoais, como sucede, por exemplo, com o direito de acesso à justiça administrativa. (…) Todavia, (…) não se vislumbra fundamento para impedir que a lei institucionalize processos céleres e prioritários para defesa de outras categorias de direitos."

Deste modo, concordamos com Jorge Guerreiro Morais e Ana Sofia Firmino quando afirmam que o legislador poderia legitimamente abranger no n.º 1 do artigo 109.º do CPTA "todos os direitos, liberdades e garantias (e não apenas os pessoais previstos no n.º 5 do artigo 20.º da CRP), (…) desde que respeitados os requisitos enunciados no n.º 2 do artigo 18.º da CRP." Do mesmo modo, "aquela disposição abrangerá os direitos fundamentais análogos a direitos, liberdades e garantias quer estejam ou não inseridos no texto constitucional. Uma nota para referir que Carla Amado Gomes hesita em "abranger no âmbito de aplicação da intimação direitos cuja sede não seja o texto constitucional." Permitimo-nos discordar respeitosamente da Autora, na medida em que, de facto, a CRP tem uma vocação extremamente abrangente e que, além disso, o espírito da Lei Fundamental parece ser o da construção de um Estado de direitos com tutela efectiva, o que abrangerá necessariamente aqueles que não se encontram inseridos em texto constitucional, sob pena de valores importantes ficarem de fora do âmbito da protecção merecida.

De qualquer forma, concordamos com o que Carla Amado Gomes afirma quanto à extensão do artigo 109.º do CPTA aos direitos não pessoais – e, mais, parece que a mesma argumentação pode ser utilizada para justificar o que vimos de dizer relativamente aos direitos análogos aos direitos, liberdades e garantias de origem extra-constitucional: «(…) o legislador acompanhou a extensão do âmbito da intimação a direitos não expressamente visados pelo preceito constitucional de um conjunto de contrapesos que salvaguardam a violação de outros direitos e valores constitucionalmente acolhidos. Assim, o regime da intimação (…) permite detectar salvaguardas de quatro ordens, que atestam o respeito pelos critérios tridimensionais de proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2 e 3 da CRP):

(i) Salvaguarda funcional, traduzida na subsidiariedade, quer em face de meios sumários especiais, quer em face das providências cautelares clássicas (…);

(ii) Salvaguarda circunstancial (…), [que] concretiza a necessidade imprescindível do meio jurisdicional para realização de uma posição jurídica fundamental;

(iii) Salvaguarda processual, que visa garantir a ponderação de interesses públicos eventualmente conflituantes com o deferimento do pedido de intimação (…);

(iv) Salvaguarda estrutural, [resultando na] (…) inadequação da intimação a posições jurídicas não individualizadas, vulgarmente conhecidas por "interesses difusos".»


[Note-se que este último ponto faz sentido no raciocínio da Autora, ao qual aderimos, porque esta rejeita a legitimidade popular e pública no âmbito da intimação, por considerar que estão aqui em causa pretensões jurídicas individualizadas. Como a própria refere em Pretexto, Contexto e Texto da Intimação para Protecção de Direitos, "(…) o âmbito da intimação é constituído por direitos estruturalmente individuais, de fruição particular, que não se confundem com direitos de fruição colectiva de bens inapropriáveis. Não há pois, tão-pouco, legitimidade popular para intentar pedidos de intimação."

Neste sentido, a única situação em que o Ministério Público teria legitimidade para agir seria em casos de actos legalmente devidos.]



2.2. Delimitação da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias face a outros meios processuais


a) Distinção relativamente aos restantes processos urgentes

Essencialmente, há três pontos que cabe analisar para proceder à distinção entre as intimações (tanto as intimações para protecção de direitos, liberdades e garantias como as intimações para a prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões) dos restantes processos urgentes, consagrados no Capítulo I do Título IV do CPTA: o objecto, a tramitação e a configuração da decisão.

Quanto ao objecto, resulta bastante evidente que os bens jurídicos defendidos em cada um dos meios processuais em causa são absolutamente distintos. Concretamente, o contencioso eleitoral visa a impugnação de actos administrativos em matéria eleitoral (artigo 97.º CPTA); já o contencioso pré-contratual refere-se a actos administrativos relativos à formação de contratos de empreitada e concessão de obras públicas, de prestação de serviços e de fornecimento de bens (artigo 100.º CPTA).

Entre os dois tipos de intimações, também é fácil distinguir o objecto: o meio processual em estudo visa a defesa de direitos, liberdades e garantias ou direitos de natureza análoga, enquanto a intimação para a prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões se restringe ao direito à informação procedimental e ao direito de acesso aos arquivos e registos administrativos (artigo 104.º CPTA).

Quanto à tramitação, o contencioso eleitoral encontra-se regulado no artigo 99.º e o contencioso pré-contratual no artigo 102.º, ambos estabelecendo especialidades ao regime estabelecido no Capítulo III do Título III, portanto, relativa à acção administrativa especial. A intimação para a prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões segue a tramitação prevista no artigo 107.º: a autoridade requerida tem dez dias para responder após a apresentação do requerimento e, perante a resposta ou decorrido o prazo, o juiz profere decisão.

Já a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias pode seguir uma de quatro possibilidades de tramitação, de acordo com o disposto nos artigos 110.º e 111.º do CPTA, consoante a valoração que o juiz faça da urgência e complexidade dos casos concretos.

Já no que diz respeito à decisão do juiz em cada um dos meios processuais, não será possível estabelecer um critério objectivo de distinção. Na verdade, em princípio não encontraremos decisões sob a forma de intimação no âmbito dos processos urgentes do Capítulo I do Título IV; mas não há diferença significativa entre os dois tipos de intimações previstos no Capítulo II.


b) Distinção relativamente à acção administrativa comum

A intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias pode dirigir-se à adopção ou abstenção de operações materiais, caso em que se aproxima indiscutivelmente da acção administrativa comum. Como destaca Mário Aroso de Almeida (in O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2005, pág. 276), a intimação define-se pelo "conteúdo impositivo, condenatório, da tutela jurisdicional a que se dirige, cobrindo, de modo transversal, todo o universo das relações jurídico-administrativas." A área de sobreposição com a acção administrativa comum ocorre precisamente "quando a tutela do direito fundamental passe pela adopção ou abstenção de uma conduta ou pela realização de uma prestação por parte da Administração que não envolva a prática de um acto administrativo, ou pela adopção ou abstenção de uma conduta por um particular" no âmbito de uma relação administrativa.

Contudo, não se confundem os dois meios processuais, já que a tramitação da acção administrativa comum é mais longa, logo mais solene, concedendo "maiores garantias processuais" e orientando-se para "garantir uma plena apreciação dos factos e do direito das partes", como aponta Sofia David.


c) Distinção relativamente à acção administrativa especial

Também com a acção administrativa especial a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias apresenta pontos de contacto e sobreposição, sendo contudo óbvia a distinção entre os dois processos. Como afirma Sofia David, "não se confundem (…) nem se substituem".

De novo utilizando as palavras de Mário Aroso de Almeida, "quando a tutela do direito fundamental exija a prática de um acto administrativo ilegalmente recusado ou omitido e, portanto, passe pela condenação da Administração à prática do acto devido", estamos indiscutivelmente num âmbito sobreponível ao da acção administrativa especial.

No entanto, o que se disse em relação à tramitação da acção administrativa comum vale nesta sede. "(…) As intimações são processos urgentes, céleres, simples, que visam garantir, única e exclusivamente, determinados direitos, designadamente a defesa de direitos, liberdades e garantias ou direitos fundamentais de natureza análoga, tendo sido criados e estruturados para alcançar apenas esse fim", como refere Sofia David.


d) Distinção relativamente aos processos cautelares

É este o ponto mais crítico no que diz respeito à delimitação da figura da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias. Na verdade, há muito em comum entre os dois meios processuais, estabelecendo-se uma relação de subsidiariedade entre eles. Particularmente problemática é a intimação para a adopção ou abstenção de uma conduta por parte da Administração ou de um particular estabelecida no artigo 112.º, n.º 2, alínea f) do CPTA, que apresenta fronteiras mais ténues com a intimação em estudo. Esta figura veio substituir a antiga intimação para um comportamento, constante dos artigos 86.º a 91.º da LPTA ("Meios processuais acessórios").

O verdadeiro ponto de distinção entre as duas figuras é precisamente a natureza cautelar da intimação para a adopção ou abstenção de uma conduta, porque sem esse critério tornar-se-ia difícil delimitá-las.

De facto, como realça Sofia David, "tanto a intimação para a adopção ou abstenção de uma conduta por parte da Administração ou de um particular prevista no CPTA como as intimações em estudo, têm, todas estas formas de tutela, como características comuns o visarem combater os efeitos do factor tempo na justiça administrativa, o serem processos simples, urgentes, de cognição sumária, e o permitirem obter intimações dirigidas à Administração ou a particulares, designadamente a concessionários." (ob. cit.)

Assim, como distinguir as figuras? Desde logo, a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias é um processo autónomo, enquanto os processos cautelares são instrumentais em relação a um processo principal; a decisão resultante da intimação é definitiva, ao contrário da decisão de admissão de providência cautelar, que é provisória e pode ser alterada, revogada ou substituída no decurso do processo de que depende (vide artigo 124.º do CPTA); o tipo de cognição é também bastante diferente, já que a intimação exige uma "cognição sumária mas suficiente, assente em prova "certa" ou "segura", que permitem decisões definitivas (…) que põe[m] fim à lide, formando caso julgado material" (Sofia David, ob. cit.), diferentemente da superficialidade, probabilidade e verosimilhança com que se basta o processo cautelar.

Deste modo, enquanto a providência cautelar se destina a assegurar o efeito útil da sentença que virá a nascer do processo principal, ameaçada pelo factor tempo, a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias é um processo autónomo e urgente, cuja decisão consome todos os efeitos possíveis, não deixando espaço a eventuais considerações posteriores.

A distinção entre intimações e providências cautelares é extremamente importante, até porque está na base do requisito essencial de admissibilidade das primeiras. Como existe uma relação de subsidiariedade entre os dois meios processuais, "(…) a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias em geral só será admissível se o direito que, em concreto, se encontra ameaçado, não puder ser tutelado com mais eficácia (leia-se: adequação e plenitude) por outra qualquer providência especificamente orientada para a sua defesa. (…) Estando em causa cognições sumárias motivadas pela urgência, o juízo provisório, revisível no próprio processo cautelar em curso, prefere ao juízo definitivo proferido na intimação, só eventualmente revisível em via de recurso (se o houver)", como explicita Carla Amado Gomes (Pretexto, Contexto e Texto…). Esta é uma decorrência do princípio da interferência mínima. A mesma Autora refere ainda (em O regresso de Ulisses: um olhar sobre a reforma da justiça cautelar administrativa, CJA n.º 39,
2003) que esta subsidiariedade "se resolve a partir da densificação dos critérios de possibilidade e suficiência avançados pelo n.º 1 do artigo 109.º, sendo certo que, na perspectiva do juiz, estas se avaliarão do ponto de vista jurídico (da legitimidade de antecipação do juízo em face do caso concreto) enquanto que, na perspectiva do requerente, se aferirão do ponto de vista fáctico (da exercibilidade do direito em tempo útil)".


e) Distinção relativamente ao meio previsto no artigo 121.º do CPTA

Uma última nota para referir que os processos cautelares se podem convolar em processos definitivos, por força do artigo 121.º do CPTA. Em regra, tudo o que puder ser resolvido por via da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias não poderá caber no âmbito deste "processo sumário por convolação", pelo que, à partida, não deverá haver dificuldade de maior em distinguir as figuras. Como sublinha Carla Amado Gomes (ob. cit.), existe uma "natural subsidiariedade deste processo sumário por convolação em face do processo sumário de origem (passem as expressões)"; "a decisão sumária configura-se como uma via verde para a resolução de litígios que envolvam a salvaguarda urgente de bens de natureza colectiva, em face de acções ou omissões claramente ilegais de qualquer entidade que desenvolva funções materialmente administrativas, susceptíveis de provocar, por força da tendencial infungibilidade daqueles, danos irreversíveis."

Utilizando a expressão de Sofia David, estamos aqui perante uma "válvula de escape" do sistema, dado que o mecanismo do artigo 121.º do CPTA não passa de mais uma forma de garantir a tutela jurisdicional efectiva quando tudo o resto falha. A prova exigida neste meio processual é mais exigente do que nas intimações, o que se compreende facilmente porquanto estas últimas estão mais frequentemente associadas a condutas vinculadas da Administração e, portanto, comportando menos margem de prova. As condutas correspondentes ao mecanismo do artigo 121.º tanto podem ser exigidas ex lege como ser totalmente discricionárias, pelo que convém trazer a juízo todos os elementos necessários à cognição plena ou quase plena da questão.



Conclusão


Teria sido interessante introduzir neste breve ensaio uma perspectiva prática, quantitativa, analisando a efectiva utilidade desta figura no âmbito do contencioso administrativo. Contudo, não foi possível recolher os dados desejados, apesar dos esforços efectuados…

Foi, apesar de tudo, possível proceder à leitura de alguns acórdãos referentes à sua aplicação, dos quais resultou evidente que a delimitação da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias não se encontra ainda bem interiorizada no espírito dos juízes. Exemplo bem claro disto foi o caso do Acórdão de 13/09/2007, sobre o processo n.º 0566/07, referente à "alteração superveniente das regras do concurso de acesso ao ensino superior, admitindo que os alunos que realizaram a prova de Química na 1ª fase dos exames nacionais, tivessem, ao invés do previsto, duas hipóteses de melhoria da classificação, enquanto os estudantes que efectuaram a prova na 2ª fase só tiveram essa única hipótese". Neste caso, foi indevidamente utilizado o meio processual da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias – como, aliás, vem a reconhecer o Supremo Tribunal Administrativo no seu douto Acórdão.

Foi também possível encontrar exemplos de decisões em que se insiste na exigência da pessoalidade do direito em causa, o que, face ao exposto, parece inadmissível (vide Acórdão STA de 18/11/2004, processo n.º 0978/04).

Felizmente, temos já bons exemplos, como é o caso do Acórdão de 31/01/2008, referente ao processo n.º 03290/07, em que o Supremo Tribunal Administrativo cita Mário Aroso de Almeida e C. A. Fernandes Cadilha quando estes afirmam que estamos perante "um processo dirigido a proteger direitos, liberdades e garantias - a nosso ver, todo e qualquer tipo de direitos, liberdades e garantias, sem que haja, aqui, que distinguir entre direitos, liberdades e garantias pessoais e direitos, liberdades e garantias de conteúdo patrimonial. Com efeito, é verdade que, com a introdução desta nova forma de processo, o propósito primacial do legislador foi dar cumprimento a uma imposição constitucional que apenas se reporta aos direitos, liberdades e garantias pessoais (cfr. artigo 20° n°5 da CRP). Mas o que é certo é que, nem em nenhum dos artigos que integram a presente secção, nem no próprio título da secção, o legislador introduziu qualquer restrição. Afigura-se, pois, que, embora pudesse não o ter feito o legislador optou por ir além da mera concretização da Constituição e, assim, por estender o âmbito de intervenção deste processo de intimação à protecção de todo e qualquer direito, liberdade ou garantia. Por outro lado, como o regime dos direitos, liberdades e garantias se aplica aos direitos fundamentais de natureza análoga (cfr. art. 17.° da CRP), também não se vê fundamento para excluir os direitos de natureza análoga do âmbito de intervenção deste processo (cfr. M. Aroso de Almeida e C. A. Fernandes Cadilha, "Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos", 2007). Neste caso, adoptou-se, portanto, uma concepção ampla, assegurando uma tutela jurisdicional mais efectiva dos direitos do particular.

Depois de tudo o que foi dito, continuamos a julgar, com Carla Amado Gomes, que "muito ou pouco necessária em concreto (…), importante é que exista" esta "última carta na manga dos particulares para situações em que nenhum outro remédio seja possível ou suficiente" (in Pretexto, Contexto e Texto…). E importante também é que os aplicadores do Direito – neste caso os juízes - conheçam bem o meio processual em apreço e saibam utilizá-lo com a sensibilidade e bom senso para que apela Jorge Guerreiro Morais, de modo a que se continue no bom caminho para a plenitude da tutela dos direitos fundamentais.

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